domingo, 7 de junho de 2015

Pobre educação pobre


JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S. PAULO
06 Junho 2015 | 16h 00

Desvalorização da docência e burocratização da escola comprometem o que devia ser o eixo da sociedade moderna

Não é um triunfo da escola pública nem da luta por educação pública, laica e gratuita, objetiva e neutra, democraticamente acessível a todos, que o movimento paredista dos professores de São Paulo tenha superado a marca de mais de 82 dias de paralisação, a mais longa greve da entidade que os congrega desde 1945. A reivindicação de salários corretos pelos educadores de São Paulo, e de outros Estados em que a paralisação ocorre, é justíssima, ao menos onde o correto está proposto. Não tenho certeza, porém, de que sejam justíssimos a forma e o modo como a reivindicação é apresentada aos governantes, ao público e, sobretudo, aos alunos e suas famílias. No limite, a greve transforma o aluno de sujeito em ser adjetivo da educação. É uma das contradições desta sociedade. As contradições existem como desafios para a superação dos conflitos, e não para a sua institucionalização. Existem para quem reivindica e também para aquele a quem a reivindicação é dirigida. O gás de pimenta, como tem acontecido em vários Estados, não condimenta a paz social nem aplaina o caminho para a mesa de negociação. Do mesmo modo, emparedar os governantes com reivindicações inegociáveis não sugere a intenção de superar o conflito. Falta política na política, de ambos os lados.
Atrito: seguranças do sindicato entraram em confronto com os professores durante assembleia
Atrito: seguranças do sindicato entraram em confronto com os professores durante assembleia
A transformação do professor em caixeiro viajante do ensino para o ganho do que carece para viver como professor, e não ser reduzido a proletário da educação, nega aí o essencial do magistério. A missão civilizadora da educação só é possível na concepção da escola como comunidade de ensino e aprendizado que une em torno da causa comum professores, alunos, pais de alunos e a própria sociedade abrangente. A escola do docente enraizado, e não a do docente itinerante. Além do que não é o sindicato que deve dizer e definir o que a educação deve ser. Há aí o risco de deslocar a missão da escola para os valores do confronto empregatício e para o materialismo das disputas meramente econômicas. 
Não há edificação do espírito se o que um professor ganha é insuficiente para o que o decoro recomenda como indispensável à sua apresentação pessoal e profissional, não só a casa, a mesa e o traje, mas também o tempo livre para a poesia e a arte, o tempo para ouvir e aprender. Senão, quem educará o educador? Um professor pobre não é mais do que um pobre professor. Do mesmo modo que um aluno carente da continuidade e persistência do ensino apenas aumenta o elenco dos pobres de espírito, mesmo que a quantofrenia pedagógica neoliberal dos que tudo justificam pelas quantidades diga que haverá reposição de aulas. A greve é também neoliberal quando vai por aí. O da greve é um tempo a menos, um abatimento na biografia dos que são privados do ensino a que têm direito na hora devida. 
A adoção do modelo da greve operária nas lutas sociais, em setores que estão fora do sistema produtivo e da luta de classes, transplanta uma forma de luta por reivindicações, mesmo justas, que ficam comprometidas desde o início do movimento porque não incidem diretamente sobre a reprodução do capital. Tornam-se inócuas, como se vê nas greves descabidamente demoradas em setores como o da educação pública. A demora é indício da impropriedade. Na fábrica, a greve dá concretos prejuízos à empresa desde o primeiro minuto, o que força a outra parte a negociar ou, até, a antecipar a negociação, como tem sido frequente. O patrão do setor produtivo sabe quanto está perdendo a cada minuto. Seu capital fica paralisado. Perde porque deixa de ganhar. 
Fora do sistema produtivo, é o oposto, a greve não prejudica o “patrão”. A reprodução da ordem burocrática não é comprometida. A escola não é uma fábrica. O prejuízo recai sobre a massa dos dependentes daquele serviço, os não chamados a ter presença no litígio. Prejudica a sociedade, que não tem motivos para se mover em favor dos grevistas, como nos mostram as cartas aos jornais e as mensagens da internet. A agonia das greves de professores até hoje não lhes ensinou que deveriam estar em busca de outra forma, mais eficaz, de reivindicação, no marco da civilização, e não no marco da produção. Ao mesmo tempo, os governos têm tratado os professores do ensino público com um desdém que compromete a educação e que evidencia o quanto ela deixou de ser considerada um fator positivo de desenvolvimento social. A desvalorização da docência e a minimização da escola, hoje transformada em abrigo da mentalidade e do comportamento burocráticos inócuos, compromete o presente e o futuro da sociedade em todos os sentidos. Nessa decadência, crianças e jovens não são convidados a participar de um projeto de nação, privados da alegria de aprender para viver e viver para o outro, a alteridade faltante na greve. A greve anômica, no fim das contas, apenas acelera os danos sociais de uma omissão comprometedora de todos com aquilo que na sociedade moderna deveria ser o eixo e o instrumento, o abrigo, o lugar do sonho, do que justifica nela viver para dela ser. 
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Quem recebe até três salários mínimos é quem mais paga impostos no Brasil (noticia do ano passado)


