segunda-feira, 23 de março de 2015

Pantagruel cibernético


CAITLIN DEWEY - THE WASHINGTON POST
21 Fevereiro 2015 | 16h 00

Como o YouTube, que completa 10 anos, engoliu a máquina da cultura pop

Familiar. Postado em 2007, vídeo borrado de Bieber teria oito anos depois 7 mi de vistas
Familiar. Postado em 2007, vídeo borrado de Bieber teria oito anos depois 7 mi de vistas
O fato é facilmente esquecido à luz de toda a fama e loucura que se seguiram, mas antes de Justin Bieber ser uma figurinha fácil nos tabloides, modelo de Calvin Klein e líder cult adolescente, ele foi uma figurinha diante de uma parede de blocos cantando So Sick de Ne-Yo num tenor pré-púbere.
Era um videoclipe filmado num concurso de canto em Stratford, Ontário, no qual Bieber - então com 12 anos - ficou em terceiro lugar. Quando sua mãe postou o vídeo no YouTube, em janeiro de 2007, para compartilhar com membros da família, provavelmente não imaginava que, oito anos depois, o vídeo borrado teria 7,3 milhões de vistas; ou que chamaria a atenção do atual empresário de Bieber, Scooter Braun; ou que, no futuro, os vídeos de Bieber no YouTube seriam filmados por equipes de profissionais altamente remunerados.
De muitas maneiras, a trajetória de Justin Bieber é também a história do YouTube. O site de compartilhamento em massa de vídeos completou 10 anos no sábado retrasado, o que significa quase a velhice na internet. No entanto, durante boa parte de sua história, ele foi o pretensioso, o perturbador, o garoto de 12 anos acelerando para conquistar a máquina da cultura pop. “Somos a reality TV definitiva”, disse o cofundador Chad Hurley em 2005. Era a “reality TV” em seu sentido mais literal: pessoas reais filmando cenas de suas vidas reais.
Quando Hurley e seus cofundadores registraram o domínio YouTube.com no andar de cima de uma pizzaria na Califórnia, em fevereiro de 2005, o conceito era praticamente desconhecido, um plasma inacessível a um usuário médio da rede. Claro, havia um punhado de outras empresas iniciantes de vídeo de pequeno porte, a maioria hoje extinta. E havia uma classe de usuários esclarecidos que possuíam os servidores e a banda larga necessários para postar vídeos em seus sites na web, façanha tecnicamente difícil e potencialmente cara.
Aliás, pressionada que fui a nomear um vídeo viral surgido antes da aurora do YouTube, suspeito que a maioria das pessoas só se lembraria de Numa Numa - o gloriosamente simples, não roteirizado videoclipe feito com webcam de um sujeito chamado Gary dançando uma canção pop romena, que apareceu online em dezembro de 2004 (o dito vídeo migrou para o YouTube, é claro, onde foi visto 56 milhões de vezes).
Os primeiros adeptos do YouTube já tinham assistido à migração online da produção de áudio e da fotografia (o YouTube, em seus primórdios, era chamado de “Flickr for video”). Blogs bombavam. Redes sociais como Myspace e Facebook, então com um ano de vida, ganhavam força.
O Google trabalhava no próprio produto de vídeo, acertadamente chamado Google Video, que prometia trazer todo o brilho da TV para o computador. Cortejou grandes produtores de Hollywood e firmou um acordo de conteúdo com a National Academy of Motion Picture Arts and Sciences, mesmo grupo que nos oferece os Oscars. E permitia que plebeus postassem conteúdo, desde que baixassem o software de transferência de arquivos patenteado do Google, enviassem um formulário preenchido com o valor do conteúdo e esperassem a aprovação dos moderadores.
O YouTube teve ideia melhor: um site de vídeo que qualquer um e todos pudessem usar. Apropriadamente, o primeiro vídeo a ser postado, em 23 de abril de 2005, foi um de 19 segundos do cofundador do YouTube, Jawed Karim, parado com sua cara de bebê diante de elefantes no zoo de San Diego. “O legal sobre esses caras é que eles têm trombas realmente, realmente, realmente muito compridas. E isso é legal. E isso é tudo que há para dizer.” Ali estava: a reality TV final. A vida em toda sua autenticidade prosaica, não roteirizada.
Em novembro daquele ano, os usuários do YouTube postavam o equivalente a “um Blockbuster de vídeos por dia”, como os fundadores do YouTube gostavam de alardear. Em dezembro, o site movimentava dois Blockbusters diários. Em janeiro, haviam abandonado por completo a metáfora do Blockbuster. O YouTube, diziam teóricos da mídia, se distinguia de qualquer gênero de vídeo anterior: representava a democratização de um meio que um dia pertencera só a estúdios de Hollywood e conglomerados de mídia. Surgiram os vídeos das e para as pessoas, na maioria, com toda sua bagunça, humanidade e ocasional estupidez. Havia neles algo de nitidamente antiprofissional, de perceptivelmente vulgar. 
Quando, exatamente, isso mudou?
Em outubro de 2006, quando o Google comprou o YouTube, os usuários já iniciavam o coro de lamentações usual sobre publicidade e envolvimento corporativo. Essa reação recomeçou quando, em 2007, o Google introduziu a publicidade na sua plataforma, o que tornou o YouTube mais