terça-feira, 20 de julho de 2021

Ex-presidente do STM diz que Bolsonaro tem 'delírios psicóticos', Marcelo Godoy OESP

 

Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo

19 de julho de 2021 | 10h04

Caro leitor,

 

ex-presidente do Superior Tribunal Militar (STM), o tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla começou a escrever artigos e os remeteu à coluna. O primeiro tem o título Diálogos no Purgatório. Trata dos efeitos da pandemia de covid-19 no Brasil e o papel do governo de Bolsonaro e dos generais que o apoiam. Começa assim: "Nosso País vai sendo conduzido ao temível reino das trevas e registrando perdas de milhares de vítimas da amaldiçoada pandemia".

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O tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente do STM Foto: BAPTISTAO - ARTESTADO

O homem, que teve sua carreira ligada ao Centro Tecnológico Aeroespacial (CTA), continua: "Estimulando tanta desarmonia nos três Poderes da República, o governo tornou o Brasil pária internacional, além de destacada ameaça política e sanitária no contexto das nações. Retratado pelas colocações quixotescas de um psicótico presidente, é comparado ao cenário criado por Miguel de Cervantes, no qual um pretenso cavaleiro pensava poder salvar sua Pátria brandindo armas primitivas, em plena modernidade".

Desde o começo do governo, Ferolla é um dos oficiais-generais que não se comprometeram com as teses do capitão que controla a caneta na Esplanada. Tem autoridade, pois sempre conservou a gravidade que a patente lhe confere, bem como a dignidade do posto. Prossegue o brigadeiro: "Para enlamear a comparação, enquanto o impetuoso personagem agia de forma estapafúrdia por reconhecida debilidade mental, nosso Dom Quixote caipira não passa de premeditado ator de picadeiro, a provocar contestações radicais num circo mambembe na Esplanada dos Ministérios".

O brigadeiro faz justiça ao Quixote e procura dissociá-lo da figura do presidente. "De forma insana, para a satisfação de asseclas e seguidores de suas ações idiotas e demagógicas, manifesta-se e gesticula como o personagem criado pelo escritor espanhol. Mas não é justo desmerecer o histórico Dom Quixote, símbolo de 'um personagem que, cem anos antes, teria sido um herói nas crônicas ou romances de cavalaria'. Sabiamente colocado em ação um século após, sua loucura visava refletir o anacronismo de uma época e seu criador se valeu da imagem para satirizar os novos tempos, ‘retratando uma Espanha que, após um século de glórias, começava a duvidar de si mesma’." 

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No sábado, 17, Bolsonaro compartilhou uma foto tomando sopa em seu quarto no hospital Foto: Instagram/Bolsonaro

O Brasil parece duvidar de si mesmo. Não há outra explicação, nas palavras do brigadeiro, para a Nação ter entregue seu destino a um personagem que o professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Francisco Carlos Teixeira afirma ser destituído de pietasgravitas e dignatas, virtudes cívicas da República, desde Roma. Os colegas de Ferolla, que apoiaram Bolsonaro e ainda lhe dão apoio público, costumam separar o homem da prole – especialmente do filho rico, o senador Flávio Bolsonaro. Também procuram enxergar no capitão um idealista, um Quixote, como se os ataques à democracia fossem folclóricas cargas contra moinhos de vento.  Contra o que chamam de establishment, oferecem uma ralé.

Um general muito ativo em São Paulo esteve na última manifestação em defesa do presidente, na Avenida Paulista. Defende Bolsonaro e sente, como muitos de seus colegas, frustração e contrariedade ao ouvir as queixas contra o capitão. Imputa as críticas a civis interesseiros, como se a farda fosse suficiente para erguer o soldado acima de seu povo. E vê nas reclamações a vingança de forças políticas que nem existem mais, derrotadas no golpe de 31 de Março de 1964. Fácil, portanto, enxergar em Bolsonaro apenas um Quixote, quando o próprio general se bate contra inimigos imaginários. 

O tom dele em relação ao presidente é diferente daquele adotado por Ferolla. Porém, mesmo ele não poupa o capitão de recriminações. Principalmente em razão de sua política ambiental e da conduta em relação às vacinas. Não é só o general Hamilton Mourão que critica o governo nessas duas áreas. A cena é conhecida. No dia 20 de outubro de 2020, Bolsonaro desautorizou o general da ativa Eduardo Pazuello, que decidira comprar a Coronavac. Era uma birra contra o governador de São Paulo, João Doria. A visão de 2022 falava mais alto do que o bem-estar dos brasileiros: reeleição acima de tudo, minha família acima de todos. 