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SÃO PAULO – Mais de 79% da população brasileira, que recebe até três salários mínimos por mês, contribui com 53% da arrecadação tributária total no País. Na última terça-feira (12), o Brasil chegou à marca de R$ 1 trilhão em impostos arrecadados em 2014.
Segundo cálculos feitos pelo IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação), 7,6% da população cujo rendimento mensal fica entre 5 e 10 salários mínimos responde por 16% do total arrecadado.
Outros 20 milhões de pessoas (10,14%) que recebem de 3 a 5 salários mínimos são responsáveis por 12,5% do total de tributos arrecadados.
Confira abaixo:
Arrecadação do R$ 1 trilhão por faixa de renda
 
Faixa salarialPopulaçãoImpostos pagosQuantia
Fonte: IBPT
Até 3 salários mínimos79,02%R$ 537.937.743.190,6653,79%
De 3 a 5 salários mínimos10,14%R$ 126.459.143.968,8712,65%
De 5 a 10 salários mínimos7,60%R$ 166.342.412.451,3616,63%
De 10 a 20 salários mínimos2,40%R$ 96.303.501.945,539,63%
Mais de 20 salários mínimos0,84%R$ 72.957.198.443,587,30%

Consumo

Ao considerar os grupos de consumo, o IBPT concluiu que os gastos com habitação geram 42,43% do montante arrecadado aos cofres públicos; seguida por transporte (23,81%); alimentação (14,73%) e vestuário (5,34%).
As pessoas cuja renda supera 20 salários mínimos correspondem a 0,84% da população brasileira e geram R$ 73 bilhões do montante total, equivalentes a 7,3% da arrecadação.
De acordo com o presidente do Conselho Superior e coordenador de estudos do IBPT, Gilberto Luiz do Amaral, "o levantamento evidencia que o sistema tributário brasileiro é extremamente concentrado no consumo, fazendo com que a população de menor poder aquisitivo tenha um custo tributário muito elevado".
Veja os setores nos quais os contribuintes mais gastaram:
Arrecadação do R$ 1 Trilhão por Grupamentos de Consumo
 
Grupos de consumoArrecadaçãoQuantia
Fonte: IBPT
HabitaçãoR$ 424.300.000.00042,43%
TransporteR$ 238.100.000.00023,81%
AlimentaçãoR$ 147.300.000.00014,73%
VestuárioR$ 53.400.000.0005,34%
Assistência à saúdeR$ 47.300.000.0004,73%
Higiene e cuidados pessoaisR$ 23.800.000.0002,38%
EducaçãoR$ 20.800.000.0002,08%
Recreação e culturaR$ 10.900.000.0001,09%
Serviços pessoaisR$ 7.200.000.0000,72%
OutrosR$ 26.900.000.0002,69%

terça-feira, 2 de junho de 2015

Como o Brasil mudou nos últimos 50 anos, livro - FFLCH, organizado por Marta Arretche

