Inovadora, a microcirurgia reconstrutiva faz milagres, mas não dá conta da imprudência do brasileiro
16 de março de 2013 | 16h 33
Mônica Manir - O Estado de S. Paulo
Numa visão micro, digamos assim, uma artéria, três veias, dois músculos flexores, um músculo extensor, três nervos e o revestimento cutâneo esperavam seus complementos no braço que Alex Siwek atirou em um córrego da Av. Ricardo Jafet, em São Paulo, no domingo passado. Numa tomada macro, ansiavam no Hospital das Clínicas a equipe médica e o dono do braço extirpado, David Santos Sousa, o ciclista de 21 anos abalroado na Paulista por um carro aparentemente tão embriagado quanto Alex. A parte não encontrou o todo. David continuou amputado. E uma das doutoras do HC não se aguentou no Facebook: "Estávamos prontos para tentar o reimplante e infelizmente a polícia, juntamente com os bombeiros, não conseguiram encontrar o braço no rio". Rachel Baptista, a médica, ainda substantivou o motorista de "monstro", expressão que mais tarde apagou.
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Em foco. Intervenções são longas, com remuneração precária e não proporcional à sofisticação
Rachel é colega de Marcus Castro Ferreira, cirurgião plástico pioneiro em microcirurgia reconstrutiva no Brasil e na América do Sul. Em 1972, usando um microscópio emprestado da neuro, um instrumental adaptado da oftalmo e fios de náilon 8-0, ele reconectou a mão direita de uma jovem que perdeu o membro numa guilhotina de cortar papel. Alguns dias depois, eis Ferreira em outro caso de mão reimplantada, desta vez a esquerda, e num caso rumoroso. Dizia-se que o paciente havia patrocinado a laceração para receber um seguro das arábias.
Na época corria-se contra os ponteiros, já que o reimplante tinha de ser feito entre 6 e 12 horas depois da lesão. Em 50 anos de vida, a microcirurgia reconstrutiva ganhou materiais sofisticados e pessoal de ponta – "é uma das áreas da cirurgia que mais cresceram nos últimos anos", afirma Ferreira –, mas continua atada a esse tempo restrito de sucesso. O membro amputado, em especial os maiores, precisam chegar ao hospital o quanto antes e em bom estado de conservação.
"Ou seja, limpos e a cerca de 4ºC", diz o ortopedista Rames Mattar Jr., chefe da disciplina de trauma, mão e microcirurgia reconstrutiva do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP. Na dificuldade para medir o bom estado de conservação e os 4 graus, Mattar recomenda lavar com cuidado o membro para tirar a contaminação grosseira. Depois envolvê-lo em um tecido limpo e zarpar para um pronto-atendimento onde houver um médico. Ali se espera que sejam usadas substâncias antissépticas, uma compressa estéril na parte cruenta, um saco plástico estéril em volta do membro e, por fim, uma geladeira ou isopor com água e gelo. "Somos um país tropical e o calor acelera o problema", destaca. Há casos na literatura com 40 horas de amputação de dedo, mas foi um trauma de esqui – temperatura glacial, portanto.
O que se pretende é evitar a isquemia. Porque, nesse estado de falta de circulação de sangue, o tecido muscular começa a produzir ácido láctico. Quando se refazem os vasos no reimplante e se solta o clamp para o sangue entrar no membro amputado, o sangue da volta pode provocar uma acidose metabólica e levar à parada cardíaca do paciente. "Quando a parte amputada inclui muito tecido muscular, o tempo de isquemia é absolutamente crítico", diz Mattar.
Se o membro chegou a tempo de os médicos fixarem o osso com placa e parafusos e fazerem artéria e veia, começam os detalhamentos musculares, neurais e vasculares, que podem tomar 10 horas, 12, até mais de 20. Quanto mais distal, mais na extremidade, maior a dificuldade técnica – as artérias chegam a milímetros de espessura. Numa amputação de oito dedos causada por uma prensa, duas equipes do HC levaram 22 horas para o reimplante. Por isso a cirurgia só é feita com o paciente clinicamente estável.
Não era o caso imediato de Mariana Vasconcelos Arena, de 32 anos, professora de educação infantil. Há uma década, num acidente gravíssimo e sem cinto de segurança, ela perdeu o polegar, que ficou preso embaixo do banco do passageiro. "Foi uma perda por avulsão." Por arrancamento, em suma. Os policiais recuperaram o polegar, mas os médicos titubearam para fazer o reimplante porque ela também havia fraturado a mão em várias partes e também a bacia. Uma vez estável, passou pela reimplantação, depois pela fisioterapia e hoje tem o dedo quase perfeito, apenas sem a sensibilidade original. Precisa atentar para os quentes e cortantes.
