Foi golpe ou não foi golpe?
O teatro da política entre o nome e a coisa
Foi golpe ou não foi golpe? Esta é a questão que mais se debate em relação ao processo de impeachment da presidenta Dilma, admitido pela votação da Câmara dos Deputados, em 17 de abril. A resposta, seja entre analistas políticos profissionais e cidadãos leigos, tem dependido do posicionamento ideológico em relação à saída da presidenta. Mas como estamos no calor da batalha, muitos argumentos mais sólidos e definitivos ainda serão mobilizados para nomear o que está acontecendo neste País.
Reconheço que há algo de bizantino neste debate, mas ao mesmo tempo, não se pode fugir dessa pergunta. Pessoalmente, deixo claro, acho que houve um golpe de Estado, mas para dar nome às coisas que acontecem ao longo da História e para que este nome se cole na memória coletiva, é preciso muito mais do que opinião de um punhado de pessoas. A resposta que ficará na memória dominante na sociedade brasileira será tributária do que acontecer daqui em diante, ao mesmo tempo que revela caminhos e descaminhos da nossa cultura política.
Para os que defendem o afastamento de Dilma Roussef, o processo de impeachment de Fernando Collor, em 1992, aliás, apoiado ativamente pelo PT, é a prova lógica de que impeachment não é golpe de Estado. Afinal, está previsto na Constituição, segue um rito jurídico-político e não significa quebra do regime democrático, nem das eleições. Os críticos do processo atual de impeachment respondem que, ao contrário do caso Collor, não está comprovada nenhuma irregularidade no exercício do mandado presidencial, nem qualquer “crime de responsabilidade” da presidente que justifique seu impedimento. As “pedaladas fiscais” que lastreiam o processo formal de afastamento de Dilma, recurso contábil utilizado por vários presidentes antes da mandatária atual, não seria um motivo forte o suficiente para o impeachment.
Lembremos que no caso do afastamento de Collor, tudo começou com uma entrevista do seu irmão, Pedro, na revista Veja publicada em maio de 1992. Na entrevista, acusava-se o tesoureiro da campanha eleitoral do “Caçador de Marajás” de Alagoas, Paulo César Farias, o “PC Farias”, de articular um esquema de corrupção e tráfico de influência dentro do primeiro governo eleito pelo voto popular em quase 30 anos. Instado pela entrevista do insuspeito irmão, em junho o Congresso Nacional organizou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que concluiu seus trabalhos no final de agosto, aprovando um relatório que afirmava ser o “esquema PC” o responsável pelo pagamento das contas pessoais da residência do presidente Collor, a Casa da Dinda. Além disso, descobriu-se que as contas bancárias de Collor e PC Farias não tinham sido alvo do bloqueio por ocasião do lançamento do Plano Collor, no começo de 1990, quando bilhões de cruzados novos foram confiscados como forma de retirar dinheiro do mercado e controlar a hiperinflação, que ultrapassava os 1.000 % ao ano. Também em agosto, começaram os protestos de rua que exigiam a renúncia do presidente. No mês seguinte, os presidentes da Associação Brasileira de Imprensa e da Ordem dos Advogados do Brasil apresentaram um pedido de abertura de processo de impeachment, aceito pela Câmara por 441 votos contra 33. Em novembro, com Collor já afastado, aguardando seu julgamento no Senado, a PGR o denunciou no STF, por corrupção passiva. Finalmente, em 30 de dezembro de 1992, a novela se encerrou: mesmo com o presidente renunciando dois dias antes, o Senado concluiu o processo, aprovando o impeachment por 76 votos contra 3.
O que esta pequena rememoração dos fatos de 1992 pode nos ajudar na comparação com o processo atual, na tentativa de responder à pergunta que não quer calar – é golpe ou não é golpe?
Tudo e nada, ao mesmo tempo.
Tudo, pois indica diferenças muito grandes entre os dois processos jurídicos e políticos.
Nada, pois a resposta a esta pergunta dentro de um debate público mais amplo (e não como mera convicção pessoal deste e de outros analistas que escrevem sobre o tema) irá depender de como a sociedade assimilará este processo político, constituindo uma memória em torno dele.
Nada, pois a resposta a esta pergunta dentro de um debate público mais amplo (e não como mera convicção pessoal deste e de outros analistas que escrevem sobre o tema) irá depender de como a sociedade assimilará este processo político, constituindo uma memória em torno dele.
Expliquemos melhor.
