quinta-feira, 5 de maio de 2022

Sérgio Rodrigues Fascismo brasileiro é de manual, FSP

 Outro dia, no Twitter, observei que apoiadores do governo –e seus bots, que se multiplicaram nas últimas semanas– demonstram grande nervosismo quando são chamados de fascistas.

Um deles, não sei se humano ou robótico (faz diferença?), me desafiou a definir a palavra e apresentar um único argumento em defesa da afirmação. Um só? Que tal 14?

bolsonarismo não é apenas uma forma de fascismo. É uma forma especialmente bem acabada daquilo que o pensador italiano Umberto Eco (1932-2016) chamou de "Ur-fascismo" ou "fascismo eterno". É fascismo de manual.

0
Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro participam de ato no 1º de Maio, na avenida Paulista - Eduardo Knapp - 1º.mai.2022/Folhapress

Numa conferência de 1995, incluída no livro "Cinco Escritos Morais" e depois publicada à parte como "O Fascismo Eterno" (Record, ambos), o ex-menino levado a cultuar Mussolini faz uma lista de 14 características do fascismo.

Ressalva que nem todos os requisitos precisam ser preenchidos para haver fascismo, pois este tem certa maleabilidade. No caso do bolsonarismo, todos os 14 são, como veremos.

Primeiro é preciso entender como, sendo tão fascista, o bolsonarismo pode ter a pretensão de se esquivar de uma palavra que veste como luva.

Isso se deve a uma deterioração da linguagem iniciada há décadas, quando, talvez por se julgar a salvo do fascismo real, parte da esquerda passou a empregar a palavra de modo abrangente demais, esvaziando-a.

A ideia era xingar adversários políticos em geral ou denunciar o autoritarismo cotidiano, as pequenas violências que dormem no subsolo da civilidade. No dia em que um acadêmico chamou Caetano Veloso de fascista (meninos, eu vi!), ficou claro que a palavra já não prestava.

No entanto, hoje precisamos dela como nunca, e não só no Brasil. Será possível devolver à palavra fascista seu gume, sua gosma, seus engulhos?

Vou resumir a lista de Eco e acrescentar, de forma bem sucinta e incompleta, alguns dos muitos dados históricos que fazem do bolsonarismo um fascismo modelar.

Os três primeiros itens são o culto da tradição ("ah, o regime militar, ah, o Império..."), a recusa da modernidade ("vacina mata, a Terra é plana") e o ódio à cultura ("artista é tudo vagabundo").

Em seguida vêm a negação do pensamento crítico, do debate e da negociação ("o STF é o inimigo") e dois itens que dispensam explicação, por serem bolsonarismo puro: o medo do diferente e o ressentimento nascido do fracasso individual ou social (Mário Frias à frente da cultura etc.).

Os itens seguintes são nacionalismo ("Brasil acima de tudo"), humilhação diante da suposta riqueza do inimigo ("abaixo a lei Rouanet, como pode minha empregada ir à Disney, cadê os bilhões dados aos regimes de esquerda?"), culto à guerra permanente e "elitismo de massa" –que, para diferenciar do aristocrático, Eco associa à hierarquia militar.

Os requisitos de números 11 e 12 são o culto do herói ("mito, mito", mas serve até Daniel Silveira) e este candidato a alegoria mais vistosa do desfile bolsonarista, o desvio da potência sexual para as armas. "Seus jogos de guerra são devidos a uma inveja do pênis permanente", diz Eco.

Completam a lista o "populismo qualitativo", em que o líder afirma falar pelo povo e isso basta, pois este, o povo, não passa de "ficção teatral" (como nas motociatas); e aquilo que George Orwell batizou de "novilíngua", uma linguagem empobrecida e sistematicamente deturpada.

Que vem a ser, claro, o que permite a um fascista dizer que não é fascista, não, imagina! Olho vivo com essa cambada.