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O ministro Eduardo Pazuello foi fotografado sem máscara em shopping de Manaus neste domingo, 25 Foto: Jaqueline Bastos

No dia seguinte, Pazuello gravou aquela "cena para a internet", na qual degradava a patente e traía a gravidade do cargo de ministro da Saúde em meio a uma pandemia mortal. "Senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece. Mas a gente tem um carinho, entendeu?" Mais claro impossível. Para Mourão e para outros generais, Pazuello devia se demitir. Ao permanecer no cargo, levou as Forças Armadas ao picadeiro do circo mambembe que o brigadeiro Ferolla enxerga montado na Esplanada.

A situação assumiria contornos mais graves, comprometendo a sobrevivência do governo. Em fevereiro, um dos generais mais poderosos do Planalto reconhecia para quem tivesse ouvidos em Brasília: o governo é ruim. Dizia que a vacina fora um grande erro. Via acerto em ser contra o "fique em casa", mas repetia: a vacina fora um erro. Ele pedia que as pessoas olhassem para o que havia de "bom no governo" e citava o trabalho do ministro Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura). Não foi por outra razão que Tarcísio se transformou em figura quase obrigatória nas andanças de Bolsonaro pelo País. 

O desespero com a crise da vacina se aprofundava e parecia tragar Bolsonaro para o abismo aonde seu governo precipitara milhares de vidas de brasileiros em razão da incúria e da luta política para impedir que Doria fosse fotografado distribuindo a primeira dose da Coronavac... Foi nesse momento que as características de Forças Especiais (FE) da cúpula do Ministério da Saúde se fizeram sentir. O lema dos herdeiros de Antonio Dias Cardoso, o mestre das emboscadas, é "qualquer missão, em qualquer lugar, a qualquer hora, de qualquer maneira". Ele resume a atuação do coronel Elcio Franco e de Pazuello, ambos FE, na Saúde.

A CPI da Covid mostraria o quanto tentaram de qualquer maneira consertar a forma com que Bolsonaro conduzira o País na crise sanitária. A busca por vacinas os colocou diante de vendedores picaretas e empresários gananciosos e abriu as portas às suspeitas de corrupção. Por isso, mesmo demitidos da Saúde, Pazuello e Franco foram acolhidos no Planalto. Generais se dividem sobre a dupla. Uns têm raiva pelo que Pazuello fez ao se meter na política e por se comportar como youtuber, usando linguagem de internet, quando ainda na ativa. Um integrante do Alto Comando disse à coluna que, se o vir, não o cumprimentará. Outro afirmou que o colega é honesto, mas, ao ser desautorizado pelo presidente, devia ter se demitido.

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Em coletiva de imprensa, o secretário executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, afirma que não é obrigatório vacinar 100% da população para conter a covid-19. Foto: Erasmo Salomão/MS

No passado, diante de um empréstimo concedido sem as devidas garantias pelo Banco do Brasil, Carlos Lacerda afirmou que um diretor da instituição era "ladrão ou incompetente". "De modo que, em qualquer dos casos, não deve permanecer no cargo". Os que hoje apoiam Bolsonaro veriam em Lacerda um comunista. Assim tentam classificar Ferolla. Em seu segundo artigo – Nas Trilhas do Descaminho –, ele escreve: "As consequências, de conhecimento da sociedade, acabaram na demissão do caricato ministro (Pazuello) e numa CPI, que busca responsáveis por possíveis crimes contra a vida". E prossegue: "(Bolsonaro) nos seus costumeiros delírios psicóticos, citando como 'meu exército' o honrado Exército de Caxias, tenta ludibriar civis e militares sobre irreal apoio na caserna. Para configurar tamanha falsidade, logrou envolver alguns contemporâneos da Academia Militar, convocando-os para postos na burocracia palaciana".

Ferolla lembra o passado, o tempo em que outros tentaram dividir as Forças. E cita o filósofo Ortega y Gasset: "O passado não nos dirá o que devemos fazer e sim o que deveríamos evitar". Resta, agora, ao comando das Forças a posição ingrata de, sem prejulgar os colegas, ter de afirmar que não compactua com desvios. A brecha aberta no muro que separava a caserna da política deve levar à aprovação da PEC Pazuello, que veda a participação de militares da ativa em cargos civis. Não será nenhuma ofensa à farda. Só a correção de um erro. Ora, juízes e procuradores são obrigados a deixar a carreira se nomeados para o Executivo. Foi assim com Sérgio Moro. Assim deve ser com os militares.

