domingo, 2 de julho de 2023

Tentou o golpe, saiu da urna, FSP

 

Na última sexta-feira (30), o Tribunal Superior Eleitoral tirou de Jair Bolsonaro o direito de tentar destruir a democracia brasileira por dentro até 2030. Se ele quiser tentar golpe até lá, que o faça sem cargo público.

inelegibilidade de Bolsonaro foi uma vitória gigante do Brasil. Só foi possível porque a oposição venceu a eleição do ano passado, e porque os militares não toparam arriscar golpe por um derrotado. Ou vocês acham que o julgamento de sexta-feira teria acontecido se Bolsonaro ainda estivesse no Planalto?

O ex-presidente Jair Bolsonaro em coletiva de imprensa após retornar de Belo Horizonte, no aeroporto de Brasília - Gabriela Biló -20.jun.2023/Folhapress

É óbvio que não. Até sair do poder, Jair sofreu o número exato de zero sanções por seus crimes. Subornou o Congresso com orçamento secreto, a elite econômica com Paulo Guedes, os militares com cargos no governo. Quebrou o Brasil para comprar sua impunidade, e perdeu-a quando não teve mais orçamento, políticas econômicas ou cargos com que subornar.

Se tivesse vencido as eleições, Bolsonaro teria dobrado sua aposta golpista. Metade dos ministros do TSE presentes na sexta-feira já estaria presa, como também o estariam quaisquer membros do Judiciário que tentassem obrigar os bolsonaristas a cumprirem a lei. Os militares golpistas teriam recebido das urnas uma dose extra de coragem.

A frágil frente ampla que elegeu Lula já teria se dissolvido: os centristas que apoiaram a democracia no parlamento, na mídia e na elite teriam sido perseguidos pelos adesistas. Em caso de escalada golpista, a estratégia racional para a esquerda teria sido a radicalização, antes que qualquer resistência se tornasse impossível. Eu teria que pedir desculpas à esquerda por ter recomendado moderação esses anos todos.

As instituições foram fortes o suficiente para sobreviverem até a eleição, mas não teriam durado seis meses se menos de 1% do eleitorado tivesse votado diferente. As instituições conseguiram garantir o direito de voto aos brasileiros em 2022. Daí em diante, o Brasil é que protegeu suas instituições contra Jair Bolsonaro, derrotando-o na eleição presidencial.

Jair Bolsonaro tentou roubar a eleição de 2022 de todas as formas possíveis e tentou um golpe quando perdeu. Aparelhou as instituições sem qualquer limite. Mudou a Constituição três meses antes da eleição para poder gastar mais dinheiro. No dia da votação, seu governo colocou a polícia rodoviária na rua para impedir que os nordestinos votassem. Na véspera de Natal de 2022, três de seus seguidores, um dos quais com cargo comissionado em seu governo, tentaram explodir o aeroporto de Brasília.

E depois de mandar todo mundo pro golpe, Jair fugiu pra Disney.

Não, o sujeito que ameaçou o juiz de morte e tentou convencer a PM a espancar o time adversário não deve ter outra chance de disputar o campeonato.

Então é isso, Jair. Você foi condenado, está inelegível, e agora viverá sob guarda compartilhada da Michelle, do Valdemar e do PCO. Mas essa não é a hora de jogar em você toda nossa revolta com as mortes da pandemia, as perseguições à imprensa, o aparelhamento das instituições, as agressões contra os indígenas, as pessoas reduzidas a brigar por osso na porta do supermercado ou a tentativa de instaurar uma ditadura que nos teria roubado todo o dinheiro e todos os direitos.

A hora de fazer isso vai ser no dia da prisão.


Ruy Castro - A morte com aviso prévio, FSP

 Em 1826, aos 83 anos, o ex-presidente dos EUA Thomas Jefferson estava morrendo de diarreia. Mas queria chegar ao dia 4 de julho, 50º aniversário da Declaração da Independência, assinada por ele. Um dia, acordou e perguntou: "Hoje é 4 de julho?". Ao ouvir que sim, suspirou e morreu. Já o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen estava em coma em sua casa, em 1896, cercado pelos amigos. A enfermeira examinou-o e disse que ele parecia melhor. Ibsen protestou "Ao contrário!". E morreu no ato. E Mark Twain, autor de "Huckleberry Finn", nascido sob a passagem do cometa Halley em 1835, escreveu que só morreria quando o cometa passasse de novo. O Halley voltou no dia 10 de janeiro de 1910. Onze dias depois, Twain morreu.

