terça-feira, 21 de julho de 2015

Contra o Estado babá - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estadão - 18/07

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) rejeitou uma apelação do Procon contra decisão favorável ao McDonald’s em um processo no qual a rede de lanchonetes foi acusada de fazer propaganda ilegal direcionada às crianças. O caso ainda é passível de recursos, mas a sentença do TJ-SP é exemplar ao colocar a questão em seus devidos termos: em nome da nobre defesa dos interesses das crianças, o Estado é incitado a imiscuir-se em searas que só dizem respeito aos indivíduos. O despacho judicial denuncia a resiliência do chamado “Estado babá”, que infantiliza a sociedade e enseja o espírito autoritário.

O caso em questão começou em janeiro de 2010, quando o Instituto Alana, organização não governamental de defesa dos direitos das crianças, pediu que o McDonald’s parasse de fazer propaganda dirigida ao público infantil. O centro da queixa eram as peças publicitárias que vinculavam o consumo de um combo chamado “McLanche Feliz” à aquisição de um brinquedo.

Em sua resposta, o McDonald’s argumentou que não havia nenhuma lei contrária à publicidade infantil e manteve sua campanha. Então, em novembro de 2011, o Procon, a pedido do Instituto Alana, condenou o McDonald’s ao pagamento de uma multa de R$ 3,1 milhões. A empresa recorreu, mas o Procon indeferiu o recurso em abril de 2013.

No mês seguinte, a multa foi suspensa por uma liminar concedida pela 4.ª Vara da Fazenda Pública. No último dia 2, a 5.ª Câmara de Direito Público do TJ-SP manteve a decisão da primeira instância, rejeitando a punição ao McDonald’s.

Em primeiro lugar, como destacou o desembargador relator Fermino Magnani Filho, o Procon alegou que a propaganda dirigida ao público infantil é ilegal segundo o que dispõe a Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que é de 2014, ou seja, é posterior ao processo contra o McDonald’s. Como nenhuma lei pode ser retroativa, a não ser para beneficiar o réu, essa resolução não poderia ser aplicada a esse caso. “Mas essa questão intertemporal é o de menos”, segundo o desembargador. O que importa é discutir o âmago da questão.

E o que há é a tentativa de obrigar o Estado a tutelar a sociedade. Em primeiro lugar, o desembargador lembra que no Brasil vigora o modelo capitalista. Proibir que determinadas empresas possam fazer propaganda de seus produtos direcionada ao público que irá consumi-los é intrometer-se na livre concorrência. Para coibir abusos da publicidade, e eles existem, a legislação já prevê uma série de sanções. Além disso, não cabe ao Estado determinar com que conteúdos uma criança pode ou não ter contato, pois isso configuraria censura. O máximo que pode fazer é aconselhar os pais sobre quais conteúdos são ou não apropriados para as crianças.

O desembargador admite que as crianças são mais suscetíveis de sucumbir aos apelos de mercado, mas “não é porque existe o chamariz que sempre se compra”. Só poderia ser considerada abusiva a propaganda infantil que atentasse “contra a formação moral, intelectual, familiar e social” da criança, algo que não ocorre com a publicidade que atrela sua mensagem “ao universo lúdico, às personagens de estima do público infantil”.

Na visão de Fermino, o Estado, se resolvesse proibir a propaganda com essas características, “desbordaria num paternalismo sufocante, interferindo em direitos individuais”, ultrapassando a órbita pública e flertando com o totalitarismo. Seria o Estado babá, ou nanny state, como o chama o desembargador.

Ademais, lembrou o despacho, cabe primariamente aos pais, e não ao Estado, educar os filhos a fazer as escolhas sobre o que consumir ou não, além de impor limites sobre a vontade das crianças, infinita por definição. No Brasil, porém, parece consolidada a presunção de que terceiros possam ditar o que consumir. Em nome da adesão a certas causas que, no terreno das boas intenções, podem parecer justas, o indivíduo abre mão de sua independência e aceita que o Estado se intrometa mais e mais em sua vida, permitindo inclusive que se ditem os termos da educação de seus filhos. 

A vez dos oligarcas - ELIO GASPARI


O GLOBO -19/07

Merval Pereira disse tudo quando deu o título de “A vez dos oligarcas” à coluna em que tratou da diligência da Polícia Federal nas casas e escritórios de políticos envolvidos na Lava-Jato. Da Casa da Dinda do senador Fernando Collor saíram uma Lamborghini, uma Ferrari e um Porsche. A frota do ex-presidente deve à Viúva R$ 343 mil de IPVA, e o sócio do posto de gasolina de Maceió em cujo nome está o Porsche nunca ouviu falar dele. Os brinquedos do senador sexagenário deram cores cinematográficas à operação policial, mas no centro do problema estão as informações dadas pelo empreiteiro Ricardo Pessoa e pelo operador Alberto Youssef à Lava-Jato. Eles teriam pagado R$ 29 milhões a Collor em troca de favores na Petrobras.

O senador foi à tribuna e acusou a Polícia Federal de ter sido truculenta, extrapolando “todos os limites” da legalidade (as diligências foram autorizadas por três ministros do Supremo Tribunal Federal).

Chegando a vez dos oligarcas, começava o espetáculo da reação da oligarquia. Collor é um ex-presidente da República, filho de senador, neto de ministro. Na mesma diligência, a PF foi à casa do senador Fernando Bezerra Coelho, no Recife. Polícia na casa de um Coelho foi coisa nunca vista. FBC foi ministro da doutora Dilma, é pai de deputado, sobrinho de ex-governador, neto do coronel Quelê, condestável de Petrolina, onde o sobrenome da família honra o aeroporto, o estádio, um parque, um bairro e uma orquestra.

Noves fora a reação de Collor, o presidente do Senado, Renan Calheiros, ex-vice-presidente da Petroquisa, ministro da Justiça de FHC e pai de Renan Filho, atual governador de Alagoas, disse que a ação da Polícia Federal “beira a intimidação”. Renan é investigado pelo Supremo. Além disso, rola no tribunal um processo em que é acusado de pagar mesada à mãe de uma filha extraconjugal com dinheiro da empreiteira Mendes Junior.

Coube ao vice-presidente Michel Temer o brilho do rubi da coroa da rainha da Inglaterra. Ele disse que “temos que buscar no país uma certa tranquilidade institucional porque essas coisas estão, digamos assim, abalando um pouco a natural tranquilidade que sempre permeou a atividade do povo brasileiro”. A pedra da coroa da rainha não é rubi, mas um espinélio, e a frase de Temer, digamos assim, não quer dizer nada. Que “coisas”? A Lava-Jato, a diligência autorizada pelos ministros do Supremo, ou as petrorroubalheiras? Soltou o enigma e viajou com a família para Nova York.

Renan Calheiros disse também que a democracia está em jogo. Falso. Ela vai bem, obrigado. O que está em jogo é a definição do alcance das leis.

O esperneio oligárquico, bem como as ameaças de Eduardo Cunha, revelam a tática de fim do mundo. Articulam o fim dos tempos, interessados em criar uma crise institucional cujo propósito exclusivo é abafar a Lava-Jato. Lastimavelmente, a doutora Dilma não conseguiu se tornar um fator de estímulo aos procuradores e magistrados. Ficou neutra contra. Podendo ser parte da solução, pedala como parte do problema.

O golpe do parlamentarismo

A repórter Raquel Ulhoa avisou: arma-se no Congresso um golpe para mutilar a Presidência da República estabelecendo um regime parlamentarista. Numa ponta dessa conversa, para logo, já se viu o senador Renan Calheiros. Noutra, defendendo a ideia para mais adiante, entrou o deputado Eduardo Cunha. Pairando sobre ambos há uma parte do tucanato, desencantada com as bandeiras do impedimento, das contas do TCU e dos processos do Tribunal Superior Eleitoral.

A manobra depende da existência de um clima de inquietação, com a economia em queda e o desemprego em alta. Disso, a doutora vem cuidando. Para piorar, o Congresso aprova maluquices que agravam as dificuldades. O caldo entornará com as manifestações de agosto (desprezando-se a possibilidade de surgimento de manifestantes contra golpes, ladroagens e truques dos suspeitos de sempre).

O parlamentarismo pode ser instituído com a aprovação por maioria de três quintos das duas Casas do Congresso, em duas votações. São necessários 51 dos 81 senadores e 308 dos 513 deputados. Isso só se consegue com uma crise do tamanho da de 1961, quando o país esteve à beira da guerra civil, e aprovou-se uma emenda parlamentarista, mutilando o mandato de João Goulart.

É muito comum ouvir-se falar em “golpe paraguaio” ou “golpe boliviano”. A manobra criaria o “golpe brasileiro”, superando de longe os dois outros. O parlamentarismo foi rejeitado pela população em dois plebiscitos, sempre por larga maioria. O primeiro deu-se em 1963, e o segundo, em 1993. Nele, o regime parlamentar teve 16,5 milhões de votos, contra 37,2 milhões dados ao presidencialismo. O restabelecimento da monarquia teve 6,8 milhões.

De acordo com o processo legislativo e a Constituição, seria mais fácil revogar a Lei Áurea, sancionada a partir de um simples projeto de lei votado pelos deputados e senadores. Ela nunca foi submetida a um referendo, quanto mais a dois. A velha e boa plutocracia nacional deve reconhecer que essa mágica é impossível, mas ela haveria de lhe fazer o gosto.

A ruína do Inca

As convicções partidárias do ministro Arthur Chioro conseguiram o que a ditadura nem tentou: degradar o Instituto Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro.

Os generais mantiveram na direção do serviço Moacir Santos Silva, o médico de Jango. Com Chioro, um sindicato de servidores públicos federais na Saúde ganhou uma sala no Inca, enquanto cinco das 11 salas de cirurgia estão fechadas por falta de anestesistas.

A média de espera para uma cirurgia, que já foi de 20 dias, está em dois meses, tempo suficiente para tornar inútil o procedimento.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota, rompeu com o governo da doutora Dilma e passou a acreditar em tudo o que dizem contra ela.

O cretino só não conseguiu resolver um problema. Ela, como ele, defende a normalidade constitucional e o respeito ao mandato saído das urnas no ano passado.

Eremildo é um idiota, capaz de trocar seis por meia dúzia, mas nunca trocou seis por quatro.

Má notícia

O ministro Joaquim Levy ainda não fez nada errado, mas, pelas artes da política, ficou menor do que estava quando assumiu o cargo.

Está mais para Mário Henrique Simonsen, que demorou para mostrar que era capaz de pedir o boné, do que para Pedro Malan, que encolhia os bonés dos outros.

Estou fora

No dia do fatídico jantar da doutora com José Eduardo Cardozo e o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, na cidade do Porto, Teori Zavascki estava no mesmo hotel, pois compareceria ao mesmo evento que juntaria o colega e o ministro da Justiça

Se tivesse sido convidado, não iria. Se o convidaram, não foi.

Ativismo judicial: as contas de energia e telefonia - SACHA CALMON


CORREIO BRAZILIENSE - 19/07 

Nos meios acadêmicos esquerdistas, uma corrente profliga o ativismo judicial no afã principal de reduzir o papel do nosso Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), as cortes superiores. O STJ tem por missão dar interpretação uniforme ao direito pátrio. O STF decide as questões constitucionais. O Supremo é tido como guardião da Constituição, responsável por torná-la efetiva a partir dos princípios constitucionais que subordinam a ordem jurídica nacional. Dito isso, vamos ao ponto. Dispõe a Constituição no artigo 155, § 2º, III, que o Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) poderá ser seletivo em razão da essencialidade do produto ou mercadoria tributável, pois o consumidor é o contribuinte de fato do imposto (repercutido ao consumidor final). O objetivo é tributar a renda gasta no consumo.