Nos EUA, o militar deve cumprir ainda quarentena de sete anos ao passar à reserva antes de ocupar cargos civis – exceções precisam de autorização do Senado. Quarentena parecida é defendida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. Nas Américas, além do Brasil, só a Venezuela não estabelece maiores limites. Foi preciso que Bolsonaro chegasse ao poder para que o País descobrisse a coincidência. Ferolla, como os congressistas, tem os olhos voltados à eleição de 2022. "Em razão dos acontecimentos que se repetem em nosso País, tornou-se dever e modesta cooperação alertar, do soldado mais humilde ao general mais graduado, para o profundo significado da mensagem deixada pelo dr. Aldo Fagundes, ex-deputado constitucionalista e ministro do STM, recém-falecido, de que, 'a farda é leve para quem a veste por vocação, mas é fardo insuportável para aquele que não compreendeu a missão para a qual prestou juramento solene'."

 

Marcelo Godoy

Marcelo Godoy

Repórter especial

Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).

Do 'storytelling' ao pó de ervilha, saiba o que há nos plant based, FSP

 Flávia G. Pinho

SÃO PAULO

Pegue a proteína isolada de ervilha em pó e passe pela extrusora, até que adquira textura flocada. Hidrate os flocos para que fiquem fibrosos como a carne moída, adicione gordura de coco para conferir suculência e incorpore condimentos e aromas. Acrescente concentrado de beterraba para simular sangue, modele os hambúrgueres e frite.”

A receita acima, que poderia ter saído do caderno dos Jetsons, resume o processo de fabricação do hambúrguer The New Butchers, uma das foodtechs por trás da moda dos produtos vegetais que imitam carne animal —os chamados plant based.

Eles são um fenômeno de vendas. As carnes vegetais chegaram aos freezers da rede Pão de Açúcar há dois anos e já representam 1/3 de todos os hambúrgueres congelados comercializados pela rede em todo o país.

Funcionária prepara processo de moagem de hambúrgueres plant based na fábrica da The New Butchers, em São Paulo - Gabriel Cabral/Folhapress

Embora custem mais que o triplo de um hambúrguer bovino —a peça de origem animal congelada custa pouco mais de R$ 2,50, enquanto a versão plant based não sai por menos de R$ 9—, os produtos vêm conquistando com facilidade uma fatia do público disposta a pagar mais por algo que, segundo os fabricantes, faz bem à saúde e ao planeta.

A questão é polêmica. Hambúrgueres, almôndegas, peitos de frango e filés de peixe plant based são mesmo livres de proteína animal. O que não quer dizer, no entanto, que sejam fabricados a partir de plantas como as conhecemos.

A ervilha, um dos ingredientes de base preferidos pelos fabricantes, passa por processos industriais para ter sua proteína vegetal isolada e transformada em pó —e emite um bocado de CO2 para chegar ao Brasil.

“Acho a propaganda enganosa em termos de sustentabilidade. São poucos os fabricantes de proteína de ervilha no mundo e não é sustentável trazer o produto de outro continente”, afirma Marco Antonio Trindade, pesquisador de produtos de carne do Departamento de Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo (USP).

Há também fabricantes que usam proteína de soja como matéria-prima, cultura que vive na mira de ambientalistas e críticos das práticas da agroindústria.

“As empresas só trocam a pecuária intensiva pela monocultura intensiva, que usa volumes massivos de defensivos agrícolas e não reduz o impacto ambiental”, dispara Glenn Makuta, membro do núcleo gestor da Associação Slow Food do Brasil.

As críticas também vêm dos especialistas em nutrição. Para o nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), a saudabilidade que as marcas propagandeiam é questionável.

“Minha opinião pessoal é que esses alimentos não oferecem grande diferença em relação às versões tradicionais de carne animal. Se você compara as quantidades de calorias, sódio e aditivos químicos com as de um hambúrguer convencional, são parecidas.”

Fundador da 100 Foods, que produz hambúrguer e frango empanado plant based, Paulo Ibri admite que este ainda é o calcanhar de Aquiles do setor.

