DEBORA DINIZ*
Pojucan
Os sotaques denunciavam as raízes dos médicos. Eles eram tão diversos quanto nossa geografia. Chegavam em pequenas comitivas de cada um dos 27 Conselhos Regionais de Medicina. No começo deste mês, Belém seria a sede da primeira reunião de conselheiros médicos do País e o tema a ser discutido era inovador: a descriminalização do aborto no Brasil. Meu papel foi o de apresentá-los ao que a pesquisa em saúde pública brasileira produziu sobre o aborto ilegal e inseguro. Fomos três especialistas convidados a informá-los sobre uma questão que já estavam, antes de nós, preparados para decidir. Fui recebida por uma audiência atenta aos meus números e histórias de mulheres em sofrimento. Seguiram-me os textos do pecado e da prisão - um padre católico e um promotor de Justiça desfilaram os riscos do aborto para a fé e as intransigências do atual Código Penal em relação às mudanças prometidas.
Saí de Belém convencida de que a história do poder se altera, ainda que lentamente. Aquela reunião era o registro de uma mudança significativa: há 20 anos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) deu o primeiro murmúrio sobre a descriminalização do aborto como uma necessidade de saúde para as mulheres. Foram duas décadas de espera para que o atual presidente do CFM anunciasse “somos a favor da vida, mas queremos respeitar a autonomia da mulher que, até a 12ª semana, já tomou a decisão de praticar a interrupção da gestação”. Roberto D’Ávila faz referência ao projeto de reforma do Código Penal que tramita no Senado. Pelo novo texto, o aborto passaria a ser descriminalizado: mulheres e médicos seriam livres para decidir pelo aborto e pela assistência em saúde.
Os termos do pronunciamento do presidente do CFM não devem ser ignorados: “somos a favor da vida”. Tampouco devem ser entendidos como uma expressão coloquial do discurso da ética médica, que se autodefine como vitalista. É mais do que isso. Em 2012, o CFM publicou uma resolução em que autorizou as “diretivas antecipadas da vontade”; em termos mundanos, um testamento vital sobre como queremos morrer. Um paciente em estágio terminal pode decidir interromper seus cuidados médicos e planejar como deseja viver seus últimos momentos. Agora, o CFM enfrenta a questão do aborto. Não é à toa que o presidente precisa se postular como “a favor da vida”, pois provocar dois temas tabu não é simples para uma ordem moral que insiste em silenciar a morte e o sexo.
Ser “a favor da vida” é deslocar o tema do aborto da religião para a saúde pública, uma cartografia bem mais confortável para uma organização médica. D’Ávila e seus colegas foram sensíveis às crenças de seus médicos e ao principal opositor das mudanças do Código Penal em matéria de aborto, a Igreja Católica. Por isso um representante de sua ordem teológica esteve presente em Belém, um ato de respeito a quem insiste em ignorar que as mulheres abortam, mesmo sendo católicas. Imagino que uma mulher católica pobre talvez sofra mais do que suas irmãs sem religião: além de praticar um aborto inseguro, pôr sua vida em risco, ela teme a prisão e o pecado. O CFM quer ser parte de uma história que, ao menos do risco e da prisão, irá libertar as mulheres.
Mas a decisão do CFM foi ainda mais ousada. O conselho propôs que não é preciso atestado médico ou psicológico sobre a autonomia das mulheres para a realização do aborto. A posição ética foi clara: as mulheres são seres autônomos e, se convencidas de que desejam o aborto em vez do prosseguimento da gestação, o médico deve ser autorizado a socorrê-la. E, assim como nenhuma mulher deverá ser obrigada a realizar um aborto ou se manter grávida contra sua vontade, os médicos serão livres para decidir sobre a assistência. Não haverá o dever de aborto nem para as mulheres, nem para os médicos. O CFM apenas se posicionou a favor do direito de escolha como um gesto de proteção à saúde e à autonomia das mulheres.