Acidentes de carro são notórios, mas não encabeçam a lista dos que provocam amputação ou esmagamento de membros. No topo estão os acidentes de trabalho, nos quais sofrem especialmente os dedos. Pelo Anuário Estatístico da Previdência Social de 2011, entre 711 mil ocorrências naquele ano, os dedos são os mais afetados (134 mil casos), seguidos de mãos (40 mil), antebraços (19 mil) e braços (18 mil). Na maior parte das vezes eles ficam sob prensas – seja por falta de manutenção da máquina, seja por falta de atenção de quem a manuseia. Já nos acidentes domésticos, os cirurgiões perceberam que impera a economia informal e temerária das serras e cortadoras, o descaso com fios desencapados e a estética beligerante dos anéis, que levam consigo os dedos em enganchamentos bobos.
Acidentes com motos estão subindo nas pesquisas das mutilações, especialmente por falta de atendimento correto. "Somente em São Paulo se faz a reconstrução de pernas e pés, então no resto do Brasil se amputa", afirma Marcus Ferreira. "Por isso o Ministério da Saúde está querendo fazer uma portaria sobre centros de trauma de membros, que virou um problema de saúde pública."
Mattar vai na mesma linha quando mostra um levantamento sueco revelando que há cerca de 14 amputações de membros superiores a cada milhão de habitantes. "Se o Brasil fosse a Suécia, seriam 2.800 vítimas de amputações de membro superior com indicação para reimplantes por ano, mas a situação deve ser bem pior", presume. "A absoluta maioria desses pacientes, em geral gente humilde, não receberá atendimento especializado adequado, desenvolverão sequelas graves e engrossarão a fila dos incapacitados do País."
Numa comparação de valores, enquanto o transplante hepático recebe R$ 82 mil do SUS por cirurgia, o Centro de Microcirurgia Reconstrutiva e Cirurgia de Mão do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da USP, criado em 2010 e o único com atendimento gratuito 24 horas, ganha R$ 300 por intervenção com uma semana de internação, equipe médica, alimentação, enfermagem e medicamento. "Qual hospital quer fazer reimplante?", questiona Mattar. Ele lembra que, não por outro motivo, cirurgiões plásticos brasileiros preferem seguir a carreira da estética, e ortopedistas optam por cuidar de coluna e joelho. Seguem o dinheiro.
Em termos de reimplante, as atenções hoje se voltam para o uso de membros de cadáver. O nome para isso é Pedro Cavadas, cirurgião valenciano que, em 2011, fez o primeiro transplante duplo de pernas do mundo. O paciente era um rapaz que sofrera um acidente de trânsito severo. Sobraram-lhe 15 centímetros de extremidades em cada perna, o que, a priori, impossibilitaria a adaptação às próteses. Cavadas também foi o pioneiro no transplante de face que incluiu mandíbula e língua, em 2009, e deve vir ao Brasil em maio para um simpósio sobre avanços da microcirurgia no Hospital Sírio-Libanês. É quando se saberá se o rapaz bi-reimplantado conseguiu responder às novas pernas.
O transplante de membros de cadáveres é controverso não só por questões éticas (há casos de rejeição psíquica a uma aparência que não a própria), mas também em termos de prognóstico de vida saudável. O rapaz terá de tomar imunossupressores até o fim da vida, talvez por 70 anos. "Seria alterar a biologia do corpo por muito tempo, e não sabemos as consequências disso para a pessoa", reflete Ferreira. Mas a possibilidade de voltar a sentir uma região amputada encanta, algo que as próteses ainda não oferecem.
Uma das últimas cirurgias de Cavadas foi num menino de 10 anos chamado David, que perdeu os dois pés numa autovia. O menino recebeu os próprios membros de volta e está em fase de readaptação. Já o David brasileiro não teve a mesma chance, sequer da dúvida do sucesso. Reimplantes numa amputação acima do cotovelo ainda não apresentam ótimos resultados como os de mãos e dedos. Não raro os especialistas sugerem próteses mioelétricas como as oferecidas ao ciclista por empresas de plantão, e também não raro muitos amputados abandonem a prótese e repassam todas as tarefas ao braço que ficou.
Enquanto isso, David Santos Sousa ensaia escrever com a mão esquerda e luta contra a dor na extremidade que não existe mais. "Estatisticamente, a dor fantasma no membro superior é mais intensa que a no membro inferior, mas ela pode ser usada em exercícios fantasma, para exercitar um músculo que está abandonado", diz o médico Marco Antonio Guedes, do Centro Marion Weiss, ele mesmo um usuário de prótese de perna desde a época da faculdade, quando sofreu um acidente de moto. O que fica é a sensação. "Sou um amputado há 35 anos e ainda sinto isso. Você não sente o seu pé? Eu também às vezes sinto o meu. É normal."
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