Há um mês, nas sedes dos Três Poderes, as obras de Victor Brecheret e Di Cavalcanti —e outros incontáveis artistas— foram danificadas por golpistas, mas nas ruas de São Paulo é a falta de conservação que ameaça o legado de dois dos principais representantes do modernismo brasileiro.
Um exemplo disso é o mural de Di Cavalcanti no Novotel São Paulo Jaraguá, antiga sede do jornal O Estado de S. Paulo, no centro da cidade. A obra foi feita nos anos 1950 com mais de 60 mil pastilhas para homenagear a imprensa.
No entanto, faltam pastilhas no mosaico e a fonte que fica em frente à obra virou uma espécie de lixeira, com embalagens de alimentos boiando. A situação não é melhor no mural feito por Di Cavalcanti no térreo do edifício Triângulo, também no centro de São Paulo.
A obra tem manchas de oxidação, faltam pastilhas nos mosaicos e há remendos que descaracterizam o desenho original.
Nos anos 1990, uma fogueira montada por pessoas em situação de rua atingiu a obra, motivo pelo qual pastilhas de vidro precisaram ser trocadas por peças de cerâmica. O mosaico retrata o cotidiano de operários, tema caro a Di Cavalcanti.
"A temática da maioria dessas obras é o trabalhador. A ideia dele era construir um tipo de arte que fosse acessível ao grande público e, ao mesmo tempo, tivesse relevância social e artística", diz Marcelo Bortoloti, autor de uma biografia sobre o pintor que será lançada ainda neste ano pela Companhia das Letras.
Bortoloti diz que Di Cavalcanti começou a produzir murais a partir dos anos 1950 por influência dos muralistas mexicanos, como Diego Rivera. A ideia desse grupo de artistas era fazer uma arte que não estivesse restrita aos museus, mas que pudesse ser apreciada pela população em geral.
De acordo com o especialista, a falta de conservação atenta contra o caráter democrático das obras de Di Cavalcanti. "Trabalhos em locais públicos são voltados ao povo. Esse aspecto popular acaba se perdendo por causa da falta de manutenção, o que é um prejuízo grave", diz Bortoloti.
Sandra Brecheret faz coro a essa opinião. Filha do escultor Victor Brecheret, ela diz que as obras públicas de seu pai são uma herança que ele deixou à população. "Essas obras não são da prefeitura. Elas são do povo brasileiro. Me sinto muito decepcionada ao perceber que as autoridades não fazem nada para preservar um patrimônio valioso desses," diz ela, que é presidente da Fundação Escultor Victor Brecheret.
A maior preocupação dela é a obra "Depois do Banho", que foi instalada no largo do Arouche, no centro paulistano, durante o governo do prefeito Prestes Maia, na virada da década de 1930 para os anos 1940. O temor da herdeira de Brecheret não é injustificado.
A escultura está cercada por fezes e por roupas abandonadas. Na base que sustenta a obra, é possível ver manchas de urina. Os problemas, porém, não param por aí.
Ao lado da escultura, havia quatro bustos. No entanto, eles foram roubados e só restou o pedestal sobre o qual eles foram instalados. Funcionários de uma floricultura que fica em frente aos monumentos dizem que o policiamento na região é escasso durante a noite, o que facilita a ação de criminosos.
Sandra Brecheret diz, inclusive, que essa floricultura é um dos motivos pelos quais a peça ainda está de pé. "A loja fecha muito tarde, por isso a peça não foi furtada. Mas, se deixar, ela não dura uma semana e é roubada para ser vendida como uma bola de bronze."
A mesma sorte não teve uma escultura das três graças, peça que foi furtada do cemitério da Consolação. "Eu havia falado para os proprietários preservarem a peça, mas não quiseram. O Brecheret não existe mais. Venderam, e outras obras vão se perder se deixarem."
A cruzada de Sandra Brecheret contra a falta de cuidado com as obras de seu pai não é recente. Em 2016, ela acionou o Ministério Público de São Paulo para pedir que o monumento às Bandeiras fosse preservado. A obra é um dos símbolos de São Paulo e está localizada nos arredores do parque Ibirapuera. À época, a escultura havia sido pichada com tinta colorida. Depois do incidente, ela diz que a conservação da obra melhorou.
"É o único monumento público dele que está preservado, porque é uma obra muito popular. Aí pega mal", diz ela. "Mas as outras viraram mictório da população em situação de rua."
No entanto, as obras de Brecheret e Di Cavalcanti não são as únicas que sofrem com a falta de conservação.
Na praça Dom José Gaspar, um busto do pianista polonês Frédéric Chopin que foi instalado em 1954 apresenta pichações e está com a placa informativa ilegível, de modo que a população não consegue saber mais detalhes sobre a obra.
Já no largo da Memória, o monumento projetado pelo arquiteto Victor Dubugras e pelo artista plástico José Wasth Rodrigues em comemoração do centenário da Independência está em péssimo estado.
Há pichações no pórtico neoclássico do monumento e no obelisco que fica no centro do largo. O chafariz localizado na parte superior da estrutura está repleto de lixo, com tampas de garrafa, embalagens de biscoito e bitucas de cigarro boiando na água.
Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Giselle Beiguelman diz que essas obras estão degradadas porque ocupam uma área da cidade negligenciada pelas autoridades. São regiões do centro marcadas pela vulnerabilidade social e que concentram grande número de pessoas em situação de rua.
"O poder público fecha os olhos para essas áreas porque elas não concentram o poder econômico. Os monumentos estão na mesma condição que essas praças estão e nas mesmas condições que essas pessoas estão sendo tratadas."
Ela acrescenta que alguns monumentos espalhados pela cidade prestam homenagem a figuras que significam pouco para a população.
"São pessoas que fizeram sentido num determinado momento da história do poder. Só que agora as pessoas não se veem nelas e nem sabem quem são esses homenageados. Eles não funcionam como marco de nada."
Em nota, a Secretaria Municipal de Cultura diz que realiza periodicamente a limpeza de todas as obras em espaços públicos da cidade.
A pasta diz que a escultura "Depois do Banho" é uma prioridade do Adote uma Obra Artística, iniciativa que estabelece parceria com pessoas físicas ou jurídicas para preservar obras de arte. No entanto, segundo a secretaria, não houve interessados.
Em relação ao mosaico feito por Di Cavalcanti no edifício Triângulo, a pasta diz que a obra está fora da jurisdição da prefeitura por integrar uma área privada. "Contudo, por ser um edifício tombado, há uma responsabilidade dos proprietários de preservarem o mosaico da fachada."