sábado, 10 de julho de 2021

Brasileires, Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S.Paulo

 

10 de julho de 2021 | 03h00

Segundos antes da meia-noite de 1º de janeiro. Rolling Stones fazem com Paul McCartney em português a contagem regressiva do ano que se vai, num réveillon histórico na Praça dos Três Poderes. No show, a multidão em festa pula, canta, delira. Até o amanhecer.

Um céu de brigadeiro destaca as formas e curvas dos palácios de Brasília. Uma luz perfeita, para a posse do novo governo. Mais pessoas chegam caminhando pela Esplanada dos Ministérios. Carregam bandeiras do Brasil, azuis, vermelhas, laranjas, verdes, com as cores do arco-íris.

Planalto
'Um céu de brigadeiro, uma luz perfeita, para a posse do novo governo' Foto: Ed Ferreira/Estadão

Poucos ainda usam máscaras. A maioria traz no ombro a tarja que marcou a campanha eleitoral: Vacina Sempre! Depois de um terrível momento de incertezas e ameaças às instituições, o País faz festa para a troca de comando, que oficialmente já começou.

O primeiro ato entrou em vigor no mesmo dia: a volta do horário de verão. Será então o dia mais longo em anos. Festas foram agendadas em todas as partes. Estados conhecem seus novos governadores, confirmados pela urna eletrônica. Será o verão do amor&democracia.

O presidente anterior, como esperado, não fez a transição do poder, não fará a transmissão da faixa. Foi visto com os filhos e alguns assessores entrando na Embaixada da Hungria, gritando:

– Fraude!

O grupo pediu asilo depois da perda de imunidade e de emitidas as ordens de prisão por prevaricação, desobediência à ordem institucional, tentativa de golpe, formação de quadrilha, homofobia, xenofobia, injúria e incitação ao crime, corrupção passiva e ativa, abuso de poder, improbidade administrativa, falta de decoro e aglomerar sem máscara.

Condenados pelo Tribunal de Haia, foi difícil achar um país que os aceitasse. O soldado e o cabo enviados para fechar o STF foram presos. A tentativa não vingou, já que nenhum dos dois sabia manejar um câmbio manual.

O novo presidente dispensou o Rolls-Royce. Segundo assessores ambientalistas, o carro é extremamente poluente. Vai até o púlpito de bike. Antes, enviou a Força Especial para retirar garimpeiros de terras indígenas.

Determinou que aviões da FAB bombardeassem a Amazônia e o Pantanal com mudas de árvores nativas, proibiu a exportação de madeira, determinou a implantação imediata de placas de energia solar em prédios públicos, exigiu que a Marinha colaborasse com a Guarda Costeira no patrulhamento de reservas marítimas.

Despachou exigindo a volta dos livros retirados do acervo da Fundação Palmares e liberou as verbas bloqueadas do audiovisual: perto de 300 produções retomam as filmagens já em janeiro.

Autoridades internacionais se apertam no espaço reservado. As capas dos ministros do Supremo se erguem com o vento. O chefe de gabinete trans, assim como o porta-voz fanho, ou melhor, PDT (Pessoa com Diferença Tonal), indicam os locais dos presidentes da Rússia, dos Estados Unidos, da França, Argentina, de Cuba, primeiros-ministros da Alemanha, do Japão, da Espanha, Itália, de Israel, do Canadá, líderes supremos da China e Coreia do Norte, esposas e esposos.

Esqueceram-se de convidar o presidente venezuelano, gafe que foi ofuscada pelas ausências dos chefes de Estado das Filipinas, da Turquia, Hungria e Polônia, aliados do antigo governo.

Lavadeiras do Senhor do Bonfim dão os últimos retoques na rampa. Representantes de todas as religiões sobem juntos: pastores, bispos, rabinos, aiatolás, monges, xintoístas e taoistas. Babalorixás defumam o local.

