terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Pablo Ortellado - Debate interditado, FSP

 Bolsonaro é uma espécie de Midas reverso: tudo em que ele toca estraga. Sempre que o presidente se aproximou de algum debate sobre políticas públicas, a posição que abraçou terminou associada ao charlatanismo populista e à anticiência. Isso interditou debates públicos fundamentais sobre a segurança das urnas eletrônicas e a reabertura das escolas.

Desde a campanha presidencial, Bolsonaro estimula a desconfiança no processo eleitoral. Sem apresentar qualquer tipo de evidência, alegou que as urnas eletrônicas foram fraudadas e que sua vitória teria sido maior do que efetivamente foi. A postura irresponsável de fazer uma acusação grave sem provas e organizar uma campanha de descrédito do sistema eleitoral levou os atores políticos a repudiar a posição do presidente.

Mas essa compreensível repulsa terminou bloqueando um debate que precisa ser feito. Há muitos anos uma parcela da comunidade acadêmica critica a abordagem de segurança adotada pela urna eletrônica: da opção de manter o código fechado à tecnologia de ciframento. Nos testes de segurança que são periodicamente conduzidos pelo TSE, esses acadêmicos têm apontado vulnerabilidades relevantes.

O presidente do TSE, Luis Roberto Barroso, durante coletiva de imprensa para falar sobre o atraso na divulgação do resultado do 1o turno das eleições. - Pedro Ladeira/Folhapress

Há também argumentos muito razoáveis em defesa do voto impresso, que permitiria uma auditoria não digital, como é feito em muitas democracias que adotam urnas eletrônicas. Isso tudo, evidentemente, não quer dizer que as eleições foram fraudadas nem que o sistema não seja confiável —apenas que ele pode ser mais seguro.

Situação semelhante acontece com o debate sobre a reabertura das escolas. A postura do presidente Bolsonaro de minimizar a gravidade da Covid e se opor ao fechamento do comércio levou a justificadas críticas em defesa de uma saúde pública negligenciada.

Mas isso impediu também um debate nuançado sobre a reabertura das escolas que equilibrasse os riscos à saúde com outros riscos trazidos pela adoção integral do ensino à distância. Como muitos especialistas têm mostrado, o ensino à distância apresentou resultados limitados, e a perda de um ano letivo vai gerar deficits de aprendizagem que devem aumentar a evasão escolar, ampliar a desigualdade social e reduzir a produtividade do trabalho. É por esse tipo de motivo que, mesmo no rígido lockdown europeu, as escolas seguem abertas.

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Um dos piores efeitos da polarização política é que ela compromete nossa independência de raciocínio e nossa postura crítica, gerando comportamentos reflexos. Não precisamos, de maneira automática e irrefletida, ser sempre contra aquilo que Bolsonaro defende.

Pablo Ortellado

Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

Cristina Serra A difícil travessia de 2021, FSP (tem quadro comparativo 2. turno sp)

 30.nov.2020 às 23h15

As eleições municipais de 2020 desenham alguns contornos importantes sobre o realinhamento de forças conservadoras e progressistas no Brasil. Desde a ruptura institucional de 2016, que deve ser chamada pelo nome de fato, ou seja, golpe, essas forças vêm passando por uma reacomodação.

No pleito de agora, foi um alívio assistir à confirmação do fracasso de Bolsonaro como cabo eleitoral, sobretudo com a derrota esmagadora de seu aliado no Rio de Janeiro, o inqualificável bispo Crivella. Até aí, estamos falando da extrema direita. Já no campo da direita mais tradicional, é preciso, antes de tudo, apontar uma falácia. Partidos de direita fazem um tremendo esforço para vender a imagem de centristas. Mas é preciso não perder de vista o DNA dessas legendas. PP e DEM, por exemplo, têm sua origem no PDS, partido de sustentação da ditadura. Haja marketing para tirar esse bolor.

Também é difícil reconhecer no PSDB comandado por Bolsodória o perfil de centro (alguns diriam centro-esquerda) do partido criado em 1988 por FHC, Mário Covas e Franco Montoro. Como já era esperado, no dia seguinte às eleições, Doria voltou a adotar medidas impopulares de restrição, em São Paulo, para tentar conter a pandemia. Qual o custo humano de esperar o fechamento das urnas para anunciar essa decisão? Feitas essas considerações, é forçoso reconhecer que as legendas de direita —e não o centro— saíram fortalecidas em 2020.

Entre os progressistas, há um vácuo de estratégia. O PT perdeu preponderância, e partidos que disputam o mesmo campo não conseguem envergadura nacional. É de se notar, porém, uma bem-vinda renovação geracional na figura de Guilherme Boulos. Como esses eixos políticos se alinharão para 2022 depende menos desta eleição e muito mais da travessia que faremos em 2021. Bolsonaro e sua irresponsabilidade criminosa continuam. A pandemia também, com todos seus efeitos: morte, desemprego e fome. Com o agravante de que estamos todos exaustos.

