quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O filme 'A Melhor Juventude' é de longe a melhor representação de uma geração de italianos. FSP

São seis horas, mas vi tudo no mesmo dia e queria mais

  • 6
Não perca, sob nenhum pretexto, “La Meglio Gioventú” (“A Melhor Juventude”), de Marco Tullio Giordana. O filme, de 2003, voltou recentemente aos cinemas. São seis horas, mas vi tudo no mesmo dia e queria mais.
“La Meglio Gioventú”, num italiano dialetal, significa “os melhores dos nossos jovens” e evoca um canto dos alpinos (tropas de montanha do Exército italiano). Mais de uma vez, com amigos, no breu e no frio, subi uma montanha para descer do outro lado, quando o sol nascia, deslizando entre as árvores, na neve intacta. Cantávamos a meia-voz “Sul Ponte di Bassano”: a música condizia com a abnegação no esforço.
“Sul Ponte di Bassano” fala do adeus dos alpinos que atravessavam o rio Brenta para enfrentar os austríacos, na Primeira Guerra Mundial. Entre 1915 e 1918, morreram mais de 600 mil soldados italianos. 
Ilustração de pessoa correndo em uma superfície inclinada toda branca. Ela está com roupas de frio cercada por árvores com neve em alguns galhos curtos.
Luciano Salles/Folhapress
Vinte e poucos anos depois, nova versão, “Sul Ponte di Perati”: a divisão alpina Julia teve que invadir a Grécia, e a ponte de Perati marcava a passagem entre Albânia (na época, “italiana”) e Grécia: era a ponte sem volta. 
A primeira estrofe diz: “Sobre a ponte de Bassano [ou de Perati], bandeira preta, é o luto dos alpinos que vão para a guerra, a ‘meglio gioventú’ vai para baixo da terra”. 
A mesma música e mesma menção à “meglio gioventú” serviu para “Pietá l’é Morta” (a piedade é morta), canto dos “partigiani” em 1944-1945.
Duas vezes, a 20 e poucos anos de distância, os jovens da “meglio gioventú”, soldados, resistentes ou fascistas que fossem, foram para baixo da terra.
E o que aconteceu a seguir com “la meglio gioventú”, que tinha 20 anos no fim da década de 1960? O filme de Giordana é de longe a melhor, mais comovente e mais certeira representação dessa geração de italianos. Reflexões na margem, sem spoilers:
1) Em 1966, um jovem viaja pelo norte da Europa e escreve cartas.
Aos 13 anos, passei dois meses em Londres, para cultivar meu inglês. Meu irmão (que tinha 18) estava na praia, perto de Veneza, com a namorada. E meus pais davam uma volta ao mundo.
Ninguém sabia o telefone de ninguém. Eu tinha um dinheiro, que devia bastar, e só. Escrevi três cartas a posta-restante de cidades que meus pais visitariam. Recebi três cartas. Se adoecesse, se o dinheiro acabasse (acabou, de fato), se me sentisse triste, nada: vire-se —como gente grande.
Houve mais uma geração que conheceu a liberdade de ter que se virar. Depois disso, as crianças passaram a crescer num mundo acovardado, em que todos aceitam serem constantemente controlados em troca da sensação de que, graças ao celular, sempre dará para pedir socorro.
Fomos a penúltima geração sem celular. Sorte nossa. 
2) O filme começa com três jovens universitários preparando-se para os exames. Não era preciso ser universitário para que o estudo fosse prioridade absoluta. Uma vez, aos 11 anos, manifestei que estava com sono para terminar o dever de casa depois do jantar; meu pai sugeriu que tomasse um café forte. 
Estudávamos para acumular um patrimônio comum que nos permitiria um dia ler um manuscrito medieval iluminado junto com um amigo, reconhecer o velho Firs do “Jardim das Cerejeiras” num mordomo que aparecesse com duas crianças ou explicar a um menino órfão que seu pai era triste como Aquiles. Sem esse patrimônio, a vida é infinitamente mais chata, menos complexa, diversa e bela (diria Nicola, no filme). 
A cultura não evita que a gente tome as piores decisões. É possível tocar uma sonata em A menor de Mozart e, mesmo assim, cair na sedução da luta armada. A cultura apenas garante que, seja qual for a escolha, ela será intensa, parte de uma vida levada a sério.
Em 1940, um tenente da divisão Julia, antes de embarcar para a Grécia, passou a noite recitando líricos gregos, com meu pai. Ele foi morto no primeiro combate. Meu pai dizia que ele preferira ser morto a invadir a Grécia. 
3) Os quatro filhos de uma família sem riqueza estudam. Isso só era possível porque a escola pública era a melhor e aberta a todos. O ensino era conteudista, sem dúvidas pedagógicas. Senta a bunda e estuda —porque é interessante, e tua vida será mais interessante com conteúdo do que sem. 
4) Apesar dos processos de fascistas, brigadistas vermelhos e mafiosos que encerraram os anos de chumbo, entre 1969 e 1985, continuamos num mundo corrupto, vivendo uma história que nos escapa.
Mas, nos interstícios de infundáveis ignorâncias e ambições sórdidas, sempre é possível inventar vidas que valham a pena.
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem

Nenhum comentário: