quarta-feira, 3 de junho de 2020

Morre Maria Alice Vergueiro, a dama do underground e do 'Tapa na Pantera', aos 85, fsp

Atriz ficou conhecida por sua veia performática e por criar espetáculos associados à estética do grotesco

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SÃO PAULO

Morreu nesta quarta (3), aos 85 anos, a atriz Maria Alice Vergueiro, a dama do underground ou ainda a velha dama indigna, conhecida por seu despudor e suas atuações performáticas no teatro brasileiro. Ela tinha Parkinson e estava internada no Hospital das Clínicas desde 25 de maio, onde contraiu pneumonia.

A morte foi confirmada por um amigo próximo da atriz, o também ator Luciano Chirolli, com quem mantinha o grupo Pândega.

Nascida em São Paulo em 1935, a artista foi uma das fundadoras do Teatro do Ornitorrinco ao lado de Cacá Rosset, companhia que formou um dos repertórios mais populares do teatro brasileiro nos anos 1970 e 1980. Ela é autora de uma carreira amplamente dedicada a um teatro de pesquisa, no qual prevalecem o deboche sobre valores burgueses, o estudo sobre a sexualidade, sobre a estética do grotesco e as teorias voltadas a um teatro popular, derivadas da obra de Bertolt Brecht.

O próprio Teatro do Ornitorrinco, aliás, foi influenciado pelas teorias de Brecht. Além de atuar, Vergueiro dirigiu espetáculos, como "Why the Horse?", de 2015, escrito em homenagem aos escritores que incluenciaram a trajetória da atriz.

No cenário, havia lápides de escritores como Shakespeare, Nelson Rodrigues e Samuel Beckett. Ali, Vergueiro pressentiu a morte e retratou seu próprio velório. Foi sua última criação para o palco.

No início de sua trajetória, nos anos 1960, a atriz teve formação em pedagogia pela Universidade de São Paulo. Depois, passagens por instituições de ensino médio e, posteriormente, a migração para atividades formativas da área teatral. Ela também passou a dar aulas na Escola de Artes Dramáticas da USP.

Na universidade, atuou em uma peça, "Cabaret da Rainha Louca", em 1974, que chamou atenção por causa de seu temperamento "anárquico", como ela próprio o definiria mais tarde.

Na ocasião, uma comissão de sindicância foi aberta na USP para apurar a performance da atriz nesse espetáculo. Ela contracenava com o ator Cacá Rosset, que havia sido seu aluno, e os dois simulavam sexo anal enquanto gritavam "tudo pelo teatro brasileiro".

Vergueiro chegou a ser afastada da instituição de ensino na ocasião. Mas, como conta no livro "Teatro do Ornitorrinco", acabou sendo poupada da expulsão com ajuda de alunos da universidade.

Ela fundou o Teatro do Ornitorrinco ao lado de Rosset e Luiz Galizia em 1977. Em 1985, o grupo criou um de seus espetáculos mais populares, "Ubu/Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes", trabalho baseado no ciclo Ubu de Alfred Jarry e que reunia circo, dança, teatro e música, com cenário da arquiteta Lina Bo Bardi. A peça ficou 27 meses em cartaz e foi vista por mais de 350 mil pessoas.

Amigos próximos de Maria Alice Vergueiro já disseram que seu afastamento da pedagogia, ainda em 1974, fez com que ela passasse a se dedicar mais à vida de artista. No ano seguinte, a atriz integrou o elenco de "Galileu Galilei", peça de Bertolt Brecht montada pelo diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa.

Naquela mesma década de 1970, contava a atriz em entrevistas e rodas de amigos, traficou 4.000 ácidos da Califórnia, e vendeu todo o lote para pagar aluguéis do Teatro Oficina. Ela associava o uso do LSD e de outras drogas à expansão de percepções, algo defendido também por outros artistas que viveram a cultura hippie dos anos 1970 e que se abasteciam de teorias ligadas à neurologia e à ciência e aos enigmas do tarô e das experiências místicas.

