Leopoldina morreu na penúria, daí as bijuterias dentro do caixão. E Amélia, hoje múmia, encantava os amigos de D. Pedro
23 de fevereiro de 2013 | 16h 53
ISABEL LUSTOSA*
Das perguntas que me fizeram acerca da exumação dos cadáveres de d. Pedro, d. Leopoldina e d. Amélia, a mais frequente diz respeito a qual seria a relevância das revelações que saíram da tumba de suas majestades. A princípio, apenas se confirmaram informações que eram bem conhecidas, pois o trabalho de pesquisa realizado por Otávio Tarquínio de Sousa para produzir a biografia em três volumes de d. Pedro I, lançada em 1952 pela José Olympio, é tão completo que dificilmente podem surgir novidades. Outras biografias vieram, mas o que elas acrescentam são novos olhares sobre o personagem e sobre as razões que o moviam. Se a excelente biografia de d. Leopoldina escrita por Carlos Oberacker Jr. e publicada em 1973 pelo Conselho Federal de Cultura é pouco conhecida, os especialistas certamente a ela têm acesso e podem constatar que ali também está reunida de forma clara e organizada o maior volume de informações possível sobre a primeira imperatriz do Brasil. A vida de d. Amélia desperta menor interesse, pois, tendo vivido entre nós menos de três anos, entre 1829 e 1831, e ainda muito jovem, restaram poucos testemunhos sobre ela. Sua única biografia publicada no Brasil apareceu em 1927 e foi escrita por Maria Junqueira Schmidt.
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D. Pedro I teve duas mulheres: Leopoldina e Amélia
Violência e paixão. Uma revelação que os jornais deram como novidade foi o fato de d. Leopoldina não ter o fêmur fraturado como se supunha. A meu ver, a surpresa, para os que conhecem sua biografia, foi a de descobrir que existia essa suposição. De onde ela surgiu não tenho ideia, pois Oberacker vasculhou toda a documentação ligada aos episódios que resultaram na morte da imperatriz, inclusive os boletins médicos, e diz que o barão de Inhomirim, médico que a atendeu, registra de fato uma “inchação erisipelatosa de toda a coxa, perna e pé”, mas não fala de fratura nenhuma. O biógrafo de Leopoldina descarta inclusive a possibilidade de que o aborto que ela sofreu poucos dias após a suposta agressão tenha sido causado por um pontapé no ventre. A distância entre os dois episódios seria prova de que não houve relação causal: a violência teria ocorrido no dia 20 de novembro e a imperatriz abortou apenas entre os dias 1º e 2 de dezembro.
De qualquer maneira, a informação de que d. Pedro dera pontapés na mulher grávida circulava no Rio de Janeiro do final do Primeiro Reinado. Se até 1831 era apenas sussurrada, uma semana depois da Abdicação, no manifesto que publicou contra d. Pedro em seu jornal Tribuno do Povo (14-04-1831), Francisco das Chagas de Oliveira França diz que d. Pedro tinha maltratado a imperatriz com pontapés, estando ela grávida. A agressão teria acontecido no dia 20 de novembro de 1826, quando d. Pedro preparava-se para partir para a Cisplatina, onde então corria a guerra que resultaria na criação do Uruguai. A imperatriz estava doente e seus males eram agravados pela profunda depressão em que mergulhara durante aquele ano, talvez pela forma mais ostensiva com que d. Pedro passara a exibir a relação com a Domitila. O escândalo tornou-se tema de panfletos apócrifos que circularam no Rio de Janeiro e, por isso, com o objetivo de dar a impressão de que reinava a mais perfeita harmonia em seu lar, d. Pedro quis apresentar as duas mulheres juntas durante o beija-mão de despedida.
Os convidados que aguardavam na antecâmara ouviram as vozes alteradas do imperador e da imperatriz em discussão. D. Leopoldina recusava-se a se apresentar ao lado da Marquesa de Santos. D. Pedro teria usado a força física para obrigá-la, ela resistira, caindo ou se jogando no chão, e ele a teria chutado. Os relatos do tempo sobre o que realmente aconteceu giram todos em torno dessa cena dramática. John Armitage, comerciante inglês que viveu no Rio de Janeiro entre as décadas de 1820 e 1830 e publicou História do Brasil, diz que d. Pedro tivera uma entrevista com a imperatriz de que “alguma altercação resultou. (...) assevera-se até que lhe dera pancadas”. O soldado alemão Carl Seidl, que lutou na Guerra da Cisplatina, conta que após a morte da imperatriz circulara no Rio o boato de que d. Pedro em “momento de cólera maltratara gravemente sua esposa em adiantada gravidez, mesmo que lhe dera pontapés”, e que essa fora a causa da morte. Mas foi o diplomata francês Gabriac que divulgou na Europa a agressão, revelando em sua correspondência que nos dias que sucederam à partida de d. Pedro para o sul a imperatriz apresentava contusões. O fato é que a história circulou no Velho Mundo e contribuiria depois para que a mão do imperador viúvo fosse recusada por 16 princesas.
A pobreza da imperatriz. Outra revelação que nos trouxeram os corpos foi a de que a imperatriz fora enterrada com joias falsas. Isso também só vem comprovar o que dizem inúmeros relatos do tempo: o estado de penúria em que d. Leopoldina viveu no Rio de Janeiro. Depois da partida de d. João VI para Portugal, em abril de 1821, levando em seus navios todo o ouro do Banco do Brasil, d. Pedro se viu em grandes dificuldades financeiras. Solidária com o marido, d. Leopoldina abriu mão de gerir os dinheiros a que, pelo contrato matrimonial, tinha direito. Nunca mais o recuperou. O notório avarento que era d. Pedro aproveitou essa concessão para controlar as despesas da mulher, que passara a viver com muito poucos recursos. São muitas as cartas de d. Leopoldina para comerciantes e agiotas pedindo empréstimos para fazer face a suas despesas e às obras sociais a que se considerava obrigada em virtude de sua posição. Isso talvez explique por que a primeira imperatriz do Brasil, terra do ouro e das pedras preciosas, tenha descido à cova adornada por bijuterias.
Um general português. A boa forma física do imperador, homem muito ativo, exímio cavaleiro que gostava de bater recordes de distância e velocidade, foi confirmada por seu esqueleto. Os episódios que lhe quebraram as costelas também eram conhecidos. O primeiro, uma queda de cavalo em 1823, e o segundo, um acidente com um carro dirigido por ele em 1829, quando também se machucaram a rainha d. Maria, o irmão de d. Amélia e ela mesma, todos levemente. Quem sofreu mais dano foi o imperador, que precisou de muitos dias para se recuperar.
Também não surpreendeu aos que conhecem a biografia de d. Pedro que ele só tenha levado para o túmulo insígnias portuguesas, não trazendo sobre si nenhuma lembrança do Brasil. D. Pedro aliás, não era muito dado a ostentar insígnias. Ao desfilar em Paris ao lado do rei da França, durante os festejos pelo primeiro aniversário da Revolução de Julho de 1830, os jornais comentaram o fato de que ele não usasse nenhuma condecoração portuguesa, nenhuma patente militar. Levava apenas a Ordem da Rosa, que ele criara no Brasil em homenagem a d. Amélia. Talvez compadecido dessa excessiva simplicidade foi que o rei Luís Felipe ordenou a Casimir Périer, presidente do conselho de ministros, que fosse ao hotel onde d. Pedro se hospedara e o condecorasse com a Legião de Honra.
Apesar de fazer pouco tempo que nos deixara (o imperador abdicou em abril de 1831 e morreu em setembro de 1834), a verdade é que naquele curto e intensíssimo período ele foi sobretudo um português. Quando deixou Paris, em janeiro de 1832, D. Pedro se ajoelhou diante da filha, a rainha Maria da Glória, dizendo-lhe: “Minha senhora, aqui está um general português que vai defender seus direitos e restituir-lhe a coroa”. E foi essa guerra, tão diversa dos embates que entre nós travou com o Parlamento e a imprensa de oposição, que fez dele um herói, um comandante destemido que sabia inspirar seus soldados, um defensor da Constituição e do liberalismo. Um herói que batia na mulher? Pois é. Para os que precisam de heróis talvez não seja bom examiná-los tão profundamente. Podem ser muito contraditórios. Fiquem apenas com o esqueleto.
Neta de Napoleão. O corpo mumificado da segunda imperatriz, d. Amélia, apesar de mais impressionante, desperta menor interesse daqueles que se ocupam com a história do Primeiro Reinado, na qual ela teve papel muito restrito. Chegou aqui aos 17 anos e partiu aos 20. Sua beleza indiscutível, cantada pelos amigos do imperador que, na Europa, buscavam uma princesa que fosse, sobretudo, bonita, deslumbrou d. Pedro. Teria efeito também muito positivo quando ela aparecesse em Paris, ao lado do marido, depois da Abdicação. As belas feições de d. Amélia eram realçadas pelas maneiras educadas, mas também pelo fato de ser filha de Eugênio Beauharnais, o enteado de Napoleão que fora perfilhado por ele. Depois da morte de d. Pedro, d. Amélia permaneceria em Portugal, onde foi, pouco a pouco, ficando esquecida, distante da enteada, d. Maria II, pelas habituais intrigas da corte portuguesa. Sua única ligação com o Brasil era a filha que tivera com d. Pedro, Amélia Eugênia, que morreu de tuberculose na Ilha da Madeira, aos 21 anos de idade. Há, aliás, no arquivo do descendente da condessa de Belmonte, o arquiteto Luciano Cavalcanti de Albuquerque, uma bela carta de d. Amélia descrevendo o sofrimento que a perda da filha lhe causara.
Do ponto de vista desses aspectos biográficos já conhecidos, de fato, a exumação dos corpos imperiais não trouxe grandes novidades. Assim mesmo representam contribuição significativa, pois a história inscrita no corpo das pessoas, a partir dos modernos recursos da ciência, pode resultar em descobertas formidáveis. Pode também servir como mais uma prova de algo que conhecíamos mas não tínhamos certeza. Com elas podemos virar a página sobre esse assunto, anular as especulações e partir para outra coisa. Esses corpos são documentos, tais como os papéis guardados há séculos nos arquivos. Servem como servem todas as informações que podem jogar luz sobre uma época, os costumes dessa época e as pessoas que nela viveram, soberanos ou escravos. Servem porque não sabemos o que o próximo biógrafo de d. Pedro buscará no futuro, quando talvez venha a trabalhar a história a partir de algum paradigma completamente inédito.
ISABEL LUSTOSA É HISTORIADORA DA FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, TITULAR DA CÁTEDRA SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA/MAISON DES SCIENCES DE L'HOMME E AUTORA DE D. PEDRO I (CIA. DAS LETRAS)
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