Hélio Schwartsman escreveu recentemente que torcia para que o quadro de Covid-19 de Bolsonaro se agravasse e o presidente viesse a óbito. O texto veiculando desejo expresso e explícito de morte causou comoção pública e levou o Ministro da Justiça a pedir abertura de inquérito policial para investigar Schwartsman por crime previsto no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional.
Schwartsman não cometeu crime algum, e o episódio ilustra confusões conceituais importantes em torno da liberdade de expressão. O artigo 26 da Lei de Segurança Nacional afirma que o crime se aperfeiçoa com imputação de “fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. No desejo expresso da morte de outrem não há atribuição de fato a ninguém. O que explica que tenha sido tão facilmente associado aos crimes de calúnia e difamação?
A minha hipótese é a de que o debate público no Brasil lida muito mal com o discurso de conteúdo ofensivo. O direito brasileiro ainda não foi capaz de comunicar que se sentir ofendido com o que pensam os outros não justifica por si só o silenciamento. Os crimes de calúnia e difamação exigem de forma clara a imputação de fato a alguém. Essa exigência, no entanto, parece obliterada pelo caráter ofensivo dos desejos de Schwartsman.
É interessante que o próprio Schwartsman parece se confundir. Ele rechaçou a investigação argumentando que não teria “acionado nenhuma alavanca” (em menção à “trolleyology”) para tirar a vida do presidente, e que o vírus é indiferente aos seus desejos. Como se a defesa contra calúnia e difamação dependesse de mostrar que não tinha atentado concretamente contra a vida de Bolsonaro, ou de que não é possível incitar um vírus.
Enquanto isso, outros elementos do seu primeiro texto se aproximavam mais de calúnia e difamação do ponto de vista técnico. Schwartsman afirmou que Bolsonaro minimiza a epidemia e sabota medidas para mitigá-la. São proposições menos ofensivas do que o desejo de óbito, mas que mais se aproximam a imputações de “fato ofensivo à reputação”. Esse discurso, no entanto, emite juízo de valor sobre as condutas de Bolsonaro. É crítica política que segue dentro da lei. Schwartsman não foi o primeiro e nem será o último a externá-la.
Calúnia e difamação, crimes pensados para proteger a honra, não protegem de todo e qualquer discurso que possa ofender o ouvinte. Tampouco protegem contra a crítica política. A linguagem engana: nem sempre quando dizemos que alguém “é” ou “faz” alguma coisa estamos a lhe imputar um fato. Pode ser apenas a forma de expressar opinião.
Nenhum comentário:
Postar um comentário