sexta-feira, 8 de março de 2013

Salva-vidas de chumbo - de 2006, mas vale!

16/08/2006 - 01h08

Por Eduardo Galeano (*)
Montevidéu, agosto/2006 – Nossos países se modernizam. Agora, o discurso oficial manda honrar a dívida (embora seja desonrosa), atrair investimentos (embora sejam indignos) e entrar no mundo (ainda que pela porta de serviço). Na realidade, continuamos acreditando nas histórias de sempre. A América Latina nasceu para obedecer ao mercado mundial, ainda quando este mercado não se chamava assim, e mal ou bem seguimos atados ao dever de obediência.

Esta triste rotina dos séculos começou com o ouro e a prata e seguiu com o açúcar, tabaco, guano, salitre, cobre, estanho, borracha, cacau, banana, café, petróleo. O que nos deixaram esses esplendores? Nos deixaram sem herança nem querência. Jardins transformados em desertos, campos abandonados, montanhas esburacadas, águas podres, longas caravanas de infelizes condenados á morte precoce, vazios palácios onde perambulam os fantasmas? Agora é a vez da soja transgênica e da celulose. E novamente se repete a história das glórias fugazes, que ao som de suas trombetas nos anunciam longas infelicidades.

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O passado será mudo? Nos negamos a ouvir as vozes que nos advertem: os sonhos do mercado mundial são os pesadelos dos países que se submetem aos seus caprichos. Continuamos aplaudindo o seqüestro dos bens naturais que Deus, ou o diabo, nos deu, e assim trabalhamos por nossa própria perdição e contribuímos para o extermínio da pouca natureza que resta neste mundo.

Argentina, Brasil e outros países latino-americanos vivem a febre da soja transgênica. Preços tentadores, rendimentos multiplicados. A Argentina é, há algum tempo, o segundo produtor mundial de transgênicos, depois dos Estados Unidos. No Brasil, o governo de Lula executou uma dessas piruetas que fazem pela democracia e disse sim à soja transgênica, embora seu partido tenha dito não durante toda a campanha eleitoral.

Isto é pão para hoje e fome para amanhã, como denunciam alguns sindicatos rurais e organizações ecologistas. Mas já se sabe que os camponeses ignorantes se negam a entender as vantagens do pasto de plástico e da vaca a motor, e que os ecologistas são uns estraga-festas que sempre cospem no assado.

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Os defensores dos transgênicos afirmam que não está provado que prejudicam a saúde humana. Em todo caso, tampouco está provado que não a prejudicam. E, se são tão inofensivos, por que os fabricantes de soja transgênica se negam a declarar, nas embalagens, que vendem o que vendem? Ou, por acaso, o rótulo de soja transgênica não seria a melhor publicidade?

Mas há evidências de que essas invenções do doutor Frankenstein afetam a saúde dos solos e reduzem a soberania nacional. Exportamos soja ou exportamos solo? E, por acaso, não ficamos presos nas jaulas da Monsanto e outras grandes empresas de cujas sementes, herbicidas e pesticidas passamos a depender?

Terras que produziam de tudo para o mercado local, agora se consagram a um só produto para a demanda estrangeira. Me desenvolvo para fora, e me esqueço do que tem dentro. O monocultivo é uma prisão, sempre foi, e agora, com os transgênicos, muito mais. A diversidade, por outro lado, libera. A independência se reduz ao hino e à bandeira se não existe soberania alimentar. A autodeterminação começa pela boca. Somente a diversidade produtiva pode nos defender das súbitas quedas de preços que são costume, costume mortal, do mercado mundial.

As imensas áreas destinadas à soja transgência estão arrasando as florestas nativas e expulsando os camponeses pobres. Poucos braços ocupam estas explorações altamente mecanizadas, que, por outro lado, exterminam as pequenas plantações e hortas familiares com os venenos que utilizam. Multiplica-se o êxodo rural para as grandes cidades, onde se supõe que os expulsos vão consumir, se tiverem a sorte, o que antes produziam. É a agrária reforma. A reforma agrária ao contrário.

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A celulose também entrou na moda, em vários países. O Uruguai, para não ir mais longe, está querendo se converter em um centro mundial de produção de celulose para fornecer matéria-prima barata a distantes fábricas de papel. Trata-se de monoculturas de exportação, na mais pura tradição colonial: imensas plantações artificiais que dizem ser florestas e se convertem em celulose em um processo industrial que despeja dejetos químicos nos rios e torna o ar irrespirável. Aqui começaram a ser construídas duas fábricas enormes, uma delas já no meio da construção. Depois foi incorporado outro projeto, e se fala de outro e de outro mais, e mais hectares estão sendo destinados à produção de eucaliptos em série.

As grandes multinacionais nos descobriram no mapa e brotaram subitamente cheias de amor por este Uruguai onde não há tecnologia capaz de controlá-las, o Estado lhes concede subsídios e isenção de impostos, os salários são raquíticos e as árvores brotam em um piscar de olhos. Tudo indica que nosso pequeno país não poderá suportar o asfixiante abraço destes grandões. Como costuma ocorrer, as bênçãos da natureza se transformam em maldições da história. Nossos eucaliptos crescem 10 vezes mais rápidos do que os da Finlândia, e isto se traduz da seguinte maneira: as plantações industriais serão 10 vezes mais devastadoras. Ao ritmo de exploração previsto, boa parte do território nacional será espremida até a última gota de água. Os gigantes sedentos vão secar nosso solo e subsolo.

Trágico paradoxo: este foi o único lugar do mundo onde se submeteu a plebiscito a propriedade da água. Por esmagadora maioria, os uruguaios decidiram, em 2004, que a água seria de propriedade pública. Não haverá maneira de evitar este seqüestro da vontade popular?

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É preciso reconhecer que a celulose se converteu em algo com uma causa patriótica, e a defesa da natureza não desperta entusiasmo. E pior: em nosso país, doente de celulite, algumas palavras que não eram más palavras, como ecologista e ambientalista, estão se transformando em insultos que crucificam os inimigos do progresso e os sabotadores do trabalho. Comemora-se a desgraça como se fosse uma boa notícia. Mais vale morrer de contaminação do que morrer de fome: muitos desempregados acreditam que não há mais remédio a não ser escolher entre duas calamidades, e os vendedores de ilusões desembarcam oferecendo milhares e milhares de empregos.

Mas uma coisa é a publicidade, e outra a realidade. O MST, o movimento de camponeses sem-terra divulgou dados eloqüentes, que não valem apenas para o Brasil: a celulose gera um emprego para cada 185 hectares, enquanto a agricultura familiar cria cinco postos de trabalho para cada 10 hectares. As empresas prometem o melhor. Trabalho em abundância, investimentos milionários, controles rígidos, ar puro, água limpa, terra intacta. E é o caso de se perguntar por que não instalam estas maravilhas em Punta del Este, para melhorar a qualidade de vida e estimular o turismo em nosso principal balneário? (IPS/Envolverde)

(*) Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio, autor de As veias abertas da América Latina e Memórias do Fogo.

(Envolverde/ IPS)



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