domingo, 2 de agosto de 2020

Marcelo Leite Temos raízes racistas e violentas, FSP

Em tempos de maré contra discriminação racial, não se fala mais nisso, mas já houve por aqui um best seller com o título “Não Somos Racistas”, década e meia atrás. Os brasileiros, gente frouxa, gostamos mesmo de engolir mentiras.

Negamos até evidências que carregamos no sangue, nos genes. Entre outras, que a metade da população nacional composta de negros (pretos e pardos, na classificação do censo) tem origem num oceano de violência, não raro sexual e mortal.

Não faltam estudos genéticos sobre marcas ancestrais da escravidão, como os de Sérgio Danilo Pena. Em 23 de julho saiu mais um, de Joanna Mountain, no American Journal of Human Genetics, reunindo a análise de centenas de milhares de dados de DNA de dezenas de milhares de pessoas nas Américas, na África e na Europa com registros de viagens e cargas de tumbeiros, os navios do tráfico.


A comparação dos perfis genéticos de populações atuais dos dois lados do Atlântico, aliada aos dados históricos, permitiu remontar e, em certos aspectos, confirmar origens e destinos de cerca de 12,5 milhões de africanos arrancados de sua terra entre os séculos 16 e 19.

A mortalidade era enorme nos tumbeiros, como indica o nome: estima-se que 2 milhões morreram no mar. Dos 10,5 milhões que chegaram a portos americanos, metade desembarcou na América do Sul, e desta a grande maioria no Brasil.

Há indícios, no DNA da população negra atual, de que a violência aqui foi bem maior do que na América do Norte. A contribuição das mulheres negras para o patrimônio genético presente no Sul foi 17 vezes maior que a dos homens africanos; em terras norte-americanas, 1,5 vez.

Há duas explicações para a discrepância. Uma, escravizados do sexo masculino eram submetidos a mais maus tratos e piores condições de vida e trabalho, morrendo antes de ter filhos. Duas, o estupro de escravizadas pelo colonizador branco era mais comum no Brasil.

Não estranha que muita gente, entre nós, tome por normal a matança de jovens negros e pobres pela polícia. A truculência está no nosso DNA —e olhe que nem somos racistas.


​Depois de aproveitar a condição de suposto covidiano para turbinar a propaganda de hidroxicloroquina, Jair Bolsonaro usou sua última transmissão ao vivo para incentivar desconfiança numa das pretendentes a vacina contra o novo coronavírus.

O capitão reedita a lógica da campanha difamatória movida contra o distanciamento social, medida sanitária de governadores de oposição. Lança agora dúvida sobre imunizante a ser testado em São Paulo para promover uma concorrente não comunista, por assim dizer.

Imagine agora o cenário pandemoníaco: a vacina “de Oxford” fracassa nos testes clínicos, e a outra mostra que produz anticorpos suficientes para impedir a progressão da Covid-19. É só uma hipótese, mas plausível.

Chegamos a esse ponto, uma vacina de direita e outra de esquerda. Até que uma delas fique disponível para aplicação em massa, daqui a muitos meses, a bolsosfera terá tempo de convencer até um terço da população de que não deve deixar-se vacinar por conspiradores vermelhos.

A depender da eficácia do preparado imunizante e do número de antivaciners verdes e amarelos, o Brasil de Bolsonaro pode não alcançar a sonhada imunidade coletiva. Nem o rebanho dele, nem o nosso.

Mais pretos, mais velhos e mais pobres morrerão. Não se deveria esperar menos de quem, aparentemente, já pode ter infectado seis ministros do seu governo, um número desconhecido de seguidores e a própria mulher.

Marcelo Leite

Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”.

Vinicius Torres Freire Dólar cai pelas tabelas e pode levar o juro brasileiro junto, FSP



Dólar a R$ 5 já foi motivo de meme. Agora, além do Banco Central e dos povos dos mercados, pouca gente fala no assunto, talvez porque faltem reais até para os remediados, porque os importados sumiram dos supermercados de bairro rico, dada a carestia, e porque não se pode viajar para fora.

De março a junho, a despesa dos brasileiros com viagens internacionais foi de US$ 1,25 bilhão. No mesmo período do ano passado, de US$ 5,8 bilhões. No tempo em que "empregada doméstica ia para Disneylândia, uma festa danada", segundo Paulo Guedes, o gasto era de US$ 8 bilhões (em 2013 e 2014).

Mas o assunto aqui não é a mentalidade doméstica do ministro da Economia e sim o dólar, que cai pelas tabelas.

Depois do pico do pânico financeiro de março, a moeda americana perdeu valor, baixando ao menor nível desde 2018 em relação ao dinheiro de seus parceiros comerciais. Está longe ainda, uns 20%, do fundo do poço de 2011-12, mas se tornou assunto da finança, até porque as taxas de juros americanas de prazo mais longo também foram ao chão.

Nota de dólar norte-americano - Gabriel Cabral/Folhapress

Seria um indício ou expectativa de que a recuperação da economia dos Estados Unidos pode ir para o vinagre. A epidemia está descontrolada também por lá e talvez não sejam renovados pacotes de socorro, em particular para os desempregados, o que se tornou um problema por causa dos senadores do Partido Republicano de Donald Trump.

De resto, há o temor de que o Nero Laranja queira melar o resultado da eleição presidencial de novembro.
A economia americana afundou menos do que a dos países da zona do euro nesta primeira metade do ano. Caiu 1,3% no primeiro trimestre (em relação ao anterior) e outros 9,5% no segundo. Na eurozona, as baixas foram respectivamente de 3,6% e de 12,1%. No Brasil, mero lembrete, foi de 1,5% no primeiro trimestre e, estima-se, deve ter sido de 11% no segundo. A China já zerou as perdas no ano, melhor que todo mundo.

Há, no entanto, mais elogios e esperanças para a Europa, que conteve a epidemia, vê seu euro se valorizar e está com um desemprego menor que o americano. Na zona do euro, a taxa de desemprego passou de 7,5% em 2019 para 7,8% na medida mais recente; nos EUA, de 3,7% para 11%.

A União Europeia acaba também de dar sinal de coesão e vontade de superar a crise de modo algo mais civilizado, com um pacote inédito de endividamento coletivo (como se fosse um país) equivalente a R$ 4,6 trilhões, para ajudar os mais avariados do bloco.

E daí?

No que interessa de mais imediato, o Banco Central do Brasil dizia que um dos problemas de baixar ainda mais a taxa básica de juros (Selic) era o risco de desvalorização extra do real, o que teria efeitos contraproducentes (seria um desestímulo econômico).

Hum. Parece que esse risco pelo menos diminuiu. Como a inflação prevista para 2021 está abaixo da meta, a economia está arruinada e nosso pacote de socorro social começa a expirar em setembro, conviria não dar chance para o azar (economia deprimida com inflação baixa).

Em segundo lugar, a lerdeza americana deve levar o Fed a manter seus juros básicos a quase zero por tempo a perder de vista e recorrer a medidas mais heterodoxas para reduzir juros de prazos mais longos. É outra ajudazinha para mantermos os nossos juros aqui também miudinhos.

Não é bom, claro, que a economia americana azede. Mas temos de levar em conta o fato da baixa do dólar e das taxas de juros por lá. A propósito, nesta semana tem decisão de juros do Banco Central daqui."

Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).