O ministro sem qualidades, Conrado Hübner Mendes, FSP

 

Cristãos estão irritados com André Mendonça. Não quaisquer cristãos, mas os intérpretes de uma Bíblia paralela, adeptos de um cristianismo sem Cristo, cheio de grito, ódio e permutas lucrativas, livres de imposto, com o demônio.

Silas Malafaia está "terrivelmente decepcionado" com o ministro que "se rende ao ditador da toga e envergonha o povo evangélico". O "ditador, cretino e desgraçado!" foi para Alexandre de Moraes.

Bolsonaristas estão furiosos com André Mendonça. Seu voto de condenação de Daniel Silveira foi considerado por Carla Zambelli uma "vergonha". Janaína Paschoal tuitou "Amados, eu não sou hipócrita!" Eduardo Bolsonaro viu um Silveira "perseguido e mesmo assassinado com requintes de tortura".

Ministro André Mendença na última sessão plenária deste ano judiciário de 2021.Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Ministro André Mendonça durante sessão no STF - Rosinei Coutinho/SCO/STF

Magno Malta se disse "terrivelmente representado" pelo voto de Kassio Nunes. Na jurisprudência da liberdade de expressão de Nunes, professor que o critica é criminoso (calúnia, injúria e difamação), punível com prisão. Deputado que ameaça ministros de morte é bravateiro e fanfarrão no exercício da liberdade, premiável com eleição.

O ministro "terrivelmente evangélico" correu para se explicar. Sentiu "dever de esclarecer que: como cristão, não creio que tenha sido chamado para endossar comportamentos que incitam violência; como jurista, a avalizar graves ameaças físicas contra quem quer que seja."

Esqueceu-se que, como ministro, sua identidade cristã não importa. Ao menos na liturgia pública. Como não importou a tantos ministros cristãos. Como jurista, em respeito ao tribunal, e não só a sua reputação e credibilidade, deveria saber que só presta contas à esfera pública e democrática.

E mais uma dica, entre parênteses: não pega bem, ministro, continuar a utilizar sua identidade de AGU no Twitter, mesmo que a vocação de AGU não tenha saído do corpo de vossa excelência. Parece um detalhe menor. Chama-se decoro e compostura.

No exercício dessa vocação, Mendonça, que aceitou calado a honrosa credencial de "nossos 10% lá", e calado ficou quando o presidente prometeu "almoçar com ele toda semana", foi se explicar também a Bolsonaro, a quem um dia chamou de "profeta". E Bolsonaro veio em sua defesa: "é um homem que está ao lado do Brasil".

Há muitas formas de encarnar, no STF, um ministro sem qualidades. Esse ministro opta por não ser juiz clássico (também conhecido como "juiz"), discreto, que conhece e pratica os compromissos intelectuais, morais e performativos que a instituição demanda, que entende a importância de ser e de também parecer imparcial.

O ministro sem qualidades normaliza hábitos antijudiciais (muitos ilegais). Esse "juiz operador" tem subtipos, com graus diferentes de gravidade. Tem o populista, que invoca o "sentimento social" e a "voz das ruas" para justificar conclusões. Tem o amigo de milico, que se deixa seduzir por medalhas ao mérito concedidas por instituição cujos méritos históricos não se conseguiu descobrir. Os deméritos estão até em áudios de tribunal militar.

Outro muito em evidência é o juiz negociador, membro do centrão magistocrático, que vende a corte mas não perde a oportunidade de buscar o "diálogo" e a "harmonia entre os poderes". Não se esqueça do juiz patrimonialista e nepotista (que nomeia filha ao tribunal, pede patrocínio para sua empresa, articula nomeações judiciais, vira credor de favores etc.), e do juiz correligionário, que organiza e participa de congraçamentos partidários.

Não faltam ministros sem qualidades no STF, mas André Mendonça inventou o subtipo dessa nova era: o juiz sectário, que presta contas a eleitorado, que se engolfa na lógica cristomiliciana do pacto de sangue e fidelidade canina. Não é um ministro que, como outros, professa uma religião. Coloca-se como representante de uma igreja e dos interesses econômicos e políticos de pastores e seus desígnios pouco "divinos". Inédito e aberrante.