Necrofilia é a atração sexual por cadáveres. A necrofilia ideológica é o amor cego por ideias mortas. O fato é que esta patologia é mais comum na sua vertente política do que sexual. Ligue sua TV à noite e aposto que verá algum político apaixonado por ideias que foram experimentadas e fracassaram. Ou defendendo crenças cuja falsidade foi comprovada com evidências irrefutáveis.
Como todas, esta patologia tem casos mais sutis e até cômicos, outros mais graves e perigosos. Tomemos como exemplo os seguidores de Mao. “O comunismo é o sistema mais completo, progressista, revolucionário e racional na história da humanidade. Somente o comunismo é pleno de juventude e vitalidade”, escreveu Mao Tsé-tung em seu Livro Vermelho. Durante mais de meio século, a Revolução Cultural entusiasmou milhões de seguidores em todo o mundo.
Já conhecemos os resultados. O Partido Comunista da China emitiu, em 1981, seu diagnóstico sobre a gestão de Mao: “Cometeu erros enormes e de longa duração. Longe de fazer uma análise certa de muitos problemas, confundiu o certo com o errado e o povo com o inimigo. É nisso que se centraliza a sua tragédia.” Cerca de 55 milhões de chineses pagarão com a vida pelos erros de Mao. Diante de tudo isto, poderíamos supor que o maoismo é uma ideologia morta. Mas não é.
Ao mesmo tempo em que a China repudia Mao e registra sucessos jamais imaginados por ele, em outros países continuam surgindo políticos com o fervor suicida do maoismo. No Nepal, o Partido Maoista ainda tem seguidores e influência política. Na Índia, Colômbia, Itália e Peru, entre outros, ainda existem grupos políticos que não ocultam suas simpatias maoistas.
A questão não se esgota aí. Há líderes que veneram ideias econômicas que já foram experimentadas em seus próprios países e deixaram trágicas sequelas de atraso, miséria e corrupção. Na Bolívia, Equador, Nicarágua e Venezuela sabe-se que funcionários com boa formação e capazes de realizar seu trabalho com eficácia e honestidade são raros. Contudo, os presidentes desses países estão fixados em um modelo que supõe a existência de uma superabundância de funcionários públicos honestos e competentes. Cada vez que nacionalizam empresas, eles as colocam nas mãos de burocratas que não têm a mais remota ideia de como administrá-las e acabam por fazê-las naufragar, alimentando o círculo de destruição de riqueza e pobreza crônica. Seu amor por ideias mortas é mais forte que as provas que surgem diariamente de como este amor está prejudicando seu país.
A necrofilia ideológica não afeta apenas as esquerdas. Também é fácil encontrá-la entre os fundamentalistas do livre mercado. Nem mesmo o cataclismo econômico que o mundo viveu com a crise de 2008 os fez colocar em dúvida a convicção de que os mercados são eficientes, tendem ao equilíbrio e, por isto, a intervenção dos governos é desnecessária. Ou que os bancos conseguem se regular sozinhos e não exigem um maior controle estatal, ou que o mercado por si só cria os incentivos para proteger o meio ambiente.
A economia não é o único terreno fértil para a necrofilia ideológica. Basta lembrar aos políticos que nos EUA ainda se nega a teoria da evolução e há uma luta para limitar os ensinamentos do darwinismo nas escolas. Também há quem defenda a mutilação genital feminina ou o uso da burca, para avaliar o quão difusa e intensa é a paixão por determinadas más ideias.
Basta ouvir Donald Trump. Extraditar 11 milhões de latinos, construir um muro com o México (pago pelos mexicanos) ou proibir a imigração de muçulmanos são algumas de suas ideias. Não soam tenebrosamente conhecidas? Ted Cruz, vencedor das prévias de Iowa, também sofre de necrofilia ideológica. Segundo ele, a maneira de acabar com o Estado Islâmico é um bombardeio em massa da vasta zona do Oriente Médio onde o EI opera – ignorando o pequeno detalhe de que as ideias do EI vêm prosperando na Europa, EUA e Ásia. Ou que as “soluções” militares americanas funcionaram muito bem, como no Vietnã, Afeganistão, Iraque e Líbia.
O amor é cego, mas o amor por ideologias que colaboram para os indivíduos se manterem no poder não é apenas cego, mas muito conveniente. No fundo, os necrófilos políticos amam mais o poder do que as más ideias com as quais manipulam seus ingênuos seguidores. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
MOISÉS NAÍM É ESCRITOR VENEZUELANO E MEMBRO DO CARNEGIE ENDOWMENT EM WASHINGTON
10 Fevereiro 2016 | 08h 05 - Atualizado: 10 Fevereiro 2016 | 08h 05
Em meio à redução do preço do petróleo, as nações produtoras precisam desesperadamente investir em outros setores
Uma das frases mais repisadas da campanha de Donald Trump diz que o acordo nuclear com o Irã foi “terrível”. Começo a me perguntar se será verdade, mas no sentido oposto ao que ele entende. O Irã acabou com um acordo muito pior do que esperava. De fato, Teerã entrou nas negociações na época vertiginosa dos altos preços do petróleo. Como os iranianos estão descobrindo, aqui fora o mundo é bem diferente.
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Tentemos nos colocar no lugar do Irã. A República Islâmica negociou com toda seriedade e acabou assinando um acordo provisório em 2013. Naquele ano, o petróleo estava em torno de US$ 100 o barril. A grande concorrente do Irã, a Arábia Saudita, prosperava, com uma economia que crescera cerca de 6% em 2012. Gastando generosamente interna e externamente, em 2013 seu orçamento cresceu 19%.
Ao mesmo tempo, o Irã estava isolado, com uma economia em declínio. Para Teerã, o prêmio não era o regresso dos seus fundos congelados em bancos na Ásia e na Europa em razão das sanções internacionais (totalizando cerca de US$ 100 bilhões). Era a possibilidade de voltar finalmente aos mercados como o segundo maior produtor de petróleo do Oriente Médio, e de colher os enormes frutos do boom. Em 2010, as autoridades iranianas previam que, até 2015, as receitas do petróleo e do gás do país poderiam chegar a US$ 250 bilhões ao ano. Foi com isso que contaram ao fazer suas concessões.
No mês passado, o petróleo do Irã começou a chegar aos mercados, com preços abaixo de US$ 30 o barril. A Bloomberg News calcula que o país ganha US$ 2,35 bilhões por mês com suas vendas de petróleo. Não é este o prêmio que a República Islâmica esperava por desistir do seu programa nuclear.
Mas provavelmente poderá lidar com a crise do petróleo melhor do que outros países produtores. A economia iraniana diversificou-se até certo ponto, e, graças às sanções, há uma maior flexibilidade tanto na economia quanto na sociedade, como destaca a Moody’s. Não é o que ocorre em muitos outros grandes países que sofrem com a queda dos preços do produto.
Basta ver o vizinho Iraque. Tim Arango, do New York Times, pinta o retrato de um país “envolvido numa guerra dispendiosa contra o Estado Islâmico que atualmente enfrenta a calamidade econômica provocada pelo colapso dos preços, em que desapareceu mais de 90% das receitas do governo iraquiano”. Ele observa que cerca de 8 milhões de iraquianos dependem dos salários do governo, o que representa por volta de US$ 4 bilhões por mês. O total das receitas petrolíferas hoje é inferior a US$ 3 bilhões mensais. Um político de alto escalão do Iraque disse que o país não sobreviverá como nação se os preços do petróleo permanecerem baixos por muito tempo.
Do outro lado do mundo, a Venezuela, por muitos anos mal administrada por Hugo Chávez e seu sucessor, está à beira da insolvência e até pior. A economia encolheu 10% no ano passado. E acredita-se que encolherá mais 8% este ano, enquanto a inflação chega a 720%, digna da República de Weimar, segundo o Fundo Monetário Internacional. Como afirma Matt O’Brien do Washington Post: “A única questão agora é saber quem entrará em colapso antes, o governo da Venezuela ou sua economia”.