“A proteína vegetal não tem sabor de carne, óbvio, e deixa um gosto residual. Para que ele não incomode, usamos sal em conjunto com aromas. Ficamos na média da categoria, mas estamos trabalhando na atualização do produto para diminuir o teor de sódio.”

Pioneira no mercado nacional, a Fazenda Futuro lançou o primeiro hambúrguer plant based em 2019 e já está na terceira receita.

“Já reduzimos drasticamente o sódio. A maioria das marcas, em todo o mundo, trabalha com 400 mg, mas o nosso produto mais recente, o Hambúrguer 2030, chegou a 178 mg, um teor muito baixo”, afirma o fundador Marcos Leta, sem mencionar que essa quantidade se refere a meio hambúrguer, como consta da tabela nutricional do produto.

A evolução também passa pelos equipamentos que transformam as proteínas vegetais. Além da extrusão seca, aquela que gera flocos desidratados, fabricantes começam a adotar a extrusão úmida, que permite produzir fibras longas parecidas com frango cozido desfiado.

Foi dessa forma que o Grupo Planta, que já produzia hambúrgueres, empanados de frango, caftas e linguiças plant based, passou também a fabricar pernil desfiado e pancetta à base de proteína de ervilha.

“Fazemos comida vegetal para quem gosta de carne. Quem vê nossa pancetta até se assusta”, orgulha-se Fabio Zukerman, fundador do grupo ao qual também pertence o restaurante vegano Green Kitchen.

Os fabricantes ainda tentam se diferenciar pelo uso de ingredientes naturais. A Amazonika Mundi produz seus hambúrgueres, almôndegas e bolinhos de siri a partir de fibra de caju, matéria-prima descartada pela indústria de sucos, e tempera a fórmula com ingredientes amazônicos, como extrato de açaí, óleo de patauá e tucupi.

Apesar dos esforços, tem sido difícil dissociar a imagem das carnes vegetais do conceito de comida ultraprocessada —aquela que o Guia Alimentar para a População Brasileira, elaborado pelo Ministério da Saúde em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Universidade de São Paulo (USP), recomenda evitar.

Leta, da Fazenda Futuro, desdenha das críticas. “Acho até engraçadas, porque os plant based passam por processos industriais como os queijos ou as massas. Há fabricantes que usam corantes e aromas artificiais e ingredientes transgênicos, como acontece em qualquer categoria, mas não é nosso caso. Só usamos produtos naturais.”

Na opinião de Bruno Fonseca, fundador da The New Butchers, a falta de transparência do setor ajuda a aumentar a desconfiança do consumidor.

“Tem muito storytelling. Assim que puder, vou convidar as pessoas para visitarem nossa fábrica e mostrar que não há químicas mirabolantes. Será que a indústria de carne animal faria o mesmo?”, desafia.

A despeito das polêmicas, o segmento não para de crescer e já extrapolou o universo das startups —para não perder terreno, gigantes da indústria alimentícia, como BRF, JBS e Marfrig, correram para lançar suas linhas de produtos plant based.

As carnes vegetais chegaram também às grandes redes de fast food e às hamburguerias descoladas —no Brasil desde março de 2021, a The Vegetarian Butcher, que pertence à Unilever, adotou como estratégia lançar seus hambúrgueres à base de proteína de soja em 180 endereços famosos de São Paulo e Rio de Janeiro, como as hamburguerias Meats, de Paulo Yoller, e C6, do chef Marcos Livi. Hoje, já são 400 pontos de venda.

O público não é formado só por vegetarianos e veganos. Os chamados flexitarianos —gente disposta a reduzir o consumo de proteína animal, mas que não se importa de traçar um churrasco de vez em quando— são os maiores consumidores das carnes vegetais.

Proprietário da hamburgueria Burger da Rua, em Moema, Rafael Fernandes permite que os clientes troquem a carne bovina de qualquer lanche pela versão plant based da The New Butchers.

As 200 unidades vendidas por mês, segundo ele, são pedidas principalmente por essa turma flexível. “Tem gente que pede hambúrguer plant based com bacon”, diz, achando graça.

No dia 2 de junho, o Diário Oficial da União publicou um convite aos brasileiros: que todos participem da Tomada Pública de Subsídios que dá início ao processo de regulação dos produtos.

Até o começo de agosto, qualquer pessoa pode preencher o formulário online elaborado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). A adesão, segundo Glauco Bertoldo, diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal do Mapa, tem sido acima da média.