Em primeiro lugar, o processo político que levou ao impeachment de Collor tem uma diferença fundamental em relação ao processo atual. Nele, havia uma valorização social da política como atividade ligada ao bem comum e à promoção social. Exemplo maior: O Movimento pela Ética na Política, nascido na sociedade civil da época, era efetivamente suprapartidário, ia da direita à esquerda, e não se constituiu para destruir um partido em particular ou combater a “esquerda” em geral, como parecem ser os movimentos que se organizaram para protestar contra o governo Dilma Rousseff. O Congresso em 1992 teve um protagonismo importante com a atuação da CPI e com os debates e votações em plenário, com uso de mais argumentos e menos beijinhos para a família, que, obviamente, também não faltaram à época. E vale lembrar que, nas passeatas de protesto contra Collor não se viam cartazes pedindo “intervenção militar”, “diga não à doutrina marxista nas escolas”, “luto pelo fim da democracia” ou (o mais delirante de todos), “Feminicídio sim! Fomenicídio não! Fora PT”, seja lá o que isso signifique. Mesmo sendo otimista e acreditando que estes dizeres representam uma minoria ensandecida, o fato deles serem frequentes e se abrigarem nas multidões com a maior desfaçatez não é bom sinal para a democracia e para a melhoria da qualidade da política e dos políticos.
No campo propriamente jurídico, arrisco dizer que há outra diferença fundamental. Em 1992, primeiro surgiram as evidências de envolvimento pessoal do presidente com o “esquema PC”, como seu beneficiário direto, investigadas e sancionadas pela CPI e pela Procuradoria-Geral da República. Depois é que o processo propriamente formal de impeachment foi aceito e instalado. No caso de Dilma, a tese do afastamento via impeachment surgiu logo após a posse do seu segundo mandato, nas redes sociais, e entre algumas lideranças políticas e sociais. Portanto, a tese da punição e do afastamento da presidenta veio antes de qualquer investigação ou comprovação objetiva de crimes a envolvendo pessoalmente.
Naquela ocasião, o argumento central para os defensores do impeachment de Dilma era sua responsabilidade no caso de desvio do dinheiro e má-gestão na Petrobrás, posto que Dilma foi ministra da Casa Civil durante o governo Lula e, portanto, presidente do Conselho de Administração da estatal. Mas como se tratava de uma argumentação frágil do ponto de vista jurídico, foi preciso encontrar outro tipo de “crime” para justificar a saída forçada de Dilma. Neste ponto da trama surgiram dois caminhos possíveis: a impugnação da chapa Dilma-Temer, que teria sido financiada com desvio de dinheiro público ou o impedimento apenas da presidenta pelo crime de responsabilidade envolvendo as chamadas “pedaladas fiscais”. Não entrarei em detalhes sobre estas teses e suas contradições, já amplamente analisadas na imprensa. O fato que quero destacar é que, ao contrário de 1992, o movimento pelo impeachment surgiu antes de qualquer indiciamento ou investigação formal da acusada, pelo Congresso ou pela justiça. Touché!
Continuo achando que, inicialmente, a tese do impeachment era mais uma bravata da oposição partidária para fazer o governo paralisar e “sangrar” até as eleições de 2018. A partir do acirramento da crise política e das delações feitas na Operação Lava Jato, a dinâmica jurídica e política tornaram o processo de impeachment uma possibilidade política real e efetiva, entrando efetivamente na pauta política do Parlamento desde o final de 2015. Logo desencadeou-se um conjunto de articulações e negociatas no seio do governo e da oposição que minaram ainda mais a já frágil governabilidade e a própria institucionalidade do jogo democrático. Quando a sociedade civil parecia completamente rendida à tese do afastamento a qualquer preço de Dilma, eis que ressurgiram as multidões em defesa da democracia e do mandato presidencial, independente de concordarem ou não com o governo. Não devemos subestimar os efeitos desta divisão social para a memorização futura desta crise política. A própria imprensa, majoritariamente antipetista e antigovernista, dividiu-se, dando espaço para debates e análises mais complexas do processo político em curso. Neste momento, o debate “golpe X não-golpe” esquentou, com argumentos contundentes dos dois lados.
Reconheço que toda esta argumentação não responde à pergunta inicial: O processo atual de impeachment é ou não é golpe de Estado? Pessoalmente, repito, não tenho dúvidas, o que vimos no dia 17 de abril foi um golpe parlamentar urdido por vários grupos econômicos e sociais que, no limite, pode ter significado o fim da VI República brasileira. Ainda não sabemos se isto ocorrerá efetivamente ou não, mas não devemos descartar a possibilidade de uma crise terminal do regime político iniciado em 1985 e confirmado na Constituição de 1988. Para exemplificar como uma crise de governo se torna uma crise do regime, recorro a outra data histórica: 1964.
Em 1964, o desfecho da crise política parecia se encaminhar para uma solução clássica da IV República brasileira (aquela que começou em 1946, após o fim do Estado Novo): uma intervenção militar cirúrgica, apoiada pela direita civil, em nome da “moralidade pública”, da “ordem social ameaçada” e contra a “subversão comunista” instalada no governo João Goulart (qualquer semelhança com palavras de ordem atuais, não é mera coincidência, é tradição conservadora mesmo…). Os vitoriosos de 1964, quiseram convencer o país de que estavam salvando a Constituição (de 1946), a democracia. Ao mesmo tempo, propunham um movimento renovador na política, afastando o “populismo” e o “comunismo”, para logo chamar novas eleições sem a presença incômoda da esquerda reformista. Chamaram tudo aquilo de “Revolução”. Acho que muitos até acreditavam neste nome, outros tantos perceberam que aquele movimento era mais profundo do que uma mera “intervenção militar cirúrgica”. Os fatos posteriores desmentiram o nome e a coisa. Com o tempo, até os que saíram às ruas contra o governo Jango, reconheceram que houve, efetivamente, um golpe de Estado, e, na sequência, uma ditadura militar autoritária.
Obviamente, o contexto atual é diferente, e as forças em disputa se utilizam de outros recursos políticos e artifícios legais, em grande parte porque ficaram escaldadas pelos traumas de 1964. Mas o exemplo serve para pensarmos que na História e na memória não há tecnicalidades ou acórdãos jurídicos definitivos para nomearmos processos e eventos. O que conta são os debates políticos e intelectuais, formando opiniões públicas que vão se disseminando na imprensa, nas escolas, nas próprias instituições políticas. Na conjuntura atual, o nome e a coisa ainda estão relativamente indefinidos, ao menos do ponto de vista do debate público mais amplo.
O importante é avaliarmos como a democracia sairá deste processo. Compartilho a ideia de que a democracia é um jogo sempre tenso entre uma dinâmica social que luta por mais direitos e a capacidade das instituições em assimilá-los. A liga entre estes dois polos é a cultura política disseminada entre grupos sociais e atores políticos. Pessoalmente, acho que esta liga tem se mostrado frágil na conjuntura brasileira atual, a começar pela incapacidade histórica na política brasileira em se respeitar o que é básico nas democracias liberais mais moderadas e conservadoras: o respeito às urnas e a vontade dos eleitores. Só crimes comprovados e falta de decoro podem fazer com que os políticos eleitos percam seus cargos.
Foi golpe ou não foi golpe? Da minha parte, não tenho dúvidas de que se tratou de um “golpe parlamentar”, com data marcada e televisionado ao vivo. Mas a colagem do nome (“golpe”) à coisa (“impeachent” de Dilma) dependerá, fundamentalmente, dos acontecimentos que se desenrolarão nos próximos dois anos, e da maneira como a sociedade civil assimilar a crise política atual e protagonizar seu desfecho, cujo enredo ainda está aberto.
É bom reiterar que não haveria risco para a democracia se as multidões simplesmente pedissem a renúncia de Dilma ou se manifestassem contra o PT. O risco para a democracia é quando atores institucionais do sistema político se utilizam de um mecanismo jurídico extremo, como o impeachment, para encobrir uma tomada de poder. Sem falar na ameaça maior da atual conjuntura para os valores democráticos, quando a intolerância e o elitismo social pegam carona nas belas palavras de ordem contra a corrupção. Para substituir governos impopulares, existem as eleições regulares. “Ah! O País não aguenta até 2018!”, argumentam os favoráveis ao “impeachment já”. Novamente, surge o exemplo do processo contra Collor. Em 1992, a crise econômica era muito mais séria, com uma inflação anual chegando a 1158%, e o impeachment efetivamente ajudou o Brasil a recompor a economia e a repactuar a vida política nacional. Hoje em dia, ainda que eu me rendesse aos argumentos pragmáticos dos que defendem o impeachment por razões econômicas, o que não é o caso, tenho cá minhas dúvidas se esta repactuação seria possível. Acho que a raiz da crise é mais estrutural, a sociedade está ideologicamente e politicamente dividida e os valores democráticos abalados, com ou sem impeachment da presidenta. Além disso, este argumento – “a economia do país não aguenta até 2018” – é frágil e contraditório posto que as mesmas vozes que o bradam, defendem a investigação e punição exemplar às empresas públicas e privadas que irrigaram os políticos com dinheiro sujo. Ao paralisar os grandes negócios estatais no Brasil, estas investigações, a começar pela famosa Operação Lava-Jato, também tem prejudicado a economia, como muitos especialistas já apontaram. Alguém de bom senso, por acaso, defenderia o fim da Operação Lava-Jato “porque a economia do país não aguenta”?
Em resumo, caros leitores, repito aqui a sentença que li nas redes sociais por estes dias: é o tribunal da História e não o STF que dará o nome mais definitivo para a coisa que está em processo.
*Historiador, pesquisador do CNPq e professor do Departamento de História da USP