Não é fácil ser estrangeira e sustentar a alcunha de diva do cinema numa era em que Hollywood praticamente monopoliza parques exibidores e discussões cinéfilas, e em que mesmo as anglófonas acabam recorrendo aos blockbusters formulaicos, de Nicole Kidman a Cate Blanchett.
Isso só deixa a francesa Isabelle Huppert mais interessante. Do início nos anos 1970, sob a batuta de mestres da nouvelle vague, à indicação ao Oscar em 2017, por "Elle", a atriz nunca deixou de ter os holofotes contornando sua imagem, e é celebrada onde quer que vá.
Rainha de Cannes, outra alcunha que conquistou ao bater o recorde de ator com mais filmes exibidos no festival de cinema mais importante do mundo, Huppert chegou a esse patamar graças às escolhas de carreira, com tropeços como em qualquer outra, mas sempre com coerência.
E, mais importante, sem muito descanso. Nesta semana, ela lança nos cinemas do país um dos cinco filmes que estrelou no ano passado, "A Sindicalista". Entre um trabalho italiano, um britânico, um polonês e outro francês, o longa reforça suas raízes ao narrar uma história real, um escândalo que não cruzou as fronteiras da França, embora tenha implodido sua indústria de energia nuclear.
"Mas eu não me interesso por interpretar pessoas reais", diz ela, que em "A Sindicalista" vive Maureen Kearney, líder dos trabalhadores do setor que descobre uma negociação movida a interesses escusos que põe milhares de empregos em risco.
"A melhor parte de atuar é poder imaginar e criar sua própria fantasia. Eu acredito que, por trás de um filme, há sempre um outro filme inventado por seus atores. É essa a abordagem que tenho para o meu trabalho."
Assim, ela e o diretor Jean-Paul Salomé deixaram a protagonista quase caricata, levando o vermelho de seu batom e o loiro de seus cabelos ao limítrofe do artificial. Foi como criar uma personagem hitchcockiana, resume Huppert, que só se reuniu com a Maureen Kearney de verdade depois que já havia começado a gravar.
Na vida real, a sindicalista recebeu uma série de ameaças anônimas enquanto tentava expor um complô entre autoridades francesas e chinesas. Até que, em 2012, ela teve a casa invadida, o abdômen cortado e a vagina penetrada pelo cabo de uma faca. Mas houve quem dissesse que ela estava louca e que havia forjado o crime. É nessa disputa de narrativas que o roteiro se concentra.
A sindicalista do título não entra no rol de biografados do qual Huppert quer fugir, acredita a parisiense. O longa, afinal, é essencialmente um thriller e Kearney era irlandesa, para começo de conversa.
O suspense de "A Sindicalista" deriva da discussão sobre o estupro que a protagonista teria ou não sofrido. Delicado, o tema ganha contornos ainda mais complexos quando incorporado por Huppert, que viu sua indicação ao Oscar e a vitória no Globo de Ouro por "Elle" serem eclipsadas por uma polêmica.
No filme, sua personagem também é surpreendida na própria casa e violentada ali mesmo. Em vez de se restringir ao papel de vítima, porém, ela vai atrás de seu agressor, numa trama que, ao servir como um emaranhado complexo sobre desejo, consentimento e vingança, foi criticada por quem viu nela uma romantização.
Na visão de Huppert, é como se a controvérsia nunca tivesse existido. "Eu não sei de nada disso", diz, apesar das várias manchetes que, à época, atacaram ou defenderam o diretor holandês Paul Verhoeven. Cinema é provocação, afirma, e se o filme gerou discussão, então ótimo.
É isso o que ela buscava e ainda busca em seus trabalhos. Em "Violette" e "Um Assunto de Mulheres", ela já havia se rebelado contra o patriarcado, vencendo os prêmios de atuação nos festivais de Cannes e Veneza.
"A Professora de Piano", que deu a ela o segundo troféu do festival francês, também questionava o prazer. E, quando voltou a ganhar a italiana Taça Volpi, por "Mulheres Diabólicas", pôs fogo nas divisões de classe.
São apenas amostras de uma biografia de força ímpar, que a alçou ao segundo lugar de uma lista discutível, porém com o selo do jornal The New York Times, dos 25 melhores atores do século 21.
E no teatro, também, a parisiense demonstrou vigor para se estabelecer como a maior indicada da história ao prêmio Molière. Esteve ainda nos palcos de Londres com "Mary Stuart" e nos de Nova York com "Psicose 4.48" e "Quartett", que trouxe ao Brasil há 14 anos.
Qual é o segredo para o sucesso? "Eu sou muito consciente em relação ao meu trabalho. Escolho com cuidado as pessoas com quem vou trabalhar. O cinema se apoia no relacionamento entre o ator e o diretor –não basta encontrar um que seja bom, é preciso que ele esteja interessado em você."
Foi assim com Claude Chabrol, expoente da nouvelle vague que a dirigiu em "Um Assunto de Mulheres" e em outros seis longas, e com tantos outros nomes do cinema mundial. Huppert, afinal, não privilegia os franceses, e seu currículo está cheio de filmes dos mais variados países e gêneros.
Chabrol e Verhoeven se juntam a uma lista que inclui Jean-Luc Godard, Mia Hansen-Love, Michael Haneke, Jerzy Skolimowski, Claire Denis, Michael Cimino, Olivier Assayas, David O. Russell, Wes Anderson, Marco Bellocchio e Hong Sang-soo, sul-coreano do qual Huppert não esconde ser uma admiradora e com quem trabalhou em "A Câmera de Claire" e "A Visitante Francesa". São cerca de 150 longas, curtas e séries lançados.
Ao longo desses papéis, o cinema se transformou. E muito, diz Huppert. O que não mudou foi o papel da França como espécie de guardiã dos filmes de autor, da arte pela arte, acredita a atriz.
"Nós somos privilegiados, porque é um dos poucos países onde o cinema ainda significa muito. Não que não seja assim em outros lugares, mas neles é preciso batalhar para fazer cinema, enquanto aqui não precisamos nos preocupar com o aspecto comercial", diz ela, falando sobre os incentivos estatais que sustentam a indústria local.
Ela se beneficia disso em duas pontas. Além de atriz, ela é proprietária de dois cinemas em sua Paris natal, nos quais recupera clássicos de diferentes décadas.
Nem por isso ela deixaria de estrelar um grande blockbuster –um filme de super-herói talvez, que deve ser muito divertido de filmar. "Ainda assim é cinema. O cinema é versátil, não há uma única definição para ele. Vai da intimidade de um Hong Sang-Soo a projetos de milhões de dólares. É isso que o torna fascinante", afirma.
E, parte dessa engrenagem, é papel dela, também, fascinar. Mas, quando é questionada sobre a fama de ser uma das grandes damas do cinema francês, Huppert é discreta. "Você não vive, dia após dia, com esse conhecimento, com essa ciência. É sempre agradável ouvir coisas boas sobre você, mas elas não significam nada. É só o meu trabalho."