domingo, 10 de julho de 2022

Adiar eleição e prorrogar mandatos é o sonho dos sem-voto, Elio Gaspari - FSP

 Está em circulação mais um expediente de magia para tumultuar a eleição. Ainda no nascedouro, nada indica que prospere, mas convém registrar sua existência. Afinal, as conversas chegaram a pessoas que já viram muita coisa e elas não gostaram do que ouviram.

O lance de magia negra circula há mais de um mês, com duas versões. A primeira é recente. A segunda é mais velha.

O presidente Jair Bolsonaro (PL) em evento no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 21.fev.22/Folhapress

A versão recente tem três fases.

Nela, milícias digitais e mobilizações semelhantes às do ano passado criariam um clima de instabilidade a partir da Semana da Pátria.

Armado o fuzuê, vozes pretensamente pacificadoras defenderiam o adiamento das eleições, com a votação de uma emenda constitucional. Junto com essa emenda seriam prorrogados todos os mandatos, de congressistas, governadores e, é claro, do presidente da República.

A segunda versão, mais velha, tem o mesmo desfecho, mas começa no dia da eleição, com ou sem tumultos populares. Nela, o coração da manobra está em provocar um apagão no fornecimento de energia por algumas horas em duas ou três grandes cidades, atingindo-se um significativo número de eleitores.

Melada a eleição, aparece a mesma turma pacificadora, marcando uma nova data. Calcula-se que isso só seria possível depois de pelo menos dois meses. Tendo ocorrido uma catástrofe dessas proporções, a totalização eletrônica estaria ferida. Nesse caso, o hiato seria maior. Assim, chega-se ao mesmo desfecho da versão anterior: prorrogam-se os mandatos.

Por todos os motivos, essas piruetas não teriam a menor chance de avançar. Contudo, os antecedentes dos principais personagens da manobra recomendam cautela e prevenção.

Bolsonaro cultiva o Apocalipse. Em 2019, quando o Chile foi sacudido por desordens, ele profetizou: "O que aconteceu no Chile vai ser fichinha perto do que pode acontecer no Brasil. Todos nós pagaremos um preço que levará anos para ser pago, se é que o Brasil não possa ainda sair da normalidade democrática que vocês tanto defendem".

Em março de 2020, durante os meses dramáticos da pandemia, ele foi claro: "O caos está aí na nossa cara". Não estava. A coisa mais parecida com o caos ocorrida durante a pandemia foi a administração do Ministério da Saúde, com seus quatro titulares.

Um ano depois, Bolsonaro dizia que o Brasil se tornou "um barril de pólvora": "Estamos na iminência de ter um problema sério".

Veio o Sete de Setembro, caravanas de ônibus foram a Brasília e caminhoneiros furaram o bloqueio da Esplanada, anunciando que invadiriam o Supremo Tribunal Federal. Aconteceram manifestações ordeiras em diversas cidades.

Bolsonaro escalou: ​​"A partir de hoje, uma nova história começa a ser escrita aqui no Brasil". Em São Paulo, insultou ministros do Supremo.

Uma intervenção do ex-presidente Michel Temer jogou água na fervura. De lá para cá o "barril de pólvora" ficou em paz, o caos não veio e não aconteceu um só "problema sério" além da suspeição lançada sobre as urnas eletrônicas pelo presidente e pelos generais palacianos.

Na quinta-feira, Bolsonaro informou que se reunirá com os embaixadores estrangeiros para expor seus argumentos contra as urnas que o elegeram. Isso nunca aconteceu nos 200 anos de Brasil independente. Bolsonaro deu seu recado críptico: "Você sabe o que está em jogo, sabe como deve se preparar".

Como ensinava o sábio Marco Maciel, no dia Sete de Setembro e nos seguintes pode acontecer muita coisa, "inclusive nada".

O sonho de um caos deliberadamente fabricado circula agora com o enfeite do adiamento das eleições e com o presente da prorrogação dos mandatos. Um Congresso que corre o risco de grande renovação pode gostar dessa ideia. Estima-se que metade dos deputados não voltem a Brasília. Afinal, Bolsonaro dispõe da benevolência do doutor Arthur Lira.

Em seus períodos democráticos, o Brasil nunca teve prorrogação de mandato presidencial. Na última ditadura, Castello Branco teve seu mandato prorrogado por um ano e rebarbou uma segunda prorrogação. Emílio Médici, o mais popular dos generais, matou no nascedouro uma manobra prorrogacionista.

A casa abandonada e a história, José Henrique Mariante, FSP

 "Parentes da 'mulher da casa abandonada' são investigados por abandono de incapaz"; "Entenda por que a mulher da casa abandonada não pode ser presa"; "A Mulher da Casa Abandonada: como está a saúde de cães resgatados"; "A Mulher da Casa Abandonada: saiba como estão os personagens do caso"; "Por que o FBI não pode prender a 'mulher da casa abandonada?"; "A Mulher da Casa Abandonada: Veja novas fotos do interior da mansão"; "'Acabou a paz': o impacto do podcast da 'casa abandonada' em Higienópolis".

"A Mulher da Casa Abandonada" é um podcast produzido pela Folha, de autoria do jornalista Chico Felitti. A explicação só serve para quem estava em Marte nas últimas semanas. A novela "true crime", que conta a incrível e hedionda história de um casal que escraviza uma mulher, explodiu em audiência sem mesmo ter chegado ao fim, e deixou de ser uma reportagem do jornal para habitar títulos de outros muitos sites jornalísticos (uns nem tanto), como os do parágrafo anterior, e de um oceano de postagens em redes sociais. E as preocupações de leitores e moradores do bairro paulistano onde a casa está abandonada. Ou estava.

