domingo, 15 de janeiro de 2023

Dessensibilização progressiva abriu caminho para intentona golpista, Marcelo Leite, FSP

 Pelo menos três comentaristas recorreram a um trabalho de 1956, "Quando a Profecia Falha", de Festinger, Riecken e Schachter, para tratar do comportamento obtuso dos golpistas invasores das sedes dos três Poderes. Fanáticos adotam quaisquer narrativas capazes de justificar o fracasso de suas crenças e predições.

Bolsonaro fugiu, mas muitos acreditavam que a eleição fora fraudada e a posse de Lula, uma encenação. Messias voltaria de Orlando para assumir o governo, ungido por Deus e pelo Augusto Heleno. Quanto mais absurdo, mais acreditavam.

Estrago causado por golpistas no Palácio do Planalto, em Brasília - Gabriela Biló - 8.jan.2023/Folhapress

Quem não se deu conta da prontidão para o delírio, ainda, não viveu no Brasil os últimos cinco anos, a partir da mamadeira de piroca. Não foram só os crédulos, contudo, que elegeram e quase reelegeram o deputado milico adepto de torturador.

Vários de seus apoiadores endinheirados hoje posam de democratas desde o berço, mas todos viram o que eles fizeram nos verões passados. Melhor dizendo, no longo inverno ético e republicano que ajudaram a instaurar, tapando o sol da obviedade com uma peneira tecida de interesses, insensibilidade e oportunismo.

Se for para buscar textos velhos de meio século para iluminar o presente, que seja. Na mesma época, Joseph Wolpe (1954, 1958), lançou as bases da terapia de dessensibilização sistemática, que pode ajudar a entender como se chegou, no Brasil, a tanta perversidade no hiato bolsonarista.

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Para isso, o conceito de Wolpe precisa ser esticado um tanto, como de hábito em jornalismo. Na origem, a proposta consistia em combinar estímulos ansiogênicos (causadores de ansiedade) com estímulos positivos —em animais experimentais, coisas como relaxamento, comida e sexo. Com o tempo, o mecanismo de inibição recíproca faria o desconforto desaparecer.

No caso brasileiro, seria útil falar em dessensibilização sistemática do andar de cima. Herdeiros da escravidão, os não negros ou embranquecidos nos acostumamos com a realidade de violências cotidianas, pois sempre vieram associadas com benefícios que as naturalizam para corações e mentes enviesados.

Estímulos positivos nem necessitam mais acompanhar desumanidades repulsivas, como o indulto no caso Carandiru. O condicionamento histórico criou como que uma predisposição para passar pano na barbárie explicitada por Bolsonaro desde o primeiro dia na Presidência, e muito antes.

Algo assim talvez explique a rápida adesão de liberais hoje entusiastas da frente ampla aos desqualificados no Planalto. Elogios nojentos a Ustra, à guerra civil e à ponta da praia; as frases arrotadas sobre quilombolas em arrobasestupro imerecido, comer gente; as rachadinhas e a vizinhança com milicianos etc. —não faltaram evidências de quem se tratava.

Bastou a promessa de austeridade fiscal (traduzindo: ambiente propício às transações de mercado) para se ignorarem sinais patentes de atrocidades por vir. As instituições estavam funcionando, garantiam.

Crimes sanitários (Covid) e socioambientais (desmatamento, garimpo, grilagem) tiveram de acumular-se para que a parcela menos ogra do empresariado, até então acampada no posto Ipiranga, batesse em retirada. Mas só marcharam no rumo certo quando a terceira via da ruralista foi interditada pelas pesquisas.

Antes tarde que nunca. Recém-convertidos precisam ser aceitos, é certo, pois afinal não se provaram golpistas. Tanto quanto precisam ser processados e condenados todos os que permaneceram com Bolsonaro e encenaram, fomentaram ou custearam a intentona mais que anunciada. Sem anistia, de novo, para militares.

Cabe aos comentaristas e aos cientistas sociais, entretanto, não perder de vista que há muitas formas de golpear o estado de direito, como se vê na história recente do Brasil. Já apoiaram Castello, Médici, Collor, Moro, Temer e Bolsonaro, e não será surpresa se em 2026 tomarem partido mais uma vez do que há de pior no país.

Presidente do TCU e governo Lula articulam troca de dívidas de empreiteiras da Lava Jato por obras, OESP

 Encampada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva, a ideia de permitir que empreiteiras da Operação Lava Jato paguem multas de seus acordos de leniência com a execução de obras públicas tem como principal articulador o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas.