Caciques e pajés das grandes nações indígenas caiapós, ianomâmis, krenaks, terenas, macuxis, kalapalos, guaranis, mundurucus, pataxós, xavantes, bororos, ticunas esperam o presidente no pé da rampa. Todos vieram presenciar o histórico momento em que forças democráticas venceram a grande ameaça autoritária que contaminou o País.

Malala, Greta Thunberg e Sônia Guajajara foram escolhidas para entregar a faixa ao novo presidente. Que, enfim, estaciona a bike e sobe a rampa escoltado por guerreiros xavantes e quilombolas.

Abraça o presidente russo e o convence a apertar a mão do americano. Assina ali mesmo o pedido de revogação da Lei de Segurança Nacional. Dá posse à nova ministra da Defesa. Depois de anos, o controle das Forças Armadas volta aos civis. E, pela primeira vez, a uma mulher.

O presidente chega ao púlpito. Acena. A multidão urra. Checa a altura do microfone e começa:

- Brasileires...

Um espetáculo de estrelas douradas cai do céu. Todos fazem “ohhh”. O efeito deixa a delegação japonesa invejosa. O brilho desconcentra o novo presidente. Aquilo estava na programação?

Não eram estrelas, mas pequenos fragmentos que se incendeiam e cruzam a atmosfera seguidos por rastros de fumaça e explosões cada vez maiores. Os seguranças entram em cena. Um clima de apreensão. Mais estrelas pipocam.

– This is the end! – aponta Greta.

Chega a notícia de que explodiu a Estação Espacial. Seus fragmentos atingiram satélites de comunicação, gerando uma destruição em cadeia. Celulares aos poucos param de funcionar.

Corre-corre no Palácio, no gramado, pessoas começam a gritar assustadas. Pedaços de satélites cruzam os céus. Parecem fogos de artifício. Da varanda da suíte presidencial, Paul pergunta a Mick:

– Satisfied?

É ESCRITOR E DRAMATURGO, AUTOR DE ‘FELIZ ANO VELHO’


Mortes: Ao amigo da adolescência deu amor e a última taça de vinho, Patrícia Pasquini, FSP

 A positividade e disposição para ouvir o próximo faziam parte da generosidade de Cecilia Maria Britto Cezar de Andrade, chamada por todos de Ciçu, e também do talento para a psicologia, descoberto tardiamente.

A paulistana Ciçu era a penúltima de sete filhos de uma pernambucana com um carioca oficial da Marinha.

Nas voltas que a vida dá, ela se casou e se separou. Em meados de 2005, dentro de um supermercado, reencontrou o amigo da adolescência, Paulo Galizia, 60, hoje desembargador.

O café, 30 anos após perderem o contato, celebrou a boa conversa, o reinício da amizade e o amor.
Paulo e Cecilia casaram-se em 2010, mas não tiveram filhos juntos.

Cecilia Maria Britto Cezar de Andrade (1962-2021)
Cecilia Maria Britto Cezar de Andrade (1962-2021) - Arquivo pessoal


Ciçu foi dona de uma papelaria e mais tarde de um ateliê de encadernação na Vila Madalena, na zona oeste da capital paulista. Era formada em artes plásticas na Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).

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Apaixonada por toda a forma de arte, gostava do popular e o sofisticado. Na arte de viver aprendeu a lidar com as fases e a se reinventar.

O ateliê fechou em 2015, devido à crise econômica, e no ano seguinte colocou em prática seu desejo por mediação e pela psicanálise.

Em 2020, formou-se em psicologia na Unip e ingressou no Instituto Sedes Sapientiae para estudar psicanálise.

“Ela estava entusiasmada. As amigas diziam que a Ciçu levou um pouco das artes para a psicologia”, conta Paulo.

Alegre e de fácil amizade, Ciçu era avessa a lamentações. “Quando algo não dava certo, ela olhava para a frente e seguia. Não deixou um minuto de correr atrás dos sonhos”, diz Paulo.