"A gente imaginava que poderia ser grande, mas não desse jeito. É um marco do podcast no Brasil", afirma Magê Flores, editora de Podcasts da Folha e coordenadora do projeto escrito por Felitti, um colaborador antigo do jornal, conhecido pela rara capacidade de desvendar personagens absolutamente incomuns no meio da paisagem dura de São Paulo. Gente anônima ou nem tanto, para quem a maioria olha de lado. É dele a reportagem que virou livro sobre o Fofão da Augusta, credencial que jornal e jornalista usam na apresentação do podcast.

Felitti é o observador que narra a história em primeira pessoa. Sua curiosidade em torno de uma casa visualmente abandonada, no bairro em que mora, e da excêntrica proprietária transporta os ouvintes para um enredo que aos poucos vai ganhando contornos cinematográficos. A descrição dos capítulos está publicada na Folha desde o início da série. Os inúmeros detalhes, porém, consomem a audiência. Rapidamente, a curiosidade já não é do repórter apenas. Isso explica quase todo mundo sair dos primeiros episódios vasculhando o Google atrás de mais informações. E, obviamente, o sucesso do programa.

A coisa, no entanto, já está em outro patamar. O policialesco Cidade Alerta mantinha link ao vivo na frente da casa na última semana. O departamento de cenografia da TV Record montou uma réplica do interior da residência, a partir de fotos e informações retiradas de um volumoso inventário da família, e o apresentador em certo momento disse ter recebido uma informação exclusiva de sua própria mãe. Um garoto passou a narrar no Instagram a convivência com o vizinho de apartamento, que seria filho da protagonista. A história, claramente, já saiu das mãos de Felitti e da Folha, mas e as consequências?

Ilustração mostra microfone preto entre parênteses, colchetes e chaves
Carvall

"Tomamos todos os cuidados, mas é uma história que ficou escondida por muito tempo, causa comoção e, infelizmente, esse ímpeto de justiça com as próprias mãos", diz Magê. "E que continua acontecendo agora, na nossa frente."

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Um leitor escreveu ao ombudsman para saber se o jornal está consciente dos riscos que a mulher e a casa correm em tempos conturbados como os atuais, tão violentos e polarizados. Uma leitora, moradora de Higienópolis, se queixou da presença ruidosa de curiosos e da mídia, das tentativas de invasão, pichações e escaladas de árvores do entorno, da "quebra da segurança coletiva em homenagem ao direito a informação". Questionada, a Secretaria de Redação diz enfatizar, na abertura de cada episódio, "o caráter técnico e jornalístico da reportagem de notório interesse público e o repúdio a qualquer forma de perseguição". Também por isso o jornal estaria sendo "cuidadoso ao noticiar os impactos da veiculação do documentário no cotidiano do bairro, embora sem ignorar que esses efeitos existem e merecem tratamento jornalístico".

Folha, no entanto, fez uma única reportagem até aqui sobre o fenômeno, quando noticiou também o resgate de animais da casa no último fim de semana. É muito pouco.

"A Mulher da Casa Abandonada" mexe com o inconsciente da cidade, com seu passado aristocrático e racista mal resolvido. Higienópolis, cenário principal da novela, é o lugar que um dia temeu uma estação de metrô e a gente diferenciada que viria pelos trens. Em que o delegado deputado abateu bandido a tiros em plena avenida e foi aplaudido. E, desde o advento do podcast, o bairro da milionária que vive em petição de miséria, dentro de um casarão, assombrada por sua própria existência. Não entender que tudo isso faz parte de um mesmo enredo é recusar a história. O jornal não pode se dar tamanho luxo.

Hélio Schwartsman - Os saltos da natureza - fsp

 "Natura non facit saltus" (a natureza não dá pulos). A frase é de Leibniz, mas quem a popularizou foi Charles Darwin, que a repete seis vezes em "A Origem das Espécies". Não é para menos. A lição fundamental do darwinismo é que a evolução ocorre através de pequenas modificações que se acumulam na profundidade do tempo geológico. Não obstante, quando se discute o lugar do homem no mundo biológico, esquecemos esse princípio e embarcamos em narrativas que nos colocam no ápex da criação.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 10 de julho de 2022, mostra, sob um fundo cor de laranja, uma mosca que ocupa todo o primeiro plano da imagem; ela olha na direção de um espelho de chão que se encontra em segundo plano, do lado direito do quadro.
Annette Schwartsman

Esse suposto excepcionalismo humano fica escancarado na questão da consciência. Por muito tempo a descrevemos como atributo exclusivamente humano. Melhores e mais recentes pesquisas, entretanto, vão revelando que não é bem assim. Ainda que bichos não pareçam capazes de se perguntar pelo sentido da vida, há indícios de que boa parte do reino animal apresenta algum grau de consciência.

"Super Fly" (supermosca), de Jonathan Balcombe, estende esse esforço aos Diptera, ordem que inclui moscas, mosquitos, mutucas e borrachudos. O autor descreve vários experimentos sugestivos de que até as modestas moscas de fruta são capazes de comportamentos flexíveis e com intencionalidade —marcas da consciência. Parentes delas, três tipos de formiga, passariam até no teste de reconhecer-se no espelho, categoria em que está a elite intelectual da bicharada, representada por humanos, chimpanzés, golfinhos e mais poucas espécies.

As repercussões desses achados para a ética não são desprezíveis. Fica mais difícil encontrar limites naturais para definir quais animais devem ser objeto de nossa consideração moral e quais não precisam. Qualquer decisão aí soará caprichosamente arbitrária.

Os Diptera saem em desvantagem. Eles não despertam muita solidariedade humana. Não sem motivos. Metade de todos os diagnósticos clínicos de doenças feitos no mundo tem insetos como agente causador, a maior parte mosquitos.

helio@uol.com.br