terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Das dores de Minas, Por Miriam Leitão, O Globo

Por Miriam Leitão
 

Queria escrever suavemente, para não machucar as feridas dos viventes. Queria escrever com o cuidado de quem ampara a pessoa que se enfraqueceu após um grande golpe. Queria ser como a flor branca que enfeita a sala da casa. Gostaria de refazer o tempo, preencher os silêncios e encontrar o que foi perdido.
São muitas as dores de Minas. Escavaram impiedosamente seu solo, deixaram crateras na terra e nos corações. Encurralaram seus rios. Cortaram montanhas e picos. Pegaram minérios, ouros e pedras. Tiraram suas matas para queimá-las nos fornos. Encheram os trens que vão para os portos. Deixaram os rejeitos desabarem sobre sua terra, suas águas, sua gente. Minas foi sendo assim arrancada de si mesma, desde o início. Agora a chuva tem caído como se fosse o fim do mundo. O solo encharcado e cansado desmorona. Esta é a história das muitas dores de Minas. “Os mineiros sabem e não contam”, diz Drummond, o poeta que sabia tudo, inclusive como dói um retrato na parede. Os mineiros contariam suas aflições se encontrassem palavras fortes o suficiente para acordar os incautos, suaves o bastante para curar as feridas. Os mineiros olham os retratos. Minas segue em silêncio, enterrando seus mortos e buscando o recomeço.
Sentir na pele a dor coletiva aumenta a lucidez, mas não conforta. Vim chorando pela estrada, deixando Minas para trás, sabendo que ela estaria onde sempre esteve, no mais fundo de mim e espelhada na minha retina. A Minas, pertenço. Aos meus, pertenço. Cada família atingida tem um número, mas os números são todos iguais. Cada pessoa era ímpar.
Cada pessoa era cada pessoa. Única. A nossa era assim. Tinha um sorriso aberto na infância, que depois foi se fechando ligeiramente. Tinha um jeito retraído que ficou. Recolhia-se em suas tristezas e dúvidas. Preferia guardá-las em silêncio. Só os mineiros se sabem inteiramente. Ela sabia ser misteriosa e acolhedora ao mesmo tempo. Entreabria-se e guardava-se, como certas flores. A nossa foi uma criança espevitada e inteligente e curiosa. Uma adolescente que viveu conflitos e alegrias. Um dia quis abreviar a travessia para a vida adulta, como se intuísse que não teria muito tempo. Grudou na irmã como se fosse siamesa. Ajudou mãe e irmão sem descanso. Criou a filha com uma misteriosa mistura de união e independência.
A doce Miriam Azevedo Leitão Damasceno, mãe, filha, irmã, sobrinha e prima querida — Foto: Arquivo da FamíliaA doce Miriam Azevedo Leitão Damasceno, mãe, filha, irmã, sobrinha e prima querida — Foto: Arquivo da Família
A doce Miriam Azevedo Leitão Damasceno, mãe, filha, irmã, sobrinha e prima querida — Foto: Arquivo da Família
Eu queria falar bem baixinho para não acordar as crianças, queria consolar todos os que sentem a mesma dor, queria entender porque ferem a terra de forma tão insensata e não ouvem os avisos do tempo. Queria segurar o muro para que ele não caísse. Queria ter sido capaz de te proteger.
Os mineiros vão enxugando suas lágrimas porque precisam voltar ao trabalho, ainda que tarde, limpar as águas dos rios, plantar as árvores derrubadas, preencher os vazios, refazer a vida, sonhar com a liberdade, ainda que tarde. Tão tarde.
Minas ondula suave no horizonte, enquanto eu a deixo viajando devagar pela estrada, ou admiro sua beleza do alto no avião. Ela ainda me preenche com sonhos e esperanças. Ainda é a terra de onde brotaram os conjurados. Ainda guarda os tesouros meus.
* Miriam Leitão é jornalista e escritora. Escreve crônicas aos sábados como colaboradora do blog

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