Como o Brasil mudou nos últimos 50 anos

02 de junho de 2015

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP -A América Latina apresenta os mais elevados índices de desigualdade do mundo e o Brasil ainda está entre os países mais desiguais da América Latina. Porém as desigualdades, em várias áreas, vêm diminuindo consistentemente. São reduções gradativas. Não houve nenhum grande salto de superação das desigualdades concentrado em um momento específico, mas o processo, como um todo, está fortemente associado à reconstrução da democracia.
Esta é uma das conclusões do livro Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos, organizado por Marta Arretche, professora titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP. 
“O livro é o primeiro grande balanço feito nas ciências sociais que considera o Brasil como um todo, em todas as dimensões tidas como relevantes, ao longo de 50 anos de trajetória”, disse Arretche à Agência FAPESP. Uma equipe composta por 23 pesquisadores, de diversas áreas das ciências sociais (demografia, economia, sociologia e ciência política), realizou a síntese, a partir da sistematização de dados censitários.
“Contamos com a participação de professores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da University of Illinois at Urbana-Champaign, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e do CEM”, informou a organizadora.
O trabalho desses pesquisadores beneficiou-se de seis edições dos Censos Demográficos, produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 1960 a 2010. Ao longo desse meio século, o país apresentou configurações econômicas e políticas muito distintas: transição rural-urbana; industrialização, crescimento econômico acelerado e retração econômica; inflação e estabilidade monetária; autoritarismo e democracia.
Conforme destacou Arretche na apresentação da obra, o Brasil dos anos 1960 era um país rural, com três quartos de sua população funcionalmente analfabeta e esmagadoramente católica e um mercado de trabalho com amplo predomínio masculino. Confinadas no lar e com suas atividades restritas ao trabalho doméstico, as mulheres tinham em média seis filhos. A desigualdade entre brancos e não brancos começava no acesso aos bancos do ensino fundamental.
Um país altamente urbanizado
Em 2010, o Brasil já era um país altamente urbanizado, com 85% de seus habitantes vivendo em cidades. Entre os jovens, a conclusão do ensino básico tornara-se praticamente universal e 70% deles completavam oito anos de estudo. O analfabetismo funcional, restrito então a 20% da população economicamente ativa, concentrava-se entre os mais velhos. Em uma sociedade cada vez mais plural em termos religiosos, ter filhos passara a ser uma escolha, as mulheres haviam-se tornado maioria no contingente universitário e deixara de haver diferenças entre profissões tipicamente masculinas ou femininas.
Entre um marco cronológico e outro, a taxa de mortalidade infantil caiu de 69 para 16 por 1.000 nascidos vivos e a esperança de vida subiu de 62 para 73 anos. O acesso muito maior ao ensino médio e superior exerceu grande impacto no funcionamento do mercado de trabalho e na participação política.
Segundo cálculo realizado pelos autores do livro, com base nos dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio (PNADs), do IBGE, o pico da desigualdade de renda no Brasil ocorreu em 1989, final do governo Sarney, quando o piso da renda dos 5% mais ricos correspondia a 79 vezes o teto da renda dos 5% mais pobres. “Desde então, essa razão vem apresentando queda sistemática. Em 2012, ano em que a série atingiu seu patamar mais baixo, ela era de 36 vezes”, afirmou Arretche.
Desigualdade de renda
O estudo mostrou que as desigualdades de renda vêm caindo principalmente entre os 90% mais pobres. “A desigualdade entre os 10% mais ricos e os 90% mais pobres manteve-se praticamente estável. Mas, no conjunto dos 90% mais pobres, houve mudanças importantes. A extrema pobreza, definida por renda inferior a um quarto do salário mínimo, foi muitíssimo reduzida, basicamente por causa do programa Bolsa Família. Na década de 1990, os extremamente pobres compunham 38% da população. Hoje, são 5%. E, devido à política salarial, a pobreza também diminuiu”, contabilizou a pesquisadora.
Mas ela enfatizou que uma diferença de 36 vezes no patamar de renda ainda constitui uma desigualdade muito grande. Reconheceu, no entanto, que o desenho descendente da curva da desigualdade de renda no Brasil destoa da tendência observada no mundo desenvolvido. “Dados do The World Top Income Database indicam que, nos Estados Unidos, a participação dos 1% mais ricos na renda nacional (excluídos os ganhos de capital) cresceu de 12,2% para 19,3% entre 1991 e 2012. No mesmo período, esse indicador passou de 10% para 15,4% no Reino Unido, e de 5% para 7,1% na Suécia, considerada um exemplo de democracia avançada.”