“Geralmente, só associações do setor e entidades que representam consumidores participam dessas consultas. Mas, desta vez, registramos uma participação intensa do público.”

Além de definir quais ingredientes serão permitidos nas formulações e em que quantidades, a futura regulação vai estabelecer como esses produtos deverão ser apresentados ao consumidor.

Para a nutricionista Sophie Deram, especializada em transtornos alimentares, o marketing dos fabricantes tem gerado muita confusão entre os consumidores.

“Meus pacientes ficam perdidos a partir de um discurso distorcido. Têm a sensação de que estão comendo bem e se surpreendem quando mostro a lista de ingredientes das embalagens.”

A discussão sobre as carnes vegetais mal começou e a indústria já está um passo adiante: a próxima tendência é a chamada carne cultivada, produzida em laboratório a partir de células animais.

Segundo o The Good Food Institute, entidade norte-americana que fomenta a pesquisa de alimentos alternativos à carne, as empresas do segmento receberam mais de US$ 360 milhões em investimentos em 2020, valor seis vezes maior que no ano anterior.

A tecnologia ainda não chegou ao Brasil, mas é questão de tempo.


segunda-feira, 19 de julho de 2021

Crescimento econômico não é suficiente Iqbal Dhaliwal e Samantha Friedlander, Nexo Politicas Públicas

 Com descobertas importantes e surpreendentes de estudos sobre intervenções socioeconômicas nas últimas décadas, está claro que o desenvolvimento na ausência da formulação de políticas baseadas em evidências é uma missão insensata

FOTO: ALY SONG/REUTERS - 30.MAR.2021
pessoas usando máscaras atravessam em faixa de pedestres
 PESSOAS CAMINHAM EM RUA DE SHANGHAI, CHINA

Tendo em vista os profundos impactos econômicos provocados pela pandemia da covid-19, os formuladores de políticas públicas deveriam estar se perguntando ou reavaliando questões fundamentais. Nenhuma delas é mais importante do que decidir se o rápido crescimento econômico é a melhor forma de impulsionar o desenvolvimento e ajudar as comunidades em dificuldades a sair da pobreza.

A resposta é simultaneamente sim e não.

Por uma boa razão, o crescimento econômico tem sido, há muito tempo, um objetivo político prioritário para diversos países no mundo. Mas para milhões de pessoas que vivem na pobreza, o crescimento não é suficiente. Os programas sociais desenhados com base em evidências empíricas rigorosas são igualmente importantes para evitar que essas pessoas sejam ignoradas.

Felizmente, o novo presidente americano, Joe Biden, parece compreender isso. Buscando restaurar a confiança da população no governo dos EUA, Biden declarou que "a política da minha administração tomará decisões baseadas em evidências guiadas pela melhor ciência e dados disponíveis", incluindo estudos aleatorizados (ou RCTs – randomized controlled trial em inglês). O desafio agora será encontrar um equilíbrio entre a procura persistente de um crescimento robusto e a necessidade de uma maior inclusão econômica e social.

Nesse aspecto, os EUA não são os únicos. O PIB da China cresceu cerca de 10% ao ano desde 1978, retirando mais de 850 milhões de pessoas da pobreza. Ainda assim, de acordo com o Banco Mundial, 373 milhões de chineses permanecem "abaixo da linha de pobreza de renda média-alta de US$ 5,50 por dia", e têm de conviver com a insegurança alimentar, o desemprego e a falta de acesso a serviços públicos.

Da mesma forma, a Índia, que é hoje a quinta maior economia do mundo, ainda tem dezenas de milhões de pessoas vivendo na extrema pobreza. Mesmo nos Estados Unidos, a maior economia do mundo no último século, 34 milhões de pessoas viviam abaixo do limiar de pobreza antes do surgimento da pandemia da covid-19, com mais de 10 milhões de famílias enfrentando a insegurança alimentar e mais de meio milhão de pessoas vivendo sem abrigo todas as noites.

Certamente, é importante lembrar que a pobreza é um conceito inerentemente relativo. Sempre haverá pessoas muito menos prósperas do que outras economicamente ou materialmente, e viver na pobreza significará sempre algo drasticamente dependendo do contexto. Por esta razão, a definição de pobreza deve manter-se um pouco flexível, especialmente à medida que as tendências regionais de crescimento econômico mudam.

