terça-feira, 20 de julho de 2021

Do 'storytelling' ao pó de ervilha, saiba o que há nos plant based, FSP

 Flávia G. Pinho

SÃO PAULO

Pegue a proteína isolada de ervilha em pó e passe pela extrusora, até que adquira textura flocada. Hidrate os flocos para que fiquem fibrosos como a carne moída, adicione gordura de coco para conferir suculência e incorpore condimentos e aromas. Acrescente concentrado de beterraba para simular sangue, modele os hambúrgueres e frite.”

A receita acima, que poderia ter saído do caderno dos Jetsons, resume o processo de fabricação do hambúrguer The New Butchers, uma das foodtechs por trás da moda dos produtos vegetais que imitam carne animal —os chamados plant based.

Eles são um fenômeno de vendas. As carnes vegetais chegaram aos freezers da rede Pão de Açúcar há dois anos e já representam 1/3 de todos os hambúrgueres congelados comercializados pela rede em todo o país.

Funcionária prepara processo de moagem de hambúrgueres plant based na fábrica da The New Butchers, em São Paulo - Gabriel Cabral/Folhapress

Embora custem mais que o triplo de um hambúrguer bovino —a peça de origem animal congelada custa pouco mais de R$ 2,50, enquanto a versão plant based não sai por menos de R$ 9—, os produtos vêm conquistando com facilidade uma fatia do público disposta a pagar mais por algo que, segundo os fabricantes, faz bem à saúde e ao planeta.

A questão é polêmica. Hambúrgueres, almôndegas, peitos de frango e filés de peixe plant based são mesmo livres de proteína animal. O que não quer dizer, no entanto, que sejam fabricados a partir de plantas como as conhecemos.

A ervilha, um dos ingredientes de base preferidos pelos fabricantes, passa por processos industriais para ter sua proteína vegetal isolada e transformada em pó —e emite um bocado de CO2 para chegar ao Brasil.

“Acho a propaganda enganosa em termos de sustentabilidade. São poucos os fabricantes de proteína de ervilha no mundo e não é sustentável trazer o produto de outro continente”, afirma Marco Antonio Trindade, pesquisador de produtos de carne do Departamento de Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo (USP).

Há também fabricantes que usam proteína de soja como matéria-prima, cultura que vive na mira de ambientalistas e críticos das práticas da agroindústria.

“As empresas só trocam a pecuária intensiva pela monocultura intensiva, que usa volumes massivos de defensivos agrícolas e não reduz o impacto ambiental”, dispara Glenn Makuta, membro do núcleo gestor da Associação Slow Food do Brasil.

As críticas também vêm dos especialistas em nutrição. Para o nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), a saudabilidade que as marcas propagandeiam é questionável.

“Minha opinião pessoal é que esses alimentos não oferecem grande diferença em relação às versões tradicionais de carne animal. Se você compara as quantidades de calorias, sódio e aditivos químicos com as de um hambúrguer convencional, são parecidas.”

Fundador da 100 Foods, que produz hambúrguer e frango empanado plant based, Paulo Ibri admite que este ainda é o calcanhar de Aquiles do setor.

“A proteína vegetal não tem sabor de carne, óbvio, e deixa um gosto residual. Para que ele não incomode, usamos sal em conjunto com aromas. Ficamos na média da categoria, mas estamos trabalhando na atualização do produto para diminuir o teor de sódio.”

Pioneira no mercado nacional, a Fazenda Futuro lançou o primeiro hambúrguer plant based em 2019 e já está na terceira receita.

“Já reduzimos drasticamente o sódio. A maioria das marcas, em todo o mundo, trabalha com 400 mg, mas o nosso produto mais recente, o Hambúrguer 2030, chegou a 178 mg, um teor muito baixo”, afirma o fundador Marcos Leta, sem mencionar que essa quantidade se refere a meio hambúrguer, como consta da tabela nutricional do produto.

A evolução também passa pelos equipamentos que transformam as proteínas vegetais. Além da extrusão seca, aquela que gera flocos desidratados, fabricantes começam a adotar a extrusão úmida, que permite produzir fibras longas parecidas com frango cozido desfiado.

Foi dessa forma que o Grupo Planta, que já produzia hambúrgueres, empanados de frango, caftas e linguiças plant based, passou também a fabricar pernil desfiado e pancetta à base de proteína de ervilha.

