sexta-feira, 2 de julho de 2021

Hélio Schwartsman A biografia ou o cargo?, FSP

 


Já se depararam com o dilema Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello. Enfrenta-o agora Augusto Aras. E eu poderia ocupar o resto da coluna citando outros nomes. O dilema de que falo é: a biografia ou o cargo?

Mandetta e Teich poderiam ter conservado o emprego de ministro, se tivessem se dobrado às vontades de Bolsonaro. Preferiram não fazê-lo, salvando seu currículos como médicos e seres humanos. Pazuello optou pelo cargo, mas se meteu em tantos rolos que acabou ficando sem o posto e com a biografia arruinada.

É Aras, porém, quem será submetido ao teste de forma mais dramática. Ele tem de decidir se denuncia Jair Bolsonaro pelo crime de prevaricação, a essa altura já bem caracterizado, ou se poupa o presidente, como vem fazendo até aqui. Se opta pela denúncia, preserva a biografia, mas perde a recondução para o cargo. Se a engaveta, ganha um novo biênio como chefe ou quem sabe até vaga no STF.

Para quem olha de fora e não é um militante governista, parece óbvio que a biografia deveria valer mais do que um período breve de poder efêmero. Ainda assim, não são poucos os que se curvam a despropósitos de chefes. Como explicar isso?

Minha hipótese é que temos dificuldade para identificar questões morais e abordá-las com a gravidade que exigem. O mais comum é nem reconhecermos sua dimensão moral e as tratarmos como decisões ordinárias, não muito diferentes da escolha da cor das meias que usaremos.

Isso fica claro em experimentos como o do bom samaritano. Nele, seminaristas que haviam se preparado para falar sobre a parábola bíblica (e deveriam, portanto, estar propensos a ajudar o próximo) são em seguida colocados diante de um ator que lhes pede socorro. O que determina suas reações é basicamente a pressa: 90% dos seminaristas que achavam estar atrasados para um compromisso ignoraram os apelos; dos que acreditavam ter tempo, 63% ajudaram.

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Antonio Delfim Netto - Pasticcio fiscal, FSP

 Normalmente, a concepção de uma reforma tributária leva em conta alguns princípios e objetivos: simplificação, equidade, progressividade desejada, melhoria da eficiência alocativa, dentre outros. Para que sejam atingidos, a taxação do consumo, das rendas e do patrimônio devem ser, além de coerentes individualmente, consistentes entre si, de forma a produzir um sistema harmônico.

O “normalmente” já não é tão frequente. Na semana passada, o governo apresentou alterações, que caminham na direção correta, à tributação da renda das pessoas físicas e jurídicas, como a redução do IRPJ, a taxação dos dividendos, e a maior isonomia na taxação de alguns instrumentos financeiros.

O problema está nos detalhes, e a formulação produziu um “pasticcio” que será altamente indigesto ao setor produtivo, com implicações para os investimentos e para o crescimento econômico futuro. É difícil crer, por exemplo, que a brutal elevação que calcula-se para a tributação das empresas no lucro presumido (de 34% para 49%) ou que a definição de uma alíquota média sobre o lucro distribuído superior à da OCDE terá viés pró-crescimento.

Há duas interpretações: a correção da tabela do IR é uma medida eleitoreira (de eficácia duvidosa) encomendada pelo Planalto. Para viabilizá-la fiscalmente, produziu-se tal resultado. Disso se depreenderia, também, que o Ministério da Economia abriu mão de seu papel, eficaz até então, de barrar as “grandes ideias” que todos sabemos como termina.

A interpretação caridosa é que a versão submetida não passou pelos ajustes finais, aqueles onde as implicações para a dinâmica dos investimentos, produtividade e crescimento econômico são explicitadas aos interessados de forma a estabelecer limites ao que é possível ser feito. Iria para a conta das trapalhadas, como a finada ideia do uso de precatórios para financiar a expansão de programas sociais.

Se não for isso, teremos de aguardar os argumentos que defendem as escolhas e seus impactos. Será curioso para um governo dito pró-mercado que combate a má alocação de recursos (e que conta até com simpatizantes do inusitado “imposto é roubo”). Nada do que está ali é indefensável.