De toda forma, a pandemia trouxe imagens alarmantes de longas filas para coleta de alimentos e outros suprimentos essenciais, mesmo nos EUA. Fomos lembrados de que, para as comunidades vulneráveis, o espectro da pobreza está sempre presente.

Outras peças do quebra-cabeças

Nas últimas décadas, as pesquisas evidenciaram algumas das razões pelas quais a pobreza e os desafios associados a ela (baixos resultados na educação e no acesso à saúde) persistem mesmo nos países ricos e naqueles que experimentam um rápido crescimento econômico.

Considere o objetivo da educação universal de alta qualidade, que é reconhecida como fundamental para alcançar um crescimento econômico sustentável e reduzir a pobreza e a desigualdade global. O crescimento econômico frequentemente estimula o investimento em sistemas educativos: construção de novas escolas, formação e contratação de professores e aquisição de equipamentos e materiais escolares, como livros didáticos e computadores. Contudo, se o currículo escolar e a pedagogia não são bem elaborados, não importa se as crianças têm mesas, livros didáticos ou computadores: muitos estudantes continuarão sem dominar as habilidades básicas de leitura e de matemática ao deixarem a escola primária.

Na verdade, embora as taxas de matrícula escolar tenham aumentado significativamente nos países de baixa e média renda ao longo das últimas décadas, os resultados na aprendizagem têm sido muito variados. Por exemplo, o Relatório Anual sobre a Situação da Educação na Índia de 2018 identificou que apenas cerca de metade dos alunos do 5º ano em escolas rurais podiam ler um texto do segundo ano, e pesquisas em muitos outros países identificaram resultados semelhantes.

Mesmo em um país rico em recursos, como os EUA, os resultados de aprendizagem são menores do que os que deveriam ser. Em um exame nacional de matemática em 2017, 30% dos alunos do 8º ano dos EUA obtiveram uma nota abaixo do nível desejado, e esse número tem aumentado ao longo da última década.

Ao longo dos últimos 15 anos, vários pesquisadores - incluindo laureados com o Nobel de Economia de 2019Abhijit BanerjeeEsther Duflo e Michael Kremer - realizaram uma série de estudos aleatorizados mostrando que materiais escolares, como livros didáticos, não levam diretamente a melhores resultados de aprendizagem para os alunos. Apesar disso, eles identificaram uma intervenção que produz resultados consistentes: uma abordagem pedagógica inovadora chamada Ensino no Nível Certo (TaRL, ou Teaching at the Right Level em inglês), que foi elaborada pela Pratham, uma organização não governamental de educação na Índia.

O TaRL enfatiza o ensino levando em consideração a atual capacidade de aprendizagem das crianças, ao invés da sua idade ou do seu ano escolar, e não requer materiais caros ou tecnologia. Na verdade, sua principal ferramenta de avaliação pode ser criada em poucos minutos em uma folha de papel, e muitas de suas atividades são realizadas com estudantes e professores sentados no chão da sala de aula. Apesar de seu baixo custo e simplicidade, os programas TaRL provaram ser muito eficazes na melhoria dos resultados de aprendizagem em muitos países. Um modelo similar de ensino no nível certo está sendo implementado nos EUA, com resultados positivos para estudantes em Chicago e em Nova York.

A saúde das nações

Da mesma forma, o crescimento econômico permite a construção de novos centros de saúde, contratação de mais profissionais e maior investimento na mais recente tecnologia médica, todos os quais são necessários para fornecer cuidados de alta qualidade à população. Todavia, criar um fornecimento sustentável não é suficiente; também tem de haver demanda pelos serviços de saúde, o que não decorre automaticamente do crescimento econômico.

Por exemplo, mesmo que os postos de saúde estejam abertos e bem abastecidos com vacinas, os pais podem não levar seus filhos para serem imunizados, ou porque não acreditam que as vacinas sejam importantes e seguras, ou porque são dissuadidos pela dificuldade de deslocamento até o posto de saúde. Mais uma vez, um estudo aleatorizado na Índia revelou que o investimento em uma cadeia de suprimentos de vacinas levou a um aumento de 12 pontos percentuais na imunização, já a criação de um pequeno incentivo, como ganhar um saco de feijão por cada visita, aumentou as taxas de imunização completa em mais 21 pontos percentuais. Isto sugere que pais precisavam não apenas de uma melhor infraestrutura, mas também de um incentivo (relativamente pequeno) para superar o custo em tempo e dinheiro de levar seus filhos a um posto.

