JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S. PAULO
06 Junho 2015 | 16h 00
Desvalorização da docência e burocratização da escola comprometem o que devia ser o eixo da sociedade moderna
Não é um triunfo da escola pública nem da luta por educação pública, laica e gratuita, objetiva e neutra, democraticamente acessível a todos, que o movimento paredista dos professores de São Paulo tenha superado a marca de mais de 82 dias de paralisação, a mais longa greve da entidade que os congrega desde 1945. A reivindicação de salários corretos pelos educadores de São Paulo, e de outros Estados em que a paralisação ocorre, é justíssima, ao menos onde o correto está proposto. Não tenho certeza, porém, de que sejam justíssimos a forma e o modo como a reivindicação é apresentada aos governantes, ao público e, sobretudo, aos alunos e suas famílias. No limite, a greve transforma o aluno de sujeito em ser adjetivo da educação. É uma das contradições desta sociedade. As contradições existem como desafios para a superação dos conflitos, e não para a sua institucionalização. Existem para quem reivindica e também para aquele a quem a reivindicação é dirigida. O gás de pimenta, como tem acontecido em vários Estados, não condimenta a paz social nem aplaina o caminho para a mesa de negociação. Do mesmo modo, emparedar os governantes com reivindicações inegociáveis não sugere a intenção de superar o conflito. Falta política na política, de ambos os lados.
A transformação do professor em caixeiro viajante do ensino para o ganho do que carece para viver como professor, e não ser reduzido a proletário da educação, nega aí o essencial do magistério. A missão civilizadora da educação só é possível na concepção da escola como comunidade de ensino e aprendizado que une em torno da causa comum professores, alunos, pais de alunos e a própria sociedade abrangente. A escola do docente enraizado, e não a do docente itinerante. Além do que não é o sindicato que deve dizer e definir o que a educação deve ser. Há aí o risco de deslocar a missão da escola para os valores do confronto empregatício e para o materialismo das disputas meramente econômicas.
Não há edificação do espírito se o que um professor ganha é insuficiente para o que o decoro recomenda como indispensável à sua apresentação pessoal e profissional, não só a casa, a mesa e o traje, mas também o tempo livre para a poesia e a arte, o tempo para ouvir e aprender. Senão, quem educará o educador? Um professor pobre não é mais do que um pobre professor. Do mesmo modo que um aluno carente da continuidade e persistência do ensino apenas aumenta o elenco dos pobres de espírito, mesmo que a quantofrenia pedagógica neoliberal dos que tudo justificam pelas quantidades diga que haverá reposição de aulas. A greve é também neoliberal quando vai por aí. O da greve é um tempo a menos, um abatimento na biografia dos que são privados do ensino a que têm direito na hora devida.
A adoção do modelo da greve operária nas lutas sociais, em setores que estão fora do sistema produtivo e da luta de classes, transplanta uma forma de luta por reivindicações, mesmo justas, que ficam comprometidas desde o início do movimento porque não incidem diretamente sobre a reprodução do capital. Tornam-se inócuas, como se vê nas greves descabidamente demoradas em setores como o da educação pública. A demora é indício da impropriedade. Na fábrica, a greve dá concretos prejuízos à empresa desde o primeiro minuto, o que força a outra parte a negociar ou, até, a antecipar a negociação, como tem sido frequente. O patrão do setor produtivo sabe quanto está perdendo a cada minuto. Seu capital fica paralisado. Perde porque deixa de ganhar.
Fora do sistema produtivo, é o oposto, a greve não prejudica o “patrão”. A reprodução da ordem burocrática não é comprometida. A escola não é uma fábrica. O prejuízo recai sobre a massa dos dependentes daquele serviço, os não chamados a ter presença no litígio. Prejudica a sociedade, que não tem motivos para se mover em favor dos grevistas, como nos mostram as cartas aos jornais e as mensagens da internet. A agonia das greves de professores até hoje não lhes ensinou que deveriam estar em busca de outra forma, mais eficaz, de reivindicação, no marco da civilização, e não no marco da produção. Ao mesmo tempo, os governos têm tratado os professores do ensino público com um desdém que compromete a educação e que evidencia o quanto ela deixou de ser considerada um fator positivo de desenvolvimento social. A desvalorização da docência e a minimização da escola, hoje transformada em abrigo da mentalidade e do comportamento burocráticos inócuos, compromete o presente e o futuro da sociedade em todos os sentidos. Nessa decadência, crianças e jovens não são convidados a participar de um projeto de nação, privados da alegria de aprender para viver e viver para o outro, a alteridade faltante na greve. A greve anômica, no fim das contas, apenas acelera os danos sociais de uma omissão comprometedora de todos com aquilo que na sociedade moderna deveria ser o eixo e o instrumento, o abrigo, o lugar do sonho, do que justifica nela viver para dela ser.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO)
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