Quando perguntaram recentemente o que a mantém acordada à noite, a presidente do FMI, Christine Lagarde, falou dos países produtores de petróleo, como a Nigéria, onde 90% das exportações e 60% da receita do governo provêm das vendas de petróleo. Crescendo na esteira da crise, o Boko Haram, que desbancou o Estado Islâmico como organização terrorista mais sanguinária do mundo, matou 6.644 pessoas em 2014.
Enquanto o governo da Nigéria combate o Boko Haram no norte, enfrenta também a possibilidade de nova violência no sul, no Delta do Níger, onde se encontra grande parte do petróleo do país. No auge da violência, os insurgentes do sul fecharam a metade da produção do petróleo. Os rebeldes acabaram com uma frágil paz e anistia para os insurgentes em 2009. Mas o governo não dispõe dos recursos para cumprir muitas de suas promessas. Agora, talvez acabe lutando contra dois movimentos brutais com a perspectiva de uma divisão do país.
Há outros países produtores, não tão atolados em dificuldades quanto estes, mas a maior parte deles tem problemas. A solução, segundo os economistas, é adotar reformas estruturais, fazer com que a economia não dependa essencialmente dos recursos nacionais, e investir em outros setores e em capital humano. Isso é difícil em qualquer época, mas particularmente quando um país está em queda livre.
De qualquer modo, as nações produtoras de petróleo em todas as partes do mundo têm governos que precisam desesperadamente de dinheiro, quando mais não seja para pagar os salários e atender a obrigações básicas. Isso significa que eles bombearão o máximo de petróleo que puderem, influindo ainda mais na queda da oferta e dos preços. Bem-vindos ao novo mundo do petróleo barato e das políticas precárias. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
07 Fevereiro 2016 | 06h 00 - Atualizado: 07 Fevereiro 2016 | 06h 00
Nesse tempo em que até as estrelas parecem domesticadas, o clima é um dos últimos animais selvagens em liberdade. Tentamos domá-lo com a técnica. Mas, com a natureza encurralada, o que será da felicidade?
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No início, o aquecimento climático era tímido. Avanços furtivos. Não sabia como se impor. Suas maneiras eram serenas, inefáveis e mais felizes. Colocava claridade nas noites de outono e a neve resplandecia sob o sol. Nas praias, os seios das mulheres brilhavam s de bronzeador. No verão, multidões alegres se precipitavam na imensidão das águas do Trocadéro, em Paris.
Ocasionalmente, o clima lançava um alerta. Num determinado outono, decidiu que as andorinhas passariam o inverno na França e não na África. No verão seguinte, um grande pedaço de iceberg deixava a Groenlândia, mas não fizemos disso uma grande história. Apenas um momento a se atravessar. É assim, o clima: num mundo escravizado e cujas estrelas estão cada vez mais domesticadas, ele é um dos últimos animais selvagens ainda em liberdade. Faz o que lhe dá na cabeça. É travesso, ama a exceção e prepara surpresas. Sob o Rei Sol, o Castelo de Versalhes era um castelo de gelo, mas, nos séculos seguintes, o termômetro começou a subir.
Contudo, há uma quinzena de anos o calor ganha partes do mercado. Os objetivos da guerra que trava contra nós mudaram. Ele não se contenta mais em nos impor noites sufocantes, mas revolve o baú dos nossos tesouros.
Elevar o grau de álcool do vinho, organizar ondas de calor são efeitos que não bastam mais para ele. O clima investe contra a geografia e até a geologia, rebaixando as montanhas e provocando o desaparecimento dos lagos. E o mais sacrílego: atemoriza nossos filósofos, modificando os quatro elementos que desde Empédocles e Aristóteles sustentam nossas ciências e metafísicas: o ar, o fogo, a terra e a água.