Mais uma vez, as mesmas questões surgem em economias de alto rendimento. Nos EUA, as autoridades de saúde pública estão atualmente tentando convencer os americanos, especialmente entre os grupos socioeconômicos mais vulneráveis, a tomar as novas vacinas da covid-19. Embora os EUA também tenham de se preocupar com questões relacionadas com a cadeia de abastecimento, estas podem, ao menos, ser resolvidas através do investimento em recursos e de uma melhor logística. Mas, abordar o ceticismo público sobre as vacinas requer intervenções adicionais.

Como estes exemplos demonstram, nem o crescimento econômico nem a riqueza de um país são fatores decisivos para resolver problemas sociais como a pobreza. Conhecimentos adicionais sobre padrões de comportamento humano e avaliação científica rigorosa também são necessários para criar programas eficazes e maximizar os resultados desejados.

As avaliações de impacto aleatorizadas bem projetadas podem fornecer aos legisladores e aos financiadores evidências diretas do campo para mostrar quais programas específicos funcionam, e por quê. Com esses dados em mãos, os formuladores de políticas públicas podem evitar confiar em instintos, ideologia ou inércia ao tomar decisões de investimento importantes. Caso contrário, arriscam-se a gastar fundos em programas que não geram resultados.

Paradoxos do progresso

Alguns problemas que contribuem para a pobreza são um subproduto do próprio crescimento econômico. O crescimento aumenta o consumo de energia, recursos naturais e bens, aumenta as emissões de carbono e a poluição, e coloca uma maior pressão global sobre o ambiente. Todos estes fatores contribuem para as alterações climáticas, que ameaçam exacerbar a pobreza entre as comunidades mais vulneráveis, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento. Como o crescimento econômico não resolve automaticamente os problemas que cria, são necessárias intervenções específicas.

Os estudos aleatorizados também ajudaram a identificar inovações de políticas públicas baseadas em evidências e programas que podem reduzir os efeitos ambientais negativos do crescimento. No caso da industrialização, que muitas vezes leva a rendimentos mais elevados ou a mais vagas de emprego, mas também ao aumento da poluição, os formuladores de políticas precisam saber quais as fábricas que mais poluem e, então, talvez possam confiar nas auditorias das fábricas.

O problema é que, em muitos países, os auditores são geridos e pagos pelas empresas a serem auditadas, criando um claro conflito de interesses. Assim, pesquisadores que estudaram este problema no estado Indiano de Gujarat descobriram que quando os auditores foram aleatoriamente designados para fábricas, pagos a partir de um fundo comum, monitorado para serem precisos, e premiados com um bônus quando entregavam um relatório detalhado, as fábricas diminuíram suas emissões nocivas em 28%. A evidência deste estudo aleatorizado foi essencial para ajudar o governo a lidar com um problema que o rápido crescimento econômico tinha criado.

Do mesmo modo, ao criar vencedores e vencidos, o crescimento econômico e a globalização frequentemente aumentam as desigualdades, o que pode levar a revoltas sociopolíticas significativas, mesmo nos países mais ricos, como vimos recentemente na França e nos EUA. Os formuladores de políticas públicas muitas vezes respondem a este problema através da criação de programas de bem-estar social, tais como de renda básica. Enquanto o crescimento econômico e um PIB elevado podem ajudar a pagar por esses programas, questões fundamentais permanecem, tais como definir o valor desta renda, identificar quem deve receber, e como a redistribuição pode ser realizada mais eficazmente.

Estas são questões pequenas, mas cruciais, que têm a ver diretamente com a capacidade de um programa atingir os resultados desejados, ou simplesmente adicionar outra camada de desperdício. Na Indonésia, uma avaliação aleatorizada identificou que um programa de fundos comunitário chamado Generasi foi eficaz na melhoria dos resultados de saúde e educação a nível local, e esses resultados foram melhorados pela adição de incentivos ao desempenho. Após os sucessos demonstrados, a Generasi foi ampliada em 2010, e desde então atingiu quase cinco milhões de pessoas. Mais uma vez, a formulação de políticas públicas baseada em evidências pode ser a diferença entre sucesso e fracasso.