“Fazemos comida vegetal para quem gosta de carne. Quem vê nossa pancetta até se assusta”, orgulha-se Fabio Zukerman, fundador do grupo ao qual também pertence o restaurante vegano Green Kitchen.

Os fabricantes ainda tentam se diferenciar pelo uso de ingredientes naturais. A Amazonika Mundi produz seus hambúrgueres, almôndegas e bolinhos de siri a partir de fibra de caju, matéria-prima descartada pela indústria de sucos, e tempera a fórmula com ingredientes amazônicos, como extrato de açaí, óleo de patauá e tucupi.

Apesar dos esforços, tem sido difícil dissociar a imagem das carnes vegetais do conceito de comida ultraprocessada —aquela que o Guia Alimentar para a População Brasileira, elaborado pelo Ministério da Saúde em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Universidade de São Paulo (USP), recomenda evitar.

Leta, da Fazenda Futuro, desdenha das críticas. “Acho até engraçadas, porque os plant based passam por processos industriais como os queijos ou as massas. Há fabricantes que usam corantes e aromas artificiais e ingredientes transgênicos, como acontece em qualquer categoria, mas não é nosso caso. Só usamos produtos naturais.”

Na opinião de Bruno Fonseca, fundador da The New Butchers, a falta de transparência do setor ajuda a aumentar a desconfiança do consumidor.

“Tem muito storytelling. Assim que puder, vou convidar as pessoas para visitarem nossa fábrica e mostrar que não há químicas mirabolantes. Será que a indústria de carne animal faria o mesmo?”, desafia.

A despeito das polêmicas, o segmento não para de crescer e já extrapolou o universo das startups —para não perder terreno, gigantes da indústria alimentícia, como BRF, JBS e Marfrig, correram para lançar suas linhas de produtos plant based.

As carnes vegetais chegaram também às grandes redes de fast food e às hamburguerias descoladas —no Brasil desde março de 2021, a The Vegetarian Butcher, que pertence à Unilever, adotou como estratégia lançar seus hambúrgueres à base de proteína de soja em 180 endereços famosos de São Paulo e Rio de Janeiro, como as hamburguerias Meats, de Paulo Yoller, e C6, do chef Marcos Livi. Hoje, já são 400 pontos de venda.

O público não é formado só por vegetarianos e veganos. Os chamados flexitarianos —gente disposta a reduzir o consumo de proteína animal, mas que não se importa de traçar um churrasco de vez em quando— são os maiores consumidores das carnes vegetais.

Proprietário da hamburgueria Burger da Rua, em Moema, Rafael Fernandes permite que os clientes troquem a carne bovina de qualquer lanche pela versão plant based da The New Butchers.

As 200 unidades vendidas por mês, segundo ele, são pedidas principalmente por essa turma flexível. “Tem gente que pede hambúrguer plant based com bacon”, diz, achando graça.

No dia 2 de junho, o Diário Oficial da União publicou um convite aos brasileiros: que todos participem da Tomada Pública de Subsídios que dá início ao processo de regulação dos produtos.

Até o começo de agosto, qualquer pessoa pode preencher o formulário online elaborado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). A adesão, segundo Glauco Bertoldo, diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal do Mapa, tem sido acima da média.

“Geralmente, só associações do setor e entidades que representam consumidores participam dessas consultas. Mas, desta vez, registramos uma participação intensa do público.”

Além de definir quais ingredientes serão permitidos nas formulações e em que quantidades, a futura regulação vai estabelecer como esses produtos deverão ser apresentados ao consumidor.

Para a nutricionista Sophie Deram, especializada em transtornos alimentares, o marketing dos fabricantes tem gerado muita confusão entre os consumidores.

“Meus pacientes ficam perdidos a partir de um discurso distorcido. Têm a sensação de que estão comendo bem e se surpreendem quando mostro a lista de ingredientes das embalagens.”

A discussão sobre as carnes vegetais mal começou e a indústria já está um passo adiante: a próxima tendência é a chamada carne cultivada, produzida em laboratório a partir de células animais.

Segundo o The Good Food Institute, entidade norte-americana que fomenta a pesquisa de alimentos alternativos à carne, as empresas do segmento receberam mais de US$ 360 milhões em investimentos em 2020, valor seis vezes maior que no ano anterior.

A tecnologia ainda não chegou ao Brasil, mas é questão de tempo.


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