A progressividade do sistema e o tamanho da mordida em cada grupo são escolhas normativas. É apenas um caminho estranho ao que se defendeu até aqui e que onera ainda mais o setor produtivo em favor de uma fração (de tamanho incerto) da classe média.

Se a versão caridosa for a verdadeira, paciência. Coloca-se a conta no sujeito oculto que a produziu, e busca-se interlocução com a sociedade para que o projeto final seja melhor calibrado.


O impeachment e o compadrio, Opinião Estadão

Qualquer cidadão pode denunciar à Câmara dos Deputados o presidente da República por crime de responsabilidade, competindo ao presidente da Casa verificar se a denúncia preenche os requisitos legais. “Do despacho do presidente que indeferir o recebimento da denúncia caberá recurso ao plenário”, dispõe o Regimento Interno da Câmara, evidenciando quem deve ter a última palavra sobre o tema.

Apresentada a denúncia por crime de responsabilidade, o presidente da Câmara dos Deputados deve no mínimo inteirar-se de seu conteúdo e analisá-lo sem precipitações. Na quarta-feira passada, no entanto, o deputado Arthur Lira (PP-AL) fez questão de mostrar que tem modos próprios de proceder, mais afeitos aos interesses do Palácio do Planalto do que em conformidade com o Regimento Interno.

Horas depois de ter sido protocolado o 125.º pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro – um documento de 271 páginas, no qual 46 pessoas e instituições acusam o chefe do Executivo federal da prática de 23 crimes –, o presidente da Câmara descartou qualquer possibilidade de receber a denúncia, alegando que precisaria esperar o final da CPI da Pandemia. 

“Então, ao final dela (da CPI) a gente se posiciona aqui, porque, na realidade, impeachment, como ação política, a gente não faz com discurso, a gente faz com materialidade”, disse Arthur Lira. É no mínimo estranha essa certeza do presidente da Câmara de que ainda faltaria materialidade aos 23 crimes relatados, sem sequer ter analisado minimamente a nova denúncia contra Jair Bolsonaro.

Resultado de uma mobilização ampla, que reuniu movimentos e partidos de esquerda, siglas de centro, centro-direita e ex-bolsonaristas, o documento protocolado no dia 30 de junho elenca ações graves, que exigem apuração. Entre elas: atentar contra o livre exercício dos Poderes, ao participar de ato com ameaças ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF); usar autoridades sob sua subordinação para praticar abuso de poder no episódio de troca do comando militar e interferir na Polícia Federal; incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina; provocar animosidade nas classes armadas, ao incentivar motim dos policiais militares em Salvador; e as várias omissões e erros no combate à pandemia.

Longe de diminuir o peso político e a gravidade das acusações, a pressa de Arthur Lira em desqualificar o pedido de impeachment mostrou que o governo Bolsonaro e seus aliados estão preocupados com o tema. Não há como tapar o sol com peneira. Voltou-se a falar abertamente da real possibilidade de um processo de impeachment contra Jair Bolsonaro.

“As últimas denúncias de corrupção na compra de vacina trazem mais força ainda ao pedido”, disse o líder da oposição na Câmara, deputado Alessandro Molon (PSB-RJ). Não é para menos. Ao longo de mais de dois anos, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que tinha sido eliminada a corrupção de toda a administração federal.

Bastou, no entanto, o Senado instaurar a CPI sobre a atuação do governo federal na pandemia, para que surgissem denúncias de mau uso do dinheiro público envolvendo compra de vacinas – precisamente o item mais necessário para a retomada do crescimento econômico e do emprego. No dia 1.º de julho, em depoimento na CPI da Pandemia, Luiz Paulo Dominghetti confirmou que integrantes do governo Bolsonaro pediram-lhe propina de US$ 1 por dose de vacina, numa negociação de 400 milhões de doses.

Além disso, há a notícia-crime no Supremo Tribunal Federal na qual três senadores pedem abertura de inquérito para investigar o presidente da República por crime de prevaricação. Segundo o deputado Luis Miranda (DEM-DF), Jair Bolsonaro não teria tomado providências depois de ser informado, em março, sobre esquema de corrupção na compra da vacina Covaxin.

Todos esses fatos devem ser investigados pelas instâncias competentes. Não se conhece suspeita de corrupção que tenha sido bem resolvida com compadrios. O caminho é a lei, não a bravata de simplesmente negar os fatos.