domingo, 4 de julho de 2021

O ingrato jornalismo de impacto, José Henrique Mariante, FSP

 Um luminar da República disse certa vez que um cabo e um soldado dariam conta do Supremo Tribunal Federal. A confiança nos militares deste país é tamanha que apenas um cabo foi designado para negociar 400 milhões de doses de AstraZeneca, quantidade que resolveria com sobras a imunização de toda a população.

Se uma proposta assim parece claramente um conto da carochinha, é bom lembrar que o governo Jair Bolsonaro acreditou nela. Roberto Ferreira Dias, diretor de Logística do Ministério da Saúde, e um outro militar, coronel da reserva que foi seu assessor na pasta, marcaram um jantar com o improvável vendedor de vacinas. O leitor conhece o resto da história graças a uma entrevista publicada na noite de terça (29) por esta Folha.

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Luiz Paulo Dominguetti Pereira, PM da ativa em Minas Gerais quando não está vendendo insumos de saúde, declarou à repórter Constança Rezende que ouviu de Dias um pedido de propina de US$ 1 por dose para fechar o negócio bilionário. Nesse mesmo dia, 25 de fevereiro, os jornais estampavam a marca de 250 mil mortos pela pandemia. Apesar de tantas derrapadas, a atual administração não havia sido confrontada pelas palavras “Bolsonaro” e “propina” em um mesmo título de reportagem factual. Não é pouca coisa, e o impacto foi enorme na mídia brasileira e no exterior.

Ilustração de Carvall para coluna do Ombudsman de 4.jul.21
Carvall

Na quinta (1º), convocado pela CPI da Covid, Dominguetti repetiu as acusações e disse que esteve no ministério três vezes para tratar da proposta. O que causou ruído, porém, foi o policial ter forçado a revelação de um áudio em que o deputado Luis Miranda, pivô do caso Covaxin, aparece negociando alguma coisa. Dominguetti tentou emplacar a tese de que eram vacinas, mas foi desmentido, teve que se retratar e quase acabou preso.

Senadores de oposição logo levantaram a tese de que o depoente fora plantado na CPI para desqualificar Miranda, em uma espécie de Operação Uruguai, a tosca manobra que tentou explicar os gastos estratosféricos do então ameaçado presidente Fernando Collor em 1992. Com a comissão convulsionada, a Folha, pela segunda vez na semana, virou pauta de discussão nas redes sociais. De onde o jornal tirou esse personagem? Por que ele apareceu, por que falou o que falou? Explica, Folha!

O jornal tomou a iniciativa de explicar. No mesmo dia, publicou texto esclarecendo as circunstâncias da entrevista, como a repórter chegou à empresa, ao seu procurador e ao preposto Dominguetti.

De fato, é difícil acreditar que uma firma desse porte, sem histórico confiável, teria capacidade de entregar qualquer coisa. A própria AstraZeneca veio a público para lembrar que só negocia com governos. E a patética figura do cabo, claro, corrobora o cenário de armação. Não foi a Folha, no entanto, quem deu crédito a essa fantasia, mas o governo federal. Está documentado que, de boa-fé ou de má-fé, integrantes da Saúde se dispuseram a discutir algo que escancaradamente não parecia ser um negócio reto.

O governo tergiversa, mas a semana que começou com a acusação dos irmãos Miranda acerca de um contrato de R$ 1,6 bilhão se encerra com um inquérito autorizado pelo STF para apurar a prevaricação de Bolsonaro e na apuração da suposta propina, motivo de alvoroço na CPI.

É DOSE

“Registros indicam que milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra a Covid; veja se você é um deles.” O título de sexta (2) é peremptório e fez muita gente, incluindo este ombudsman, checar seu cartão de vacinação. Só faltava essa...

Prefeituras de várias cidades, porém, logo negaram a aplicação de doses fora do prazo e, pela terceira vez na semana, a Folha virou assunto nas redes. O jornal registrou a queixa, mas disse que tirou os dados dos registros oficiais do Ministério da Saúde. E se estes estiverem errados, como fica?

A coluna voltará ao tema.

ANTES TARDE

Jornalismo é uma profissão ingrata. Um dia você consegue um furo, uma informação exclusiva; no seguinte aparece alguém para desqualificar o seu trabalho. Outras vezes, nem é preciso um detrator: o próprio objeto da reportagem derrota o repórter, que se sente impotente diante de uma questão que a apuração, por melhor que seja, não vai resolver.

Esse talvez fosse o destino escrito da série Inocentes Presos, um levantamento de falhas gritantes em processos de investigação policial, esquecidas nos labirintos jurídicos do país, como a que ocorreu no caso de José Aparecido Alves Filho, que foi ao ar na quarta (30).

Trabalhador rural, preso há sete anos, foi condenado em primeira e segunda instâncias por ter sido apontado como comparsa de um réu confesso em um roubo seguido de morte. A reportagem desfia sua condenação, baseada em depoimento controverso cujo autor voltou atrás. A Justiça não aceitou a retratação.

Após a publicação de sua história, no entanto, o ministro do STF Edson Fachin anulou a condenação, e José Aparecido deixou a penitenciária no interior paulista na sexta (2).

É por esses raros momentos que o jornalismo vale a pena.

