O circo erguido na eleição para o comando do Senado prova que a briga pelo poder é sempre feia, mesmo que se tente disfarçá-la com ares moralizadores. A disputa que durou mais de 24 horas começou com uma trapaça, passou por uma suspeita de fraude e terminou com um cacique abatido.
Com o patrocínio do governo, Davi Alcolumbre (DEM) armou uma tramoia para capturar a presidência da Casa e entregá-la aos pés do Palácio do Planalto. Amarrou-se à cadeira e, para tentar derrotar Renan Calheiros (MDB), resolveu mudar as regras do jogo com a bola rolando.
O código do Senado diz expressamente que a eleição deve ser secreta, mas Alcolumbre decidiu que isso não importava e tentou fazer o voto aberto. O grupo do MDB bateu no Supremo Tribunal Federal de madrugada para manter o sigilo.
Renan quase foi vítima de uma arte que domina: a manipulação para preservar o poder. O desenrolar da história mostra que seu tempo passou.
A disputa chegou ao ponto do vexame com a cena infantil em que Kátia Abreu (PDT) roubou a pastinha do presidente da sessão. No dia seguinte, uma excelência tentou fraudar a eleição ao depositar dois votos na urna. Para o deboche ficar completo, o senador escalado para triturar as cédulas foi Acir Gurgacz (PDT) —que cumpre pena de prisão, mas dá expediente no Congresso.
O senador Renan Calheiros (MDB-AL) durante reunião preparatória para escolha do presidente do senado e da nova mesa diretora. Sessão foi marcada por impasse e bate-boca entre os parlamentaresWalterson Rosa - 1º.fev.2019/Folhapress
Ao fim da tragicomédia, Davi venceu com o impulso dos calouros do Senado, que queriam destronar Renan. Os novos tempos da política, porém, caem podres quando abraçam o discurso demagógico rasteiro.
Lasier Martins (PSD), por exemplo, defendeu atropelar as regras do jogo porque as vozes nas redes sociais eram “a-vas-sa-la-do-ras”. Jorge Kajuru (PSB) disse que tudo se justificava porque não queria ser vaiado ao embarcar num avião.
As autoridades deveriam levar a sério o papel que desempenham no plenário. A responsabilidade é maior do que as curtidas nas redes sociais ou a tentativa desesperada de manter o poder a qualquer custo.
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).
om o passar do tempo, Dalida arrisca-se a ser apenas a voz que, num francês muito próprio, vai dando troco a Alain Delon numa cantiga - em que ele fala e ela canta - chamada Paroles... Paroles..., gravada originalmente pela dupla italiana Mina e Alberto Luppo e passado ao francês um ano mais tarde.
A sua morte (a 3 de maio de 1987) interrompeu uma carreira que, feitas as contas pelos diversos editores que a representaram, correspondeu a 120 milhões de discos vendidos em vida e mais de 20 milhões a título póstumo. Os franceses, que adotaram apaixonadamente esta egípcia de ascendência italiana, nascida nos arredores do Cairo (17 de janeiro de 1933), ainda lhe prestaram a devida homenagem quando, em resposta a um inquérito nacional, em 2001, a votaram como a segunda cantora mais importante do país durante o século XX, logo a seguir à inevitável Edith Piaf.
Mas, em boa verdade, é o filme de Lisa Azuelos que vem resgatar Dalida à poeira do esquecimento, ato que se tornará mais útil se voltar a ser ouvida como merece, num percurso que acumulou boas marcas ao longo de mais de 30 anos.
Essa reaproximação aos feitos musicais faz mais sentido se recordarmos uma menina, de saúde frágil, que acompanhava o pai, violinista na Ópera do Cairo, aos ensaios. Iolanda Cristina Gigliotti conheceu cedo as adversidades: um problema sério nos olhos (nunca conseguiu curar completamente o estrabismo, apesar de várias operações) obrigou-a a passar 40 dias no escuro, vendada, para evitar a luz.
Muito pior do que isso, perdeu o pai logo em 1945, na sequência dos distúrbios nervosos que este sofreu, depois de passar muito tempo no campo de concentração de Fayed, perto do Cairo, durante a II Guerra Mundial. Voltamos a encontrá-la cinco anos depois de ter recusado continuar a usar óculos, num momento que parece dar-lhe razão: em 1954, conquista o título de Miss Egito. Na sequência do troféu de beleza, começa a ser chamada para participar em filmes rodados na capital - num dos primeiros, em que não aparece creditada, conhece Omar Shariff, seu compatriota; noutro, serve de dupla a Joan Collins; naqueles em que tem direito a presença na ficha artística, surge como Dalila e Yolanda, ainda antes de se "transformar" em Dalida.
Amália como "madrinha"
Decide tentar a sua sorte na Europa, em Paris. Aí, rapidamente se apercebe de que os ventos não sopram de feição a mulheres do seu tipo físico, ela que é esguia, com uma cara exótica e, assim, fica distante dos géneros então dominantes (os de Simone Signoret, Brigitte Bardot, Michèle Morgan ou Danielle Darrieux). Vira-se para as cantigas e assenta praça nos restaurantes-cabarés parisienses Villa d"Este e Drap d"Or.
É ouvida acidentalmente por Bruno Coquatrix, empresário e dono do Olympia, que a aconselha a participar num concurso de amadores que vai organizar na sua mítica sala. A 9 de abril de 1956, a prestação de Dalida é assinalada por dois homens: Eddie Barclay, editor discográfico que a contrata na hora, e Lucien Morrisse, diretor artístico de rádio e televisão, que virá a ser o único marido da cantora. A 26 de agosto de 1956, é editado o primeiro disco da cantora, com uma canção chamada Madona, que mais não é que uma adaptação do êxito Barco Negro, gravado e popularizado por Amália Rodrigues (que, por sua vez, aproveitava a música mas não a letra da brasileira Mãe Preta).
O resto é lenda, numa história em que o êxito profissional andou sempre paredes-meias com a tragédia pessoal. Há 50 anos, o cantor italiano Luigi Tenco, então com 28 anos e namorado de Dalida, suicidou-se depois de a sua canção Ciao Amore Ciao ter sido chumbada pelo júri do Festival de San Remo. Dalida tentou seguir-lhe os passos e esteve cinco dias em coma.
Em 1970, foi o seu ex-marido, Lucien Morisse, a pôr fim à vida. Em 1975, o cantor Mike Brant, um dos grandes amigos da cantora, teve destino semelhante. Richard Chanfray, com quem Dalida viveu durante dez anos, também se suicidou, dois anos depois da separação. A esta lista negra, soma-se mais um enorme revés: na sequência de uma gravidez indesejada e de um aborto clandestino, Dalida deixou de poder ter filhos, o que foi contribuindo para uma depressão que conheceu o apogeu em 1987: depois de deixar um pedido de desculpas ao público, confessando que a vida se lhe tornou insuportável, recorreu aos barbitúricos para pôr fim ao sofrimento. E, com tudo isto, ficam para a memória o seu sorriso aberto e a sua voz vibrante. Agora, outra vez.
O “Deus acima de todos” que integrou o lema da campanha de JairBolsonaro e ainda o acompanha em muitas de suas declarações deveria provocar calafrios em todas as pessoas historicamente alfabetizadas, sejam elas religiosas ou não. Como a maioria dos brasileiros votou em Jair Bolsonaro conhecendo seu lema, parece lícito concluir que ou a maioria das pessoas é masoquista ou não é historicamente alfabetizada.
Nesta última hipótese, nossos professores de história, todos eles esquerdistas, fracassaram miseravelmente em mostrar para seus alunos os crimes cometidos em nome de Deus. Um bom jeito de sanar essa falha é a leitura de “The Darkening Age” (a idade das trevas), de Catherine Nixey (há uma edição lusitana).
A tese central do livro é simples. O cristianismo triunfou na Europa e cercanias destruindo o mundo clássico que o precedeu. O “destruir” deve ser interpretado literalmente, para incluir a pilhagem de templos, vandalização de estátuas, queima de livros e, é claro, tortura e assassinato de adversários. Nixey conta os detalhes dessa história.
Para dar uma ideia da escala da destruição, estima-se que apenas 10% da literatura clássica tenha sobrevivido até a Idade Moderna. Se considerarmos só os latinos, o quadro é ainda pior. Só 1% do que foi escrito por romanos não cristãos foi preservado. Santos das Igrejas Católica e Ortodoxa, como João Crisóstomo, gabavam-se de ter feito desaparecer toda uma cultura.
O que mais perturba na leitura de “The Darkening Age” é a total semelhança entre o que fizeram os cristãos dos anos 300, 400 e 500 o que fazem hoje membros do Taleban e do Estado Islâmico. A intolerância que militantes religiosos radicais mostram para com outros credos, os assassinatos praticados com requintes de crueldade e a insana “certeza” de estar obedecendo a comandos de um ente supremo infalível revelam quão perigoso é pôr Deus acima de tudo.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".