Amo a neve, que é feita de água, e a neve desaparece. Adeus ao branco das coisas, adeus à virgem e imaculada, o cintilante dos cumes. Fim do gelo nas ruas e das batalhas de neve no pátio da escola, do “odor da maçã e da infância de neve”, do ruído da neve que cai.
Nos Alpes, o que se afirma é que a neve diminuirá cerca de 70% daqui a 2070. É verdade que tais observações são incertas. Convém não confundir o volume de neve com a neve que cai, que parece menos afetada, mas de qualquer maneira está em declínio. No passo de Portes, nos Pirineus, nos anos 60 havia 1,50m de neve. Cinquenta anos depois, não passa dos 90 cm.
É importante adicionar duas informações inquietantes: na Groenlândia, as neves se tornaram negras. E a previsão é do fim das neves eternas nos Alpes. O fim das neves eternas! É como se os deuses abandonassem, na ponta dos pés, suas residências.
O desaparecimento da neve arruinará nossa história. Todo o nosso passado ficará desfigurado. Como retirar da nossa memória o corpo nu de Carlos o Temerário (Carlos I, da Borgonha), cuja metade do corpo foi devorada pelos lobos nas neves sangrentas de Lorraine, em janeiro de 1477? E o que fazer dos soldados sonâmbulos do Grande Exército no caminho do rio Berezina?
“Deixe a neve chegar”, dizia o marechal Kutuzov quando seus generais insistiram para ele atacar os franceses. O marechal era melhor estrategista do que os seus generais. Utilizava, ao lado dos seus velhos canhões, a neve, porque sabia que ela é um dos grandes Manitus da história.
A neve tem outro mérito. Achamos que ela faz desaparecer, ao passo que ela é reveladora. Ela suprime para desvelar. Nas manhãs de neve, abro minha janela e descubro um além-mundo. A cortina silenciosa se abre e percebo um universo mais longínquo que as cataratas do rio Zambeze. Animais desconhecidos, tão serenos quanto os sonhos, deixaram sobre o branco da neve traços de suas asas, suas patas, suas garatujas no quadro branco do nada. Eles me fazem sinal. Jamais os vi. E me dizem que o mundo é mais vasto que o mundo.
Em um livro publicado há alguns anos, propus a criação de um museu da neve. Possuímos museus de todo o tipo, da bicicleta, da faiança, dos escaravelhos, de arte africana Dogon e dos Inuit, mas da neve não temos nada. Como nos consolar com o fato de não podermos jamais admirar uma neve da antiga Babilônia, ou a de David Copperfield, ou mesmo aquela que o profeta Isaías tanto amava?
Um tal museu permitiria colocar à prova o belo livro de Junichiro Tanizaki, Elogio da Sombra, e compreender enfim porque as neves do Japão, menos brancas que as nossas, são mais belas também porque contêm o ouro do céu, as cores da lua, das cerejas e do infinito. No meu museu, poderíamos enfim admirar as famosas neves da era Kyôwa, que afirmam ser atormentadas por uma melancolia azulada.
Imaginava esse museu da neve como uma fantasia. Não fazia ideia que meio século depois a neve seria um objeto em vias de extinção. Ora, soube agora que um museu da neve, ainda modesto, existe. Foi inaugurado em 2014 na exposição O Duro Desejo de Durar, na comuna francesa de Audièrne. Ele encerra neves que caíram em dezembro de 2010. O responsável não foi buscar neves da Renascença e menos ainda neves do Baixo Império Romano, mas o museu está no bom caminho. Seu criador é um artista plástico, Jean-Pierre Lenoir, que vive em Molles, Auvergne.
Mel amargo. As abelhas estão entre os mais antigos companheiros do homem. Estão encarregadas das nossas flores, nossas folhas e nossos galhos. Fecundam os campos e as florestas. Pintam o mundo. Se desaparecessem, o planeta seria cinza, branco e negro, e muito insípido. Além disso, não teríamos mais nada para comer. Albert Einstein afirmava, não sem exagero, que, se as abelhas morressem, os homens não sobreviveriam mais do que quatro anos.
Hoje elas vêm desaparecendo. Já nos viram demais. Não as agradamos, de modo nenhum. E elas morrem. Os Estados Unidos formam exércitos de abelhas supletivas que são alugadas para fecundar os prados ou os campos em perigo. Há vinte anos o desastre aumenta, se aprofunda. Milhares de estudos têm sido realizados. A maioria indica os mesmos responsáveis: inseticidas ou pesticidas que privam as abelhas da sua linguagem.
Recentemente, um outro assassino veio se sentar no banco de acusados: o clima. Os zangões selvagens, outro tipo de abelha, são cada vez mais raros. Razão disso? Eles, que fecundam os jardins e os campos abaixo do paralelo 50º, ou seja, da Bélgica, sofrem com o aquecimento global. Por infelicidade, diferentemente de outras espécies mais sagazes, os zangões selvagens não têm ideia de partir para o Norte e morrem de calor.
No caso das abelhas, acreditamos hoje que uma das causas de sua penúria, além dos inseticidas e pesticidas, também é o calor. O processo da sua morte, porém, não se assemelha à dos zangões selvagens. Com o aquecimento, as primaveras são mais longas e mais quentes. No entanto, essa é a estação do labor para a abelha. A abelha tem 20 a 30 dias de trabalho a mais. Portanto, os caprichos do clima as levam a trabalhar excessivamente, a ponto de se esgotarem.
Graças a Deus ainda restam espécies selvagens que representam 90% do total das abelhas do planeta. Deparei com algumas na Amazônia. As euglossini, especializadas em orquídeas e bromélias, as mamangabas, da tribo Bombini, que preferem as passifloras. Essas abelhas são sedutoras, sem ferrão, costumam ser pequenas, fantasistas, sonhadoras e não muito competentes.
Selvagens, libertárias, anarquistas, rejeitando tanto a ideologia marxista como a do social-liberalismo, desprezando as casernas e os campos de concentração inventados pelas abelhas domésticas, as mamangabas se recusam a compartilhar suas energias. A abelha selvagem é solitária. Ela desdenha o trabalho em grupo. Como estes seres livres podem competir com o imenso exército de abelhas de nossas colmeias comunitárias?
As abelhas selvagens não fabricam toneladas de mel, mas gotas. E depositam estas gotas em potes de cera minúsculos. Esse mel microscópico tem um sabor delicioso e é muito bom no campo da medicina: algumas pessoas se curam num piscar de olhos do abominável Bacillus anthracis, o Anthrax que faz parte do arsenal dos grupos terroristas.
Hoje se afirma que empresários vindos da América do Norte pretendem transformar bilhões de abelhas selvagens em bilhões de abelhas domésticas. Seu intento seria criar escolas de abelhas onde treinadores ou instrutores ensinariam as abelhas solitárias a se reunirem em grupo, como numa “festa de vizinhos”, a sacrificar a liberdade que defendem há 100 milhões de anos e formar colônias, exércitos de operárias dóceis, idiotas e desesperadas, populações escravas, robôs trabalhando na escuridão da colmeia, para o planeta continuar cintilante e fértil.
Salvar o mel, preservar as cores e as mesclas da natureza são, claro, necessidades e dever de nossas gerações. Mas, para organizar a sobrevivência do mel e da polinização, sermos obrigados a tornar esses seres subversivos e intratáveis que são as abelhas selvagens em operárias anônimas condenadas ao inferno do trabalho perpétuo é, na minha opinião, um dos efeitos mais perversos do aquecimento do clima. Para salvar o mel, seria necessário portanto reduzir à escravidão centenas de comunidades de insetos livres e imaculados.
Paradoxos como este são observados não só no campo das abelhas. No tocante à neve, nas estações de esqui, a escassez de neve obriga a bombardear as pistas com neves artificiais. Esta é a detestável bordoada do aquecimento do clima. Ele nos força a substituir as neves de antanho por neves industriais, neves imaginadas pelos homens e que não existem.
Da mesma maneira, a elevação das temperaturas e também a poluição nos obrigam a colocar uma camisa de força nas espécies raras, nas flores raras, nos animais raros, que resistiram à ordenação, à disciplina, à lógica industrial, ao trabalho forçado e à escravidão. Tal é a sombra hedionda do aquecimento climático e da poluição: salvamos florestas, mas vamos discipliná-las. Salvamos os animais, os leões, os antílopes e os golfinhos, mas vamos encarcerá-los em zoológicos ou em “reservas” repletas de proibições e guardas armados. Às vezes, somos obrigados a ensinar de novo os animais selvagens a serem selvagens. Criamos escolas de selvageria, como criamos escolas para domesticar as abelhas selvagens.
Não critico aqui nem as tentativas de salvar a polinização graças às abelhas selvagens, nem a proteção das plantas e dos animais. Para mitigar a morte das abelhas domésticas, é lógico reduzir as abelhas selvagens à escravidão? Constato apenas que para sobreviver num mundo poluído, violado pelos humanos e cada vez mais quente, as plantas e os animais são obrigados a marchar em fila indiana, como os homens.
O mal do GPS. Quanto ao clima, o trabalho de remanejamento está bem avançado. Começou bem antes do aquecimento. E tem prosseguido desde o início das sociedades, da mesma maneira que a geografia tem a tarefa, desde Anaximandro e Ptolomeu, de ordenar o inesperado das formas da terra do mesmo modo que as palavras há muito tempo foram disciplinadas pelas regras da poesia alexandrina, ou ainda como o caos da História foi reorganizado em períodos, sequências e em lógica para o trabalho dos historiadores.
Os meteorologistas já tornaram a previsão do clima uma ciência exata. Em que se transformou o tempo, o belo tempo, em que o clima era selvagem? Há cinquenta anos os meteorologistas da rádio nos anunciavam céus azuis ou escuros, ao acaso. Hoje, quase nunca se enganam. E o que dizer do GPS, esta invenção mirabolante que nos impede de ceder à atividade mais humana, por mais angustiante e perigosa que seja, mas também a mais magnífica: nos perdermos.
Eu me esforço para não ceder ao pessimismo, mas vejo o avanço de um tempo irracional: para garantir a sobrevivência das abelhas, da neve, da água e mesmo dos ventos, os homens serão condenados a completar a natureza por meio da técnica, do artifício, da indústria, da manufatura.
E isso não é uma espécie de “ficção climática”. Nos Estados Unidos o Microbotics Lab, da universidade de Harvard, fabricou um drone liliputiano, o RoboBee, teleguiado. Esta abelha de vidro voa, pousa nas flores, mas depois não sabe mais o que fazer. É incapaz de recolher o pólen. Na Polônia, a faculdade de mecânica, energia e aviação produziu uma abelha minúscula, equipada com pequenas escovas capazes de realizar a coleta do pólen. Infelizmente essa maravilha é muito frágil. A menor corrente de ar bloqueia seus mecanismos. Ninguém duvida no entanto que num futuro próximo abelhas forjadas pelo gênio humano conseguirão polinizar.
E então realizaremos estranhos passeios pelos campos: milhões de robôs liliputianos estarão soltos nos nossos bosques e plantações. A cadeia produtiva do mel será restaurada. Mas a natureza, nesse curioso tabuleiro de xadrez, receberá xeque-mate. E num mundo sem neve nem flores, em que se transformará a felicidade? / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
ESTE TEXTO É O DISCURSO DO AUTOR NO "PARLEMENT SENSIBLE",PAINEL DE DEBATES ACERCA DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS PROMOVIDO PELA CASA DE ESCRITORES E LITERATURA, EM PARIS