A hiperpolitização do cotidiano se tornou uma marca do nosso tempo
O Cacique de Ramos teve que se explicar. O bloco desfila com fantasias de índio desde 1960, mas agora a coisa complicou. “Os pioneiros do bloco tinham nomes indígenas e eram ligados à umbanda.” Não entendi a relação com a umbanda. Possivelmente era um salvo-conduto.
Alessandra Negrini também não escapou. Teve que se explicar e se saiu bastante bem. “A luta indígena é de todos nós, por isso tive a ousadia de me vestir assim.” Bingo. Em vez de pedir desculpas, um pouco de retórica política. Contra-ataque perfeito.
Curiosa essa invasão da retórica politica sobre a indisciplina e a irreverência que sempre marcou (ao menos é isso que imaginávamos), nosso Carnaval. Não se trata da sátira política (sempre bem-vinda, aliás), mas o seu contrário: o disciplinamento da sátira pela correção política.
O melhor disso foi a cartilha editada por um conselho da Prefeitura de Belo Horizonte com orientações sobre o que os foliões deveriam evitar. Fantasias de índio, enfermeira sexy, a marchinha clássica de Lamartine Babo, touca com tranças, homem vestido de mulher. Esse último item com um requinte: nem de “noiva”.
Talvez tenha sido nosso primeiro Carnaval de cartilha, mas presumo que seja o primeiro de muitos.
Nessas coisas todas, o que me surpreende é o excesso de convicção. A certeza de que alguém tem o direito de mandar na vida dos outros. Antônio Risério chamou isso de “fascismo identitário” em seu livro recente. Fascismo, aqui, é o culto do dogma, a negação do diálogo, a sede de controle. Se o termo é adequado cada um pode julgar.
Vai aí uma marca do nosso tempo: a hiperpolitização do cotidiano. Jonathan Haidt trata do tema em seu “The Coddling of the American Mind”. A vigilância coletiva nos campi universitários, os safe spaces, a supressão da divergência e proteção a qualquer coisa que caiba sob o rótulo de ofensivo.
Parece evidente que as redes sociais têm muito a ver com isso. A conexão digital fez com que, subitamente, passássemos a viver juntos. Da multiplicidade que marca as grandes sociedades abertas, passamos a funcionar como uma comunidade. Comunidade de bisbilhoteiros e “reguladores da vida dos outros”, como escutei de um amigo professor tempos atrás.
Sobre a atual histeria identitária, Risério toca na questão central: como é possível que movimentos que iniciaram “como luta pelo reconhecimento do outro tenham terminado como uma luta que rejeita o outro, a diferença, a outridade”?
Não vejo resposta simples a essa pergunta. Mas ela deve ser feita. De um movimento múltiplo e generoso, afirmativo de direitos, migramos a uma guerra mesquinha pelo disciplinamento do humor, pela correção da literatura, supressão de marchinhas, regulação de fantasias e festas populares.
Talvez tudo tenha saído um pouco de controle quando as guerras culturais invadiram o mundo da política e qualquer alegação de fragilidade tenha se tornado um caminho fácil para a virtude. Tudo feito à moda banal da radicalização e do exagero que marca a democracia atual.
Há muitos riscos aí. Um deles é a descredibilização dos temas de fato pertinentes à exclusão e o preconceito. Submeter a luta antirracista ao julgamento seletivo e à politização barata é perder de vista a seriedade dos temas que ela de fato envolve no dia a dia.
Há um elemento político: só quem tem ganhado, com a histeria identitária, é um certo direitismo conservador que declara guerra ao politicamente correto e passa a ser visto, por irônico que pareça, como libertador. Há muitos bons trabalhos de sociologia mostrando isso, infelizmente não aqui pelos trópicos.
No mais, arriscamos terminar convertendo o país da transgressão e da antropofagia em uma nação puritana. Depois do ódio político, a chatice cultural. Acabaríamos cantando hinos gospel no Carnaval.
Nesse dia bateria uma saudade, não tenho dúvidas, de algumas velhas marchinhas que deixamos para trás.
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