Há muito tempo feministas e sanitaristas ecoam a tese de que o aborto ilegal e inseguro é uma questão de saúde pública. O significado dessa tese é alarmante: uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez, pelo menos, um aborto. Metade delas necessitou ficar internada para finalizá-lo, o que repercute imensamente na assistência pública em saúde. Outra metade das mulheres fez uso de medicamentos cuja procedência, segurança ou dosagem desconhecemos. Entre os 18 e os 39 anos, são mais de 3 milhões de mulheres que, em algum momento da vida reprodutiva, realizaram um aborto. Elas temeram pela saúde, pela fé e pela prisão. O CFM quer ajudá-las a não mais ter medo da morte. É preciso agora que o Senado Federal entenda que mandá-las para a prisão não é uma medida de saúde pública.
*DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNEROD
Saí de Belém convencida de que a história do poder se altera, ainda que lentamente. Aquela reunião era o registro de uma mudança significativa: há 20 anos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) deu o primeiro murmúrio sobre a descriminalização do aborto como uma necessidade de saúde para as mulheres. Foram duas décadas de espera para que o atual presidente do CFM anunciasse “somos a favor da vida, mas queremos respeitar a autonomia da mulher que, até a 12ª semana, já tomou a decisão de praticar a interrupção da gestação”. Roberto D’Ávila faz referência ao projeto de reforma do Código Penal que tramita no Senado. Pelo novo texto, o aborto passaria a ser descriminalizado: mulheres e médicos seriam livres para decidir pelo aborto e pela assistência em saúde.
Os termos do pronunciamento do presidente do CFM não devem ser ignorados: “somos a favor da vida”. Tampouco devem ser entendidos como uma expressão coloquial do discurso da ética médica, que se autodefine como vitalista. É mais do que isso. Em 2012, o CFM publicou uma resolução em que autorizou as “diretivas antecipadas da vontade”; em termos mundanos, um testamento vital sobre como queremos morrer. Um paciente em estágio terminal pode decidir interromper seus cuidados médicos e planejar como deseja viver seus últimos momentos. Agora, o CFM enfrenta a questão do aborto. Não é à toa que o presidente precisa se postular como “a favor da vida”, pois provocar dois temas tabu não é simples para uma ordem moral que insiste em silenciar a morte e o sexo.
Ser “a favor da vida” é deslocar o tema do aborto da religião para a saúde pública, uma cartografia bem mais confortável para uma organização médica. D’Ávila e seus colegas foram sensíveis às crenças de seus médicos e ao principal opositor das mudanças do Código Penal em matéria de aborto, a Igreja Católica. Por isso um representante de sua ordem teológica esteve presente em Belém, um ato de respeito a quem insiste em ignorar que as mulheres abortam, mesmo sendo católicas. Imagino que uma mulher católica pobre talvez sofra mais do que suas irmãs sem religião: além de praticar um aborto inseguro, pôr sua vida em risco, ela teme a prisão e o pecado. O CFM quer ser parte de uma história que, ao menos do risco e da prisão, irá libertar as mulheres.
Mas a decisão do CFM foi ainda mais ousada. O conselho propôs que não é preciso atestado médico ou psicológico sobre a autonomia das mulheres para a realização do aborto. A posição ética foi clara: as mulheres são seres autônomos e, se convencidas de que desejam o aborto em vez do prosseguimento da gestação, o médico deve ser autorizado a socorrê-la. E, assim como nenhuma mulher deverá ser obrigada a realizar um aborto ou se manter grávida contra sua vontade, os médicos serão livres para decidir sobre a assistência. Não haverá o dever de aborto nem para as mulheres, nem para os médicos. O CFM apenas se posicionou a favor do direito de escolha como um gesto de proteção à saúde e à autonomia das mulheres.
Há muito tempo feministas e sanitaristas ecoam a tese de que o aborto ilegal e inseguro é uma questão de saúde pública. O significado dessa tese é alarmante: uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez, pelo menos, um aborto. Metade delas necessitou ficar internada para finalizá-lo, o que repercute imensamente na assistência pública em saúde. Outra metade das mulheres fez uso de medicamentos cuja procedência, segurança ou dosagem desconhecemos. Entre os 18 e os 39 anos, são mais de 3 milhões de mulheres que, em algum momento da vida reprodutiva, realizaram um aborto. Elas temeram pela saúde, pela fé e pela prisão. O CFM quer ajudá-las a não mais ter medo da morte. É preciso agora que o Senado Federal entenda que mandá-las para a prisão não é uma medida de saúde pública.
*DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNEROD
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