Comparação com eleições anteriores
Comparação com eleições anteriores - Núcleo de Imageem
Cristina Serra

Cristina Serra é jornalista.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

João Pereira Coutinho - Toda mulher deve sentir aversão por homens que se declaram feministas, FSP

 Odiar os homens não tem nada de especial. Conhecendo a espécie, diria que é quase um milagre o fato de mulheres se interessarem por nós.

Mas Pauline Harmange vai mais longe: ela odeia os homens e declara isso no livro “Moi les Hommes, Je les Déteste”. A Folha informou que haverá edição brasileira no próximo ano, pelo Record. Aplaudo.

Já escrevi sobre o fenômeno Harmange nesta coluna. Mas só recentemente li o livro, em edição inglesa, porque não consegui a edição francesa na altura da polêmica.

Relembro: um assessor do governo de Emmanuel Macron ameaçou processar a editora Monstrograph por “apologia da misandria”. A editora, temerosa, não permitiu reimpressões.

O assessor em causa era um homem. Isso mostra como Pauline Harmange tem alguma razão para odiar quem odeia, embora eu talvez abrisse uma exceção para o cavalheiro em causa: graças à inteligência fulgurante do personagem, o manifesto virou best-seller internacional.

Desenho de cuecas em chamas
Ilustração de Angelo Abu - Angelo Abu

Mas Harmange tem razão em outras coisas. A primeira delas é a aversão que qualquer mulher deve sentir por homens que se declaram “feministas”.

Ri alto quando li esse trecho. Conheço casos. Machos que usam o feminismo para sinalizarem a sua virtude —e, em certos casos, para poderem dormir com mulheres.

Nas palavras da autora, só canalhas como os homens seriam capazes de se apropriar de um termo que expressa a luta secular das mulheres por um mundo de igualdade e direitos.

Da próxima vez que você, leitor, sentir a tentação de se declarar feminista, cale a boca. É mais honesto recorrer à velha canção do bandido do que à nova cantada do feminismo.

Por outro lado, são interessantes as reflexões de Harmange sobre a suposta equivalência entre “misoginia” (ódio às mulheres) e “misandria” (ódio aos homens). Serão a mesma coisa?

Teoricamente, talvez. Mas Harmange argumenta que as consequências são distintas. A misandria não provoca vítimas. A misoginia tem uma longa história de violência e morte.

Concordo. E, a esse respeito, acrescento: serei o único a sentir repulsa por “homens” que se sentem vulneráveis ou até vitimas do empoderamento feminino?

Nem todos somos como o patético assessor do governo francês, no fim das contas. E é aqui que o manifesto de Harmange perde o seu fulgor: na ideia abstrusa de que a misoginia é um exclusivo dos homens. Ou, então, na afirmação pueril de que existe uma irmandade entre as mulheres.

A história desmente essas fantasias: por cada feiticeira queimada, houve uma denunciante de feiticeiras. Por cada sufragista, houve uma antissufragista.

Anos atrás, lembro-me de ler uma história cultural da misoginia (“Misogyny”, do saudoso Jack Holland) na qual o autor lembrava os massacres de Ruanda. Para nos dizer que uma outra Pauline, no caso a ministra hutu Pauline Nyiramasuhuko, teve um papel crucial no genocídio das mulheres tutsis.

Inversamente, como negar que existiram homens —do iluminismo à emancipação política, sem esquecer a invenção da pílula— que estiveram do lado das mulheres?

O corte radical com metade da espécie, mais do que ignorância, me parece um erro estratégico para as etapas que faltam.

Por último, é estranho que uma feminista perspicaz como Harmange não repare no elefante que está no meio da sala: a misoginia, longe de ser uma afirmação de superioridade masculina, é o seu oposto —um produto do medo e da ansiedade dos homens diante das mulheres.

Nunca encontrei uma explicação satisfatória para esse medo e para essa ansiedade. Complexo de castração? Freud é um grande escritor, admito, mas mantenho o que disse Nabokov sobre ele: “É a aplicação de mitos gregos às partes íntimas”.

Prefiro os mitos gregos propriamente ditos. Como lembrava Jack Holland na referida história sobre a misoginia, o mito de Pandora é matricial nesse temor; as aventuras de Adão e Eva também. A mensagem é comum: cuidado com as mulheres, elas serão a perdição da humanidade! E por quê?

Arrisco uma hipótese: porque, em ambos os casos, são as mulheres que exibem uma vontade de conhecimento e de liberdade que sempre assustou as almas medíocres. Mesmo que essa vontade seja o princípio, e não o fim, de toda a esperança.

“Eu detesto os homens”? O título é bom, madame Harmange, mas ficaria melhor com um ligeiro acerto: “Eu Detesto os Homens e Algumas Mulheres, mas é dos Homens que eu Sinto Pena”.

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João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.