A cada viagem programada, ​proativamente Ciçu pesquisava locais interessantes de cada país, estado ou cidade que visitariam.

Horas antes de partir tomou uma taça de vinho ao lado de Paulo, o que não era comum durante a semana.

Ciçu morreu dia 29 de junho, aos 59 anos, após sentir-se mal em casa. Deixa o esposo e um filho.

Devolver para os quartéis, Luís Francisco Carvalho Filho, FSP

 

Em depoimento ao projeto de Memória Oral da Biblioteca Mário de Andrade, em 2005, Fernando Henrique Cardoso chamava atenção para uma virtude das Forças Armadas: a manutenção.

Na administração pública prevalece a mentalidade de abandono que corrói tudo, hospitais e bibliotecas, prédios e calçadas —sinal de subdesenvolvimento.

FHC situava as Forças Armadas (na época, pacificamente distantes do poder político) como uma honrosa exceção. Em qualquer instalação as coisas são velhas, navios, caminhões, caminhos, mas elas funcionam; “está tudo pintadinho de cal branco, você tem gramado”, não tem “verba exuberante, mas tem manutenção”.

Isso não se explica, evidentemente, pela boa vontade dos comandantes. O contingente de pessoas (soldados e oficiais) é enorme e precisa ser atarefado permanentemente. A hierarquia rígida facilita a execução de atividades menos complexas, serviçais, e que afetam o dia a dia dos quartéis.

O elogio da manutenção é justo, o estímulo do bem cuidar é simpático, mas não significa que agentes militares, no exercício de funções civis, carregam consigo as virtudes da excelência e da moralidade.

Exemplo de gestão criminosa e daninha, o desastre administrativo e sanitário promovido pelo Ministério da Saúde na pandemia é (também) fruto da ocupação militar do governo Bolsonaro.

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Os militares deixaram os quartéis e passaram a dividir com políticos insaciáveis do centrão a Esplanada dos Ministérios, disputando cargos de chefia e de confiança, benefícios salariais e o controle disfuncional de contratos milionários da administração federal.

Os ataques ao Senado e ao STF desferidos pelo Ministério da Defesa e pelo Clube Militar (associação formada por oficiais da ativa e da reserva), ignorando a atuação de militares pilantras e ineptos investigados pela CPI, além de cumprir o papel estratégico de assustar o poder civil, revela o interesse corporativo de manter, custe o que custar, as janelas de oportunidade que o governo Bolsonaro oferece.

Mas a associação à imagem de Jair Bolsonaro, visto hoje pela maioria da população brasileira, segundo pesquisa do Datafolha, como governante “desonesto, falso, incompetente, despreparado, indeciso, autoritário”, que “favorece os ricos e mostra pouca inteligência”, ameaça a credibilidade das Forças Armadas.

O entorno de Jair Bolsonaro é formado pelo pior tipo de gente que há. A família é modelo de milícia. A autoridade militar que o presidente da República venera como herói nacional é o torturador e o assassino. O policial que, na sua visão corrompida, preenche os requisitos de bravura e civismo é o que atira por atirar e mata os “suspeitos” de sempre. O bom juiz é o subserviente, bajulador.

Acuado pela perda da popularidade, Jair Bolsonaro aposta na anarquia constitucional, na rebelião militar e no apoio incondicional de parlamentares (ilegitimamente) oriundos das forças de segurança e de igrejas empenhadas em cultivar a ignorância, salvar almas do demônio e enriquecer bispos e pastores.

Faz parte da estratégia golpista de Bolsonaro duvidar (sem provas) da lisura das eleições, alertando, desde logo, que não aceitará o resultado (se ele perder, é claro) da disputa em 2022.

Um dos desafios da democracia brasileira é devolver para os quartéis o destacamento de oficiais instalado nos gabinetes da administração pública.

Militares existem para obedecer e não para governar.

lfcarvalhofilho@uol.com.br