Presidente da Alesp aciona comitê de ética contra deputado que disse que ele tem interesse particular em projeto, FSP

O presidente da Assembleia Legislativa de São PauloCarlão Pignatari (PSDB), enviou representação ao conselho de ética da Casa contra o também deputado Carlos Giannazi por quebra de decoro parlamentar. O político do PSOL diz ser alvo de perseguição política.

Na representação, Pignatari diz que ele teve sua honra atacada por Giannazi em sessão virtual da Casa no final de abril. Nela, foi discutido o projeto de lei 596/2020, da gestão João Doria (PSDB-SP), que autoriza a terceirização da inspeção sanitária e industrial da produtos de origem animal para empresas privadas. Atualmente, essa é uma atribuição da Secretaria de Agricultura.

Giannazi disse, então, que o projeto estava sendo discutido em momento inapropriado (em meio a uma pandemia de Covd-19), atendia a interesses econômicos e que o próprio Pignatari tinha interesse nele —o presidente da Alesp e sua família são do ramo dos frigoríficos avícolas.

"Eu não tenho interesse nenhum. Se o senhor for falar sobre isso, nós vamos ter um problema muito sério, deputado", respondeu Pignatari na sessão.

O deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL-SP)
O deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL-SP) - Mathilde Missioneiro-20.nov.2019/Folhapress

Na ocasião, Giannazi afirmou também que a Assembleia sempre foi "um puxadinho do governo, do tucanistão" e também do "poder econômico das grandes empresas, dos grandes setores econômicos do estado de São Paulo". Ele acrescentou que também é a "vanguarda do atraso".

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"O estado de São Paulo vivendo uma crise sanitária, um colapso na Saúde, no sistema funerário, a gente vai debater a terceirização da fiscalização das empresas de carne, de produtos de origem animal. Não tem cabimento isso", afirmou Giannazi, que diz que desde então tem sido perseguido pelo presidente da Alesp.

Atuante na área da educação, ele foi cortado de seu espaço na comissão sobre o tema. Ele era membro titular da comissão desde 2007. Por costume, os presidentes da Casa mantém os membros das comissões quando não há mudança de legislatura.

Agora o comitê de ética avaliará se cabe punição ao caso de Giannazi e qual seria.

Em março, o comitê optou por uma pena branda ao deputado Fernando Cury (Cidadania), que apalpou a parlamentar Isa Penna (PSOL) em plenário. A punição depois foi ampliada para 180 dias em votação na Alesp.

 

Marcos Lisboa Pendura a conta, FSP

 O Rio de Janeiro segue na sua toada de descumprir contratos e dar calote no restante do país. Durante anos, o estado concedeu benefícios fiscais e aumentou os gastos com servidores sem que houvesse recursos para isso. O jeito fluminense foi se endividar e antecipar receitas. Um dia, a fatura chegou, e o estado estava falido.

Muitas das dívidas tinham aval da União, que teve que arcar com a conta não paga pelo Rio. Em 2017, o estado foi beneficiado pelo Regime de Recuperação Fiscal (RRF), que previa um plano de três anos de medidas de ajuste em troca da suspensão temporária integral das suas dívidas com o governo federal.

RRF estabeleceu um Conselho de Supervisão para acompanhar sua execução, incluindo a vedação de contratar pessoal, de conceder vantagens para servidores ou de oferecer novos benefícios fiscais.
Relatórios do conselho registram as violações dessas vedações; as medidas acordadas, mas não implementadas; e a frustração do resultado desde 2017. Apesar disso, o STF concedeu liminar para o Rio se manter no regime.

A lei que regulamenta o RRF foi alterada em 2021, aperfeiçoando os controles e flexibilizando as condições. A dívida do Rio foi reduzida em cerca de R$ 20 bilhões e foi permitido seu reingresso no regime. O estado, contudo, voltou ao STF e conseguiu nova liminar para continuar não pagando suas dívidas com a União.

A Lei de Responsabilidade Fiscal estabeleceu limites para as despesas com pessoal. A lei complementar 178 determinou adicionalmente que a despesa com inativos deve ser registrada nos poderes que os empregam, inclusive nos casos em que recebem aportes do tesouro estadual.

O Rio de Janeiro se acha acima das leis nacionais. Para garantir maiores gastos com servidores, a Assembleia estadual aprovou lei permitindo descumprir a LC 178.

Em 2017, o estado tinha uma dívida com o BNP Paribas de R$ 2,9 bilhões, que foi paga pela União. O RRF previa que a Cedae deveria ser privatizada e que os recursos seriam utilizados para saldar o débito. Caso contrário, a empresa de saneamento passaria para o controle do governo federal.

O estado vendeu a concessão da Cedae, mas, argumentando que concessão não é privatização, deixou de repassar os recursos para a União. Pede que a dívida seja paga em 30 anos.

Recentemente, a Assembleia e a Defensoria do Rio pediram ao STF que declarasse inconstitucionais as regras legais para as despesas com pessoal. Enquanto isso, conselheiros do Tribunal de Contas aumentaram suas remunerações e o estado concedeu novos benefícios fiscais.

O Império acabou faz tempo, mas o Rio continua a acreditar que ainda é corte.