Em 1959, aos 72 anos, Gilberto Amado, escritor e diplomata, chegou da rua vendendo saúde e pediu à funcionária: "Faça-me o melhor chá da sua vida, porque será o meu último". Ela o serviu, ele adorou e foi cochilar. Horas depois, viu-se que fora mesmo o seu último chá.

Gilberto pode ter morrido de prazer. Mas, nesta categoria, há possibilidades ainda melhores. O lendário jornalista Alcindo Guanabara, em 1918, e o poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, em 1964, ambos casados, morreram na cama com suas namoradas. Imagine o que devia ser, na época, ter um homem famoso, casado e morto na sua cama.

Em 1959, Dolores Duran chegou de manhãzinha em casa, vinda do Little Club, no Beco das Garrafas, onde cantava, e disse à empregada: "Que sono! Vou dormir até morrer!". Dito e feito. Tinha 29 anos. Já o cronista e compositor Antonio Maria foi mais prudente. Ao se recolher, deixou um bilhete para o colega de apartamento: "Se me encontrar dormindo, deixe. Morto acorde-me".

Mas Maria só morreu muito depois, em 1964, aos 43, na rua, de um infarto. Melhor assim, porque teve tempo para compor "Madrugada 3 e 5", "Canção da Volta" e "Manhã de Carnaval".

Hélio Schwartsman - Que bobagem!, FSP

 


Chega em breve às livrarias "Que Bobagem!", a ótima obra em que Natalia Pasternak e Carlos Orsi detonam várias das pseudociências que são consumidas por um público insuficientemente familiarizado com o método científico ou, pior, que o rejeita. A lista de alvos da dupla é ecumênica. Inclui desde presas fáceis, como a astrologia, a homeopatia e as curas energéticas, até práticas que gozam de maior prestígio, como a acupuntura e a psicanálise.

O tratamento que Pasternak Orsi dão às questões é amplo. Não só mostram como cada uma das pseudociências abordadas falha em mostrar que funciona como também descrevem os principais vieses cognitivos humanos que nos tornam vulneráveis à pregação, seja de charlatães, seja de adeptos convictos, ainda que equivocados.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 2 de julho de 2023, mostra sob um fundo azul escuro uma mistura de elementos simbólicos: ao centro da imagem um mapa astral; no alto à direita, um OVNI prestes a pousar no mesmo. No canto inferior direito, um manequim com o mapa dos pontos de acupuntura. Do lado esquerdo, na parte superior, um moedor de flores e sementes de madeira com alguns frascos de medicamentos homeopáticos ao lado. Na parte inferior do mesmo lado esquerdo, um divã. mesmo lado esquerdo, um divã.
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman, publicada neste domingo (2 de julho) na versão impressa da Folha - Annette Schwartsman

Os autores também fazem uma arqueologia bem completa dos temas. É assim que aprendemos, por exemplo, que a Medicina Tradicional Chinesa (MTC) é menos "tradicional" do que se supõe. Ela foi compilada nos anos 50 por ordem de Mao Tse-tung. Ele não acreditava em nada disso, mas resolveu difundir a MTC por considerar que era a única maneira de um país recém-saído da revolução comunista, com pouquíssimos médicos, oferecer tratamento a toda a população. Pouco importava que as terapias não fossem efetivas. Ou que descobrimos que o avistamento de discos voadores é um fenômeno da Guerra Fria. Em períodos anteriores, luzes estranhas no céu eram identificadas a anjos, não alienígenas.

Para não ficar só em elogios, acho que Pasternak e Orsi se precipitaram ao qualificar a ciência como "melhor descrição possível da realidade factual". Essa é uma posição respeitável, mas a discussão epistemológica é mais complicada. Num livro que não é tão sucinto (337 páginas), teria valido a pena gastar alguns parágrafos explicando as controvérsias entre realistas e antirrealistas. Casaria bem com o espírito antidogmático de "Que Bobagem!".