Por importante que seja a variável renda, ela não é superdimensionada no livro. “Até agora, os balanços das desigualdades no Brasil concentravam-se demais nas diferenças de renda, destacando menos outras dimensões relevantes. Fizemos um balanço multidimensional, contemplando, além da renda, dimensões como mercado de trabalho, educação, acesso a serviços, desigualdades de gênero, desigualdades de cor, desigualdades territoriais, participação política etc. Foi um trabalho empiricamente muito robusto”, disse.
Nesse amplo leque de variáveis, o tratamento dos dados confirmou que há desigualdades muito mais persistentes do que outras. É o caso daquelas decorrentes da cor da pele. Em um país que muitos ainda acreditam ser uma “democracia racial”, a velocidade com que as mulheres diminuíram sua desigualdade em relação aos homens foi muito maior do que a velocidade com que os não brancos diminuíram sua desigualdade em relação aos brancos. “Se o mundo universitário na década de 1960 era um mundo branco e masculino, hoje ele é apenas branco. As mulheres superaram os homens, mas os brancos ainda compõem 75% da população universitária. Mais que isto, quando os não brancos entram no sistema de ensino superior, tendem a ingressar nas escolas que dão acesso às profissões de menor prestígio. A redução das desigualdades de cor no sistema escolar permaneceu restrita ao ensino fundamental”, comentou Arretche.
Políticas Públicas
De acordo com a pesquisadora, as políticas públicas têm desempenhado um papel central na redução das desigualdades. E não se trata da mera existência de políticas públicas, porque estas sempre existiram. Mas também de seu desenho. Um exemplo mencionado por ela é o da baixa desigualdade de participação política. Diferentemente de outros países, em que os pobres não participam do processo eleitoral, em que a participação eleitoral ocorre em desfavor dos pobres, no Brasil a participação dos pobres é alta. E a desigualdade entre as regiões no tocante à participação política é muito pequena.
“Poderíamos dizer, intuitivamente, que isso ocorre porque o voto inclui os analfabetos e é obrigatório. Mas estas não são as principais razões. As principais razões são algumas decisões dos tribunais eleitorais em relação às regras de participação”, afirmou. “Por exemplo, nos Estados Unidos e na Itália, o eleitor tem que se registrar para cada eleição. Além disso, as eleições ocorrem em dia de trabalho. No Brasil, o título de eleitor permite participar em várias eleições. E as eleições sempre ocorrem em domingos ou feriados. Parece pouco, mas esses fatores foram muito importantes para aumentar a participação. Mais do que as grandes decisões, são, às vezes, os pequenos detalhes que contribuem para a diminuição da desigualdade.”
Mas, se algumas melhorias são, por assim dizer, territórios conquistados ou ganhos estruturais, outras podem ser ainda abaladas por flutuações conjunturais. “A queda das desigualdades é resultado de muitos mecanismos, que se combinam no tempo”, explicou Arretche. “Um desses mecanismos diz respeito à demografia. Uma das razões importantes da histórica desigualdade no Brasil é que tínhamos abundância de mão de obra barata e de baixa qualificação. Isso mudou, porque a taxa de fertilidade mudou e o acesso à educação aumentou. Desses dois fatores, o primeiro pode ser considerado irreversível. Dificilmente voltaremos ao padrão de fertilidade que tivemos até a década de 1980. Mas não há garantia de que o acesso à educação continue aumentando. Nos Estados Unidos, por exemplo, aconteceu o contrário. Os estudos mostram que, lá, os patamares educacionais caíram de 1970 para cá.”
É claro que essa comparação precisa ser matizada, porque, nos Estados Unidos, o grande diferencial é o acesso ao ensino superior, ao passo que o Brasil apenas acabou de universalizar o ensino fundamental. “Mas, dependendo da conjuntura, existe o risco de ficarmos paralisados nisso. A trajetória de longo prazo das desigualdades no Brasil revela que não há determinismo – econômico ou político – nesse processo. Políticas importam! Mais que isso: deslocamentos nos padrões de desigualdade requerem políticas implementadas por um longo período de tempo”, concluiu.
O livro será lançado em seminário no Centro de Estudos da Metrópole, em 2 de junho de 2015, das 9 às 18 horas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Prédio da Filosofia e das Ciências Sociais, Sala 14, na Avenida Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária, São Paulo.
O evento é aberto a todos, sem necessidade de inscrição prévia.
Mais informações: www.fflch.usp.br/centrodametropole.
Ficha
Título: Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos
Organizadora: Marta Arretche
Editora: Editora Unesp
Ano: 2015
Páginas: 489
Preço: R$ 69