domingo, 2 de agosto de 2020

Clarissa Gross Que honra é essa?, FSP

Hélio Schwartsman escreveu recentemente que torcia para que o quadro de Covid-19 de Bolsonaro se agravasse e o presidente viesse a óbito. O texto veiculando desejo expresso e explícito de morte causou comoção pública e levou o Ministro da Justiça a pedir abertura de inquérito policial para investigar Schwartsman por crime previsto no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional.

Schwartsman não cometeu crime algum, e o episódio ilustra confusões conceituais importantes em torno da liberdade de expressão. O artigo 26 da Lei de Segurança Nacional afirma que o crime se aperfeiçoa com imputação de “fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. No desejo expresso da morte de outrem não há atribuição de fato a ninguém. O que explica que tenha sido tão facilmente associado aos crimes de calúnia e difamação?

A minha hipótese é a de que o debate público no Brasil lida muito mal com o discurso de conteúdo ofensivo. O direito brasileiro ainda não foi capaz de comunicar que se sentir ofendido com o que pensam os outros não justifica por si só o silenciamento. Os crimes de calúnia e difamação exigem de forma clara a imputação de fato a alguém. Essa exigência, no entanto, parece obliterada pelo caráter ofensivo dos desejos de Schwartsman.

É interessante que o próprio Schwartsman parece se confundir. Ele rechaçou a investigação argumentando que não teria “acionado nenhuma alavanca” (em menção à “trolleyology”) para tirar a vida do presidente, e que o vírus é indiferente aos seus desejos. Como se a defesa contra calúnia e difamação dependesse de mostrar que não tinha atentado concretamente contra a vida de Bolsonaro, ou de que não é possível incitar um vírus.

Enquanto isso, outros elementos do seu primeiro texto se aproximavam mais de calúnia e difamação do ponto de vista técnico. Schwartsman afirmou que Bolsonaro minimiza a epidemia e sabota medidas para mitigá-la. São proposições menos ofensivas do que o desejo de óbito, mas que mais se aproximam a imputações de “fato ofensivo à reputação”. Esse discurso, no entanto, emite juízo de valor sobre as condutas de Bolsonaro. É crítica política que segue dentro da lei. Schwartsman não foi o primeiro e nem será o último a externá-la.

Calúnia e difamação, crimes pensados para proteger a honra, não protegem de todo e qualquer discurso que possa ofender o ouvinte. Tampouco protegem contra a crítica política. A linguagem engana: nem sempre quando dizemos que alguém “é” ou “faz” alguma coisa estamos a lhe imputar um fato. Pode ser apenas a forma de expressar opinião.

Clarissa Gross

Doutora pela Faculdade de Direito da USP e Coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia (PLED) da FGV Direito SP

Ruy Castro Prisioneiro de uma geração, FSP

Burt Bacharach, autor da trilha sonora dos anos 60, ressurge com uma canção nova. Mas para quem?

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Telegrama internacional informa que Burt Bacharach, pianista e compositor, acaba de lançar uma canção: “Bells of St. Augustine”, balada “jazz-pop, suave e melancólica”. Para quem gosta de música, é boa notícia —toda nova canção é bem-vinda e mais ainda por ser de Bacharach. Triste é saber que é sua primeira desde 2005. O que ele andou fazendo nesses 15 anos para só agora, aos 92, nos brindar com uma música? Fechou o piano e, quando o abria, era só para repassar antigos sucessos para os amigos?
Bacharach, tanto quanto Tom Jobim, Henry Mancini e Lennon e McCartney, compôs a trilha sonora dos anos 60. De 1965 até o fim da década, não se passava um mês sem uma de suas maravilhas, em parceria com o letrista Hal David.

Era impossível escapar. Com Dionne Warwick ou ele próprio, sua música estava no rádio, no cinema e nos toca-discos. Era uma saraivada de sucessos comparável à dos Beatles: “Close to You”, “Wives and Lovers”, “Reach Out for Me”, “Walk on By”, “A House is Not a Home”, “What the World Needs Now is Love”, “Alfie”, “Bond Street”, “The Look of Love”, “The Windows of the World”, “I Say a Little Prayer”, “Do You Know the Way to San José?”, “This Guy’s in Love With You”, ”I’ll Never Fall in Love Again”, “Raindrops Keep Falling on my Head”. Foi quando, por algum motivo —talvez por querer uma música mais adulta—, desembarquei de Bacharach.

O pianista e compositor norte-americano Burt Bacharach posa para foto
O pianista e compositor norte-americano Burt Bacharach - Divulgação

Não que sua música não fosse adulta. Ao contrário, a beleza melódica, sofisticação harmônica e leveza rítmica só tinham equivalentes na bossa nova. Mas Bacharach criara um som tão pessoal e “jovem” que parecia exclusivo dos meninos daquela geração. De repente, amadurecemos e o deixamos para trás. Ouvir Bacharach, hoje, é uma viagem.

A pergunta certa seria: o que ele andou fazendo desde 1970? Música, certamente. Mas talvez adulta demais para os meninos que se seguiram, fãs de rock e de mais nada.

O compositor Burt Bacharach e a cantora Dionne Warwick, em apresentação em Los Angeles, em 2012
O compositor Burt Bacharach e a cantora Dionne Warwick, em apresentação em Los Angeles, em 2012 - Jonathan Alcorn - 26.mar.12/Reuters

Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.