domingo, 13 de dezembro de 2020

Elio Gaspari Conduta de Bolsonaro diante do coronavírus guarda semelhança com a dos soviéticos em Tchernóbil, FSP

 Em abril, o general Luiz Eduardo Ramos disse o seguinte:

“No jornal da manhã é caixão, corpo; na hora do almoço, é caixão novamente. No jornal da noite é caixão, corpo e número de mortos. [...] Não tá ajudando. Ninguém aqui está dizendo que tem que esconder. Os senhores [jornalistas] têm que também... Eu conclamo e peço encarecidamente, tem tanta coisa positiva acontecendo”.

Naquele dia, a Covid havia matado 165 pessoas e o total dos caixões já passava de 20 mil. Notícia boa, se houvesse, deveria ser procurada na patética reunião ministerial daquele mesmo dia, durante a qual Jair Bolsonaro emparedou Sergio Moro, o ministro da Educação propôs a prisão dos “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal e o da Economia sugeriu o retorno da jogatina de grife.

Ramos falou com a alma. Ele realmente acreditava que as sepulturas incomodavam, mas acreditava também que com menos imagens de caixões mudava-se a natureza do problema. Passaram-se oito meses e as imagens são outras. Pessoas sendo vacinadas na Inglaterra e governos anunciando o início de programas de imunização para as próximas semanas. No Brasil, só caixões, brigas e o general-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, atarantado.

A pandemia já matou no Brasil três vezes mais gente que a radiação liberada pela explosão do reator nuclear de Tchernóbil, da União Soviética, desde 1986. Segundo um artigo do International Journal of Cancer, os mortos ficaram entre 30 mil e 60 mil.

Apesar das enormes diferenças entre as duas tragédias, a conduta pessoal do capitão Bolsonaro e dos generais Ramos e Pazuello diante do coronavírus guarda uma triste semelhança com a reação dos comissários soviéticos em Tchernóbil.

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A explosão ocorreu na madrugada de 26 de abril de 1986. Quando o chefe da defesa civil da usina mostrou ao diretor que a radiação chegara a níveis intoleráveis, o burocrata expulsou-o da sala: “Seu medidor está quebrado”. Pela manhã, o vice-presidente do conselho de ministros disse que religaria o reator, e o ministro da Energia da Ucrânia explicou-lhe:
— Não existe mais reator.
— Você é um alarmista, respondeu o comissário.

“Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”, disse Bolsonaro, em março, quando 165 pessoas já haviam morrido. Dias antes, ele dissera que a pandemia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde “não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”.

O negacionismo seguiu cursos diferentes na fase seguinte, ambos estimulando a inércia. Em Tchernóbil, quando o chefe da defesa civil mencionou a necessidade de evacuar a população da cidade, um comissário da região foi breve: “Sente-se. Isso não é da sua conta”. O ministério da Saúde
concordava com ele.

Em Pindorama, Bolsonaro chamou os governadores que defendiam o isolamento social de “destruidores de empregos”, e o general Pazuello ainda acha que não se deve falar nisso.

A cidade próxima ao reator Tchernóbil só foi evacuada no dia seguinte. E, 36 horas depois da explosão, não haviam sido disparadas as medidas previstas nos protocolos da defesa civil. Vídeos mostram cenas de um casamento e de vida normal em vários lugares.

Quando Bolsonaro falava em gripezinha, o presidente mexicano, Manuel López Obrador, dizia que a Covid “não equivalia a uma gripe”. E o primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, desdenhava o perigo. Johnson foi parar numa UTI, abandonou o negacionismo e pediu desculpas por ter dado informações erradas. Obrador orgulhosamente anunciou seu plano de imunização dos mexicanos, começando neste mês pelos profissionais de saúde.

Como os burocratas soviéticos, Johnson e Obrador pensavam que mandavam e disseram besteiras, mas se corrigiram. Bolsonaro ainda não entendeu o que está acontecendo e continua brincando com os diminutivos.

No dia em que o número de mortos pela “gripezinha” havia chegado a 179 mil, com a média móvel em alta, ele disse que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”.

Seu governinho tem uma dificuldadezinha com a realidade.

DIONISIO NETO Pane no Zeitgeist, FSP

 Em um dos primeiros dias da pandemia, no início deste ano que parece não ter fim, ainda incrédulo da nova realidade de ficção científica mal escrita a que fomos lançados tragicamente, fui tomar um sol na praça da minha infância.

Por um instante pensei nas crianças de dois, três anos que se maravilhavam com a vida, brincando de astronautas, alheias ao vírus que quebrou o mundo como o conhecíamos. Uma delas divertia-se com um caminho de formigas. Aprendeu que se passasse o dedo entre elas, todas perdiam o rumo. Saiam da fila indiana e andavam aleatoriamente no caos instaurado pelo piá.

Por um momento pensei em mim como uma dessas formigas desnorteadas com a quebra brutal e o desmoronamento do mundo. Os alemães têm esta palavra linda, de uma sonoridade melódica para o espírito do nosso tempo: Zeitgeist; mas, infelizmente, agora ela toma uma conotação fantasmagórica, apocalíptica.

A tragédia parece não ter fim. Nunca tive tantos pesadelos como neste ano. Ou talvez nunca me lembrei tanto deles.

Em 1995, eu escrevi uma peça teatral em três dias, após convulsões causadas pela minha despedida de três anos trabalhando com o diretor de teatro Antunes Filho —”Perpétua”, uma ficção científica de amor e morte. Em um futuro próximo, por causa de um toque de recolher, um poeta ficava confinado durante uma madrugada com uma meretriz. Após horas intensas de convívio forçado, um feminicídio acontecia.

Vinte e cinco anos depois, a minha intuição de jovem dramaturgo passou a existir em muitos lares. Muitas Perpétuas foram assassinadas durante a quarentena. Os casos aumentaram em relação ao ano anterior. A tragédia, quando vem, é catártica. Sem poesia.

Procuro beber na história que nos mostrou que depois de tempestades escuras vem a calmaria luminosa. Lembro sempre dessas crianças, os pequenos astronautas da praça, e vejo que também me sinto uma espécie de astronauta, dentro de uma caverna de Platão contemporânea. Entre o meu mundo e o mundo real, uma profusão caleidoscópica de telas. Olho para meu celular e penso no monólito de 2001 —uma odisseia no espaço. Este novo mundo, não tão admirável assim, é irreversível. Como se mudássemos para sempre a fase do jogo.

A cafonérrima expressão “novo normal” é estampada em todos os lugares. Não é um novo normal. O normal é a vida. Somos seres sociais, precisamos do coletivo para nos entendermos. A morte, mais banalizada do que nunca, virou, para quem não a vê de perto, estatística.

O calor humano, tão inerente ao nosso povo, agora é intermediado por fibra ótica. Como sabemos, a emoção de presenciar ao vivo os acontecimentos do planeta é uma experiência insubstituível. A inteligência artificial está tentando, mas sempre caímos na questão central —a alma. A única certeza é a dúvida. E, como disse Franz Kafka, “há obstáculos em todas as partes, mas a vida consiste exatamente em aceitar os obstáculos”. Deu pane no Zeitgeist. Hora de reinventá-lo. Tudo a fazer. Homens do mundo todo, vacinemo-nos!