Em tempos de maré contra discriminação racial, não se fala mais nisso, mas já houve por aqui um best seller com o título “Não Somos Racistas”, década e meia atrás. Os brasileiros, gente frouxa, gostamos mesmo de engolir mentiras.
Negamos até evidências que carregamos no sangue, nos genes. Entre outras, que a metade da população nacional composta de negros (pretos e pardos, na classificação do censo) tem origem num oceano de violência, não raro sexual e mortal.
Não faltam estudos genéticos sobre marcas ancestrais da escravidão, como os de Sérgio Danilo Pena. Em 23 de julho saiu mais um, de Joanna Mountain, no American Journal of Human Genetics, reunindo a análise de centenas de milhares de dados de DNA de dezenas de milhares de pessoas nas Américas, na África e na Europa com registros de viagens e cargas de tumbeiros, os navios do tráfico.
A comparação dos perfis genéticos de populações atuais dos dois lados do Atlântico, aliada aos dados históricos, permitiu remontar e, em certos aspectos, confirmar origens e destinos de cerca de 12,5 milhões de africanos arrancados de sua terra entre os séculos 16 e 19.
A mortalidade era enorme nos tumbeiros, como indica o nome: estima-se que 2 milhões morreram no mar. Dos 10,5 milhões que chegaram a portos americanos, metade desembarcou na América do Sul, e desta a grande maioria no Brasil.
Há indícios, no DNA da população negra atual, de que a violência aqui foi bem maior do que na América do Norte. A contribuição das mulheres negras para o patrimônio genético presente no Sul foi 17 vezes maior que a dos homens africanos; em terras norte-americanas, 1,5 vez.
Há duas explicações para a discrepância. Uma, escravizados do sexo masculino eram submetidos a mais maus tratos e piores condições de vida e trabalho, morrendo antes de ter filhos. Duas, o estupro de escravizadas pelo colonizador branco era mais comum no Brasil.
Não estranha que muita gente, entre nós, tome por normal a matança de jovens negros e pobres pela polícia. A truculência está no nosso DNA —e olhe que nem somos racistas.
Depois de aproveitar a condição de suposto covidiano para turbinar a propaganda de hidroxicloroquina, Jair Bolsonaro usou sua última transmissão ao vivo para incentivar desconfiança numa das pretendentes a vacina contra o novo coronavírus.
O capitão reedita a lógica da campanha difamatória movida contra o distanciamento social, medida sanitária de governadores de oposição. Lança agora dúvida sobre imunizante a ser testado em São Paulo para promover uma concorrente não comunista, por assim dizer.
Imagine agora o cenário pandemoníaco: a vacina “de Oxford” fracassa nos testes clínicos, e a outra mostra que produz anticorpos suficientes para impedir a progressão da Covid-19. É só uma hipótese, mas plausível.
Chegamos a esse ponto, uma vacina de direita e outra de esquerda. Até que uma delas fique disponível para aplicação em massa, daqui a muitos meses, a bolsosfera terá tempo de convencer até um terço da população de que não deve deixar-se vacinar por conspiradores vermelhos.
A depender da eficácia do preparado imunizante e do número de antivaciners verdes e amarelos, o Brasil de Bolsonaro pode não alcançar a sonhada imunidade coletiva. Nem o rebanho dele, nem o nosso.
Mais pretos, mais velhos e mais pobres morrerão. Não se deveria esperar menos de quem, aparentemente, já pode ter infectado seis ministros do seu governo, um número desconhecido de seguidores e a própria mulher.
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