Não existe um aplicativo para isso

Aperfeiçoar os detalhes de tais programas pode parecer uma tarefa tediosa. Os formuladores de políticas não deveriam concentrar-se em questões maiores como criar mais crescimento? Na verdade, como os exemplos mencionados acima mostram, as perguntas sobre a criação de uma intervenção não são tão "pequenas" no final das contas. Não apenas são vitais para o sucesso de um programa, como também podem ajudar os programas a atingirem uma escala significativa. Os programas avaliados através de estudos aleatorizados apenas por pesquisadores afiliados à nossa organização, J-PAL, já atingiram mais de 400 milhões de pessoas em todo o mundo.

Em termos mais gerais, é fácil cair na armadilha da fórmula “um-modelo-se-adequa-a-todos” quando se procura soluções para a pobreza. O crescimento econômico não é a única força tida como panaceia. A tecnologia também é muitas vezes vista como uma solução revolucionária e abrangente para as comunidades que vivem na pobreza. Como vimos na educação, a introdução de tecnologias nem sempre resolve o problema, e às vezes até cria novos problemas. Os formuladores de políticas públicas frequentemente esquecem que a tecnologia é apenas um meio, não um fim em si mesmo.

Por exemplo, reduzir o absentismo entre os profissionais de saúde tem sido um grande desafio no estado indiano de Karnataka, levando à implementação de um sistema de monitoramento biométrico para registrar a presença dos médicos em postos de saúde da família. Mas quando o sistema foi avaliado, os pesquisadores descobriram que, embora a tecnologia em si parecesse boa – monitores gravavam e indicavam, em tempo real, os dados precisos de comparecimento – o governo ainda não foi capaz de aplicar sanções e incentivos de presença. Por isso, foi decidido não expandir o programa, economizando milhões de dólares e incontáveis horas de trabalho.

Similarmente, em Odisha, na Índia, pesquisadores avaliaram os benefícios de um fogão de cozinha comum, que tinha sido bem-sucedido em testes de laboratório como capaz de reduzir a poluição do ar interior e exigir menos combustível. Eles descobriram que os fogões não tiveram impacto na exposição à fumaça ou na saúde a longo prazo, apontando para uma diferença crucial entre os resultados do laboratório e do mundo real. O problema não era que a tecnologia era defeituosa ou as medições originais incorretas; era que a maioria das pessoas não usava os fogões regularmente ou apropriadamente, e não os mantinha corretamente. Mais uma vez, para todas as atrações da nova tecnologia, os fatores subjacentes comportamentais e contextuais acabaram por ter uma influência mais forte na eficácia global.

É preciso uma comunidade empírica

Ninguém duvida que a inovação tecnológica e o crescimento econômico desempenham um papel vital na redução da pobreza para milhões de pessoas em todo o mundo. O problema reside em assumir que estes fatores são suficientes. Ao reconhecer as limitações do mundo real, até mesmo os governos dos países mais ricos ou de mais rápido crescimento do mundo começaram a designar departamentos para projetar e implementar programas específicos para melhorar os meios de subsistência e garantir melhores resultados em saúde, educação e meio ambiente. Depender apenas de um departamento financeiro ou comercial, ou de um banco central que funcione bem, não é suficiente para reduzir a pobreza.

O mesmo princípio se aplica às ONGs e outras organizações que projetam e apresentam programas na agricultura, prevenção do crime, relações de gênero e governança. Em conjunto, estas iniciativas podem proporcionar perspectivas multifacetadas de superação da pobreza - mas demonstrar sua eficácia é fundamental.

Só porque um programa é específico não significa que será bem-sucedido. Sempre haverá falhas, e a diferença está na utilização de pesquisas de campo rigorosas, como estudos aleatorizados, para conceber as ideias mais inovadoras com base nas melhores evidências disponíveis. Os programas pilotos e as avaliações com a ajuda de sistemas de monitoramento rigorosos são necessários para alcançar a escala desejada.

Em conjunto, o crescimento econômico e as políticas informadas por avaliações de impacto aleatorizadas podem ajudar a reduzir problemas como a pobreza, a desigualdade e as alterações climáticas. Mesmo em países que não estão experimentando crescimento do PIB, devido a outras restrições intransponíveis (como uma pandemia), melhorar o modelo e a aplicação de programas sociais e econômicos pode fazer uma diferença significativa na vida das pessoas.

Conhecimento baseado em evidências é poder. Para que ninguém seja ignorado, os governos, as ONG, os pesquisadores e os doadores têm de se unir para gerar mais evidências.