Vergueiro pertencia a um grupo em que a noção de loucura deixava de ser tratada só como uma questão médica, como disse em entrevista a este repórter.

A atriz voltou a ficar conhecidíssima entre jovens quando atuou no vídeo cômico "Tapa na Pantera", há 14 anos, falando sobre o consumo da maconha e também sobre problemas de memória.

Uma das montagens mais importantes na carreira dela foi para o texto "Mãe Coragem e Seus Filhos", também de Brecht, com direção de Sergio Ferrara, em 2002.

A partir dali começou a fazer de seu trabalho um longo depoimento sobre a própria velhice. Veio, por exemplo, "As Três Velhas", que teve seu processo de criação registrado no documentário "Górgona", de Fábio Furtado e Pedro Jezler. Ali é possível ver também a proximidade da atriz com artistas de verve semelhante, entre eles os atores Luciano Chirolli e Pascoal da Conceição.

"A força que ela sempre teve para investigar o teatro, ela usou também parra investigar a própria vida", diz Chirolli, que morou com a atriz nos últimos anos. "Maria Alice deixa um legado para o teatro que não tem explicação."

A atriz deixa duas filhas, quatro netos e dois bisnetos. Segundo Chirolli, seu velório acontecerá na tarde desta quinta (4), num local afastado da capital paulista, ainda a ser anunciado.

terça-feira, 2 de junho de 2020

A realidade é construída; basta passar à ação, FSP

O que existe lá fora no mundo em que vivemos? O que é real nesses tempos loucos? Perguntas como essas mantêm filósofos ocupados aposto que antes mesmo da palavra "filosofia" existir. O cérebro pode se preocupar com isso —ou não.

O Real, assim mesmo, com letra maiúscula, é por definição impérvio à nossa filosofia (por isso vã). Vejamos:

O estado de saúde ou doença dos outros não depende do seu conhecimento. Se os eventos do governo são regidos, planejados, calculados ou desastrados, não é porque você os considera assim.

A insegurança, a incerteza e a instabilidade alheias não se materializam apenas quando você olha.

Se tanta irrelevância humana frente ao Real já é problemática em tempos comuns, então em tempos de encapsulamento, quando se espera de cada um de nós justamente não sentir na pele o que os outros sofrem, em nome do bem comum, ela é especialmente perigosa.

Porque assim fica especialmente fácil vivermos cada um em sua realidade construída, placidamente ignorantes do Real. Afinal de contas, é isso que o cérebro faz melhor: montar a cada momento uma hipótese de trabalho interna sobre o que acontece lá fora, conforme as respostas às nossas ações.

Se nós não olhamos, não vemos nada. Se não agimos, não há resposta. Se não nos importamos, não há com o que se importar.

Quantos humanos nos últimos dois meses você, leitor, já viu arfar, de lábios arroxeados, lutando em angústia a cada inspiração contra o afogamento iminente em terra firme? Provavelmente, nem um só. O vírus é invisível; a doença é etérea, um medo no ar. Para a maioria de nós, os casos ainda só chegam aos sentidos como estatísticas nos jornais.

Da abstração do governo, então, nem se fala. O governo, ou falta dele, não se vê. Há atores nos jornais, decerto, enchendo páginas de fotos, vídeos e relatos —não importa se você se sinta vingado e vitorioso, arrependido, frustrado, impotente ou raivoso.

Mas "governo" é uma ideia na cabeça de cada um. E como cada um pensa o que quer, ninguém se entende.

Esta é a diferença entre ilusão e percepção. A ilusão é o que a gente quiser. Ou pior: é a realidade que o cérebro conjura de olhos fechados, sem ter trabalho de pensar, problemática porque é um guia tão útil quanto cego em tiroteio, completamente alheio ao Real.

A percepção é uma versão do Real razoavelmente útil, porque razoavelmente fiel.

Como transformar ilusão em percepção?

Basta agir.

Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).