Pelo menos três comentaristas recorreram a um trabalho de 1956, "Quando a Profecia Falha", de Festinger, Riecken e Schachter, para tratar do comportamento obtuso dos golpistas invasores das sedes dos três Poderes. Fanáticos adotam quaisquer narrativas capazes de justificar o fracasso de suas crenças e predições.
Bolsonaro fugiu, mas muitos acreditavam que a eleição fora fraudada e a posse de Lula, uma encenação. Messias voltaria de Orlando para assumir o governo, ungido por Deus e pelo Augusto Heleno. Quanto mais absurdo, mais acreditavam.
Quem não se deu conta da prontidão para o delírio, ainda, não viveu no Brasil os últimos cinco anos, a partir da mamadeira de piroca. Não foram só os crédulos, contudo, que elegeram e quase reelegeram o deputado milico adepto de torturador.
Vários de seus apoiadores endinheirados hoje posam de democratas desde o berço, mas todos viram o que eles fizeram nos verões passados. Melhor dizendo, no longo inverno ético e republicano que ajudaram a instaurar, tapando o sol da obviedade com uma peneira tecida de interesses, insensibilidade e oportunismo.
Se for para buscar textos velhos de meio século para iluminar o presente, que seja. Na mesma época, Joseph Wolpe (1954, 1958), lançou as bases da terapia de dessensibilização sistemática, que pode ajudar a entender como se chegou, no Brasil, a tanta perversidade no hiato bolsonarista.
Para isso, o conceito de Wolpe precisa ser esticado um tanto, como de hábito em jornalismo. Na origem, a proposta consistia em combinar estímulos ansiogênicos (causadores de ansiedade) com estímulos positivos —em animais experimentais, coisas como relaxamento, comida e sexo. Com o tempo, o mecanismo de inibição recíproca faria o desconforto desaparecer.
No caso brasileiro, seria útil falar em dessensibilização sistemática do andar de cima. Herdeiros da escravidão, os não negros ou embranquecidos nos acostumamos com a realidade de violências cotidianas, pois sempre vieram associadas com benefícios que as naturalizam para corações e mentes enviesados.
Estímulos positivos nem necessitam mais acompanhar desumanidades repulsivas, como o indulto no caso Carandiru. O condicionamento histórico criou como que uma predisposição para passar pano na barbárie explicitada por Bolsonaro desde o primeiro dia na Presidência, e muito antes.
Algo assim talvez explique a rápida adesão de liberais hoje entusiastas da frente ampla aos desqualificados no Planalto. Elogios nojentos a Ustra, à guerra civil e à ponta da praia; as frases arrotadas sobre quilombolas em arrobas, estupro imerecido, comer gente; as rachadinhas e a vizinhança com milicianos etc. —não faltaram evidências de quem se tratava.
Bastou a promessa de austeridade fiscal (traduzindo: ambiente propício às transações de mercado) para se ignorarem sinais patentes de atrocidades por vir. As instituições estavam funcionando, garantiam.
Crimes sanitários (Covid) e socioambientais (desmatamento, garimpo, grilagem) tiveram de acumular-se para que a parcela menos ogra do empresariado, até então acampada no posto Ipiranga, batesse em retirada. Mas só marcharam no rumo certo quando a terceira via da ruralista foi interditada pelas pesquisas.
Antes tarde que nunca. Recém-convertidos precisam ser aceitos, é certo, pois afinal não se provaram golpistas. Tanto quanto precisam ser processados e condenados todos os que permaneceram com Bolsonaro e encenaram, fomentaram ou custearam a intentona mais que anunciada. Sem anistia, de novo, para militares.
Cabe aos comentaristas e aos cientistas sociais, entretanto, não perder de vista que há muitas formas de golpear o estado de direito, como se vê na história recente do Brasil. Já apoiaram Castello, Médici, Collor, Moro, Temer e Bolsonaro, e não será surpresa se em 2026 tomarem partido mais uma vez do que há de pior no país.