Em um passado recente, o ministro fez uma cruzada para impor sanções mais duras do que as previstas nos acordos e foi tido pelas empresas como algoz. A ideia encontra precedentes em pactos de Ministérios Públicos estaduais, mas sua legalidade e efetividade no caso das empreiteiras dividem a opinião de especialistas ouvidos pelo Estadão

O ministro tem trânsito político com petistas. Em dezembro de 2021, esteve no jantar em São Paulo no qual Lula apareceu pela primeira vez ao lado do ex-governador Geraldo Alckmin, hoje vice-presidente. Após as eleições, procurou interlocutores do governo, como o ministro da Casa Civil, Rui Costa, para tratar do tema das leniências.

Procurado pelo Estadão, Bruno Dantas não quis se manifestar sobre o assunto tratado nesta reportagem. Ele, Costa e integrantes da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Controladoria-Geral da União (CGU) já se reuniram para discutir o assunto. A Casa Civil de Lula confirmou que o ministro foi um dos que sugeriram e incentivaram a ideia.

A questão principal é sobre como as obras poderiam cobrir débitos bilionários. Os acordos preveem ressarcimento aos cofres principalmente de estatais, além de destinações ao Ministério Público Federal e à própria CGU – conforme cláusulas destes termos homologados pela Justiça.

No segundo dia de governo, Costa disse, em entrevista à GloboNews, que a proposta é uma forma de acelerar obras “sem depender do Orçamento direto da União”. “São recursos que não estão lançados no Orçamento e poderiam vir para essas obras rapidamente por serem executadas pelas próprias empresas devedoras, fruto dos acordos de leniência”, afirmou o ministro da Casa Civil.

Acordos de leniência são feitos na esfera penal entre empresas, a União e o Ministério Público, para que, ao final, as pessoas jurídicas confessem fatos ilícitos e se comprometam a pagar multas em troca de condenações mais brandas. Após as negociações, o documento com os compromissos assumidos pela empresa e as sanções a ela impostas, como as multas, é submetido à Justiça para homologação.

O Presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro  Bruno Dantas.
O Presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Bruno Dantas. Foto: Wilton Junior/Estadão

Plataforma

Desde o governo Jair Bolsonaro, Dantas tem defendido a proposta de usar obras para o pagamento dos débitos. Em 2019, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, reuniu o TCU, a AGU e a CGU para lançar uma plataforma com propostas para destravar obras no País. O tema dos acordos de leniência ficou a cargo de Dantas, que é professor de doutorado da FGV e ensina, entre outros assuntos, o consensualismo na administração pública.

Após avaliar a proposta e seus precedentes, o ministro do TCU apresentou a ideia ao então ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, que se entusiasmou com a sugestão. O projeto, porém, não foi levado a cabo no governo Bolsonaro.

Entre as empresas que firmaram acordos de leniência com o MPF, a CGU e a AGU estão empreiteiras que integravam o “clube vip” da Lava Jato. Elas confessaram ter formado um cartel para fraudar contratos da Petrobras e outras estatais, além de pagar propina a agentes públicos e políticos. Somados, os acordos das cinco principais companhias somam R$ 8,1 bilhões. Até hoje, apenas pouco mais de R$ 1 bilhão foi quitado, de acordo com informações da CGU.

Fazem parte do grupo Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez, UTC e Camargo Corrêa. Boa parte das lenientes está passando ou passou pelo processo de recuperação judicial, e não tem mais a mesma saúde financeira. Como revelou o Estadão, o “clube” tem se articulado para rever os acordos de leniência em razão da dificuldade de liquidá-los.

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‘Aperitivo’

Articulador da ideia, Dantas já foi um defensor de que empresas recebessem sanções mais duras do que aquelas definidas nos acordos de leniência em processos da Lava Jato julgados na esfera penal. Em entrevista ao Estadão, em 2017, chegou a dizer que os valores previstos nos acordos eram apenas um “aperitivo da refeição completa”.

Dantas entrou em um embate aberto com o então juiz federal Sérgio Moro em 2018 após uma decisão do magistrado que proibia órgãos de controle como o TCU de ter acesso às leniências para punir delatores. O ministro chamou o despacho de “carteirada”. A Justiça acabou liberando o acesso ao material, o que gerou rigorosas sanções impostas pelo TCU e pela Receita Federal.

No caso do TCU, a Corte aplicou multas e até mesmo declaração de inidoneidade – o que, na prática, impediria as empresas de voltarem a participar de licitações. Sob o argumento de que a decisão esvaziava os acordos de leniência, empreiteiras foram ao STF e conseguiram suspender, por exemplo, os efeitos de um acórdão do TCU – do qual Dantas era relator – em um caso relacionado a desvios e sobrepreços na construção da Usina de Angra III, pela Eletronuclear.

Além dos choques com Moro e empresas, o atual presidente do TCU também manteve relação conflituosa com procuradores da Lava Jato. Foi, por exemplo, relator do processo que puniu procuradores em razão de irregularidades em gastos com diárias da força-tarefa. Também é relator do processo que investiga Moro em razão de seu emprego na consultoria Alvarez & Marsal.

Procurados, as empreiteiras e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), não quiseram se manifestar.