O tempo do verbo: poderá. Segundo certos intérpretes, significa que o imposto - por opção do legislador - poderá ser seletivo ou não. Se o tempo do verbo fosse deverá (do verbo dever) seria um poder-dever. Como se trata de um poderá, seria um poder-faculdade e até citam o doutrinador italiano Santi Romano (o poder como faculdade e como dever). É a interpretação mais pedestre que jamais ouvi. É certo que a Constituição não instaura o imposto, apenas o autoriza, e enuncia características e princípios a ele atinentes. O Senado da República fixa as alíquotas interestaduais e a lei, as alíquotas internas a serem praticadas pelos estados. Até esse ponto, todos estamos acordes.

Dá-se que se os legisladores ordinários resolverem tributar, com alíquota menor, por exemplo, os produtos da cesta básica; e outra, maior do que a geral, para tributar bebidas e perfumes. Isso significa que ele exerceu o poder-faculdade que a Constituição lhe conferiu para dar seletividade ao ICMS. Ele deve ser, então, necessariamente seletivo, ou seja, tributar menos os remédios, a luz, e menos os perfumes de acordo com a essencialidade do produto para o consumidor. O ICMS permanecerá não seletivo se o legislador não variar as alíquotas, adotando somente as comuns, a interna para transações dentro do Estado e a externa ou interestadual em caso contrário (essa definida por resolução do Senado, a casa legislativa dos estados).

Como todos os estados brasileiros adotam alíquotas diferenciadas de ICMS, significa terem aderido ao princípio constitucional da seletividade, mas de maneira arrevesada, a ponto de pervertê-lo na prática da tributação (que fica embutido no preço final dos bens e serviços de transporte e comunicações, fornecimento de energia e consumo de combustíveis derivados do petróleo) arcados pelas pessoas físicas e jurídicas brasileiras, todos os dias. É nesse momento que o Judiciário, ou melhor, os tribunais superiores, o STF e o STJ, devem intervir para adequar a tributação do ICMS à Constituição da República. Chame-se a isso ativismo judicial no bom sentido.

É que os estados tributam pesadamente remédios, combustíveis, comunicações e energia elétrica, cujo consumo é maciço. Contudo, são necessários à produção e essenciais à população. Pensando somente em arrecadar, à revelia do princípio da seletividade, os estados estão descumprindo a Constituição. Não se pode nem se deve, em casos tais, condenar o ativismo judicial. Ao cabo, na espécie, o Supremo estará enquadrando o Executivo e o Legislativo nos estritos dizeres da Constituição. O estado do Rio de Janeiro fixou a alíquota de ICMS sobre energia elétrica em 25%, acrescido do adicional destinado ao fundo de combate à pobreza de 5%. Considerando-se que o imposto compõe a própria base de cálculo, tem-se alíquota efetiva e aproximada de 33% (mesma alíquota sobre perfumes e cosméticos). A alíquota sobre cervejas e chope, por outro lado, é de 20%. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) declarou a inconstitucionalidade da alíquota de 25% incidente sobre a energia e os serviços de comunicação, assegurando o direito à restituição da diferença recolhida a maior nos últimos cinco anos.

Deve ser aplicada a alíquota geral do estado, de 17%. O STF se colocou a favor da tese. A 2ª Turma, por unanimidade, disse que "a capacidade tributária do contribuinte impõe a observância do princípio da seletividade como medida obrigatória, evitando-se, mediante a aferição feita pelo método da comparação, a incidência de alíquotas exorbitantes em serviços essenciais" (Recurso Extraordinário nº 634.457 AgR, 05.8.14). O Poder Judiciário nas decisões aqui comentadas se põe ativo, obrigando o legislador a observar a Constituição em prol do povo. A República e o Estado de Direito penhoradamente agradecem. Tomara que a Suprema Corte venha conquistar a estima e o respeito do povo, coisa que o Executivo e o Legislativo já perderam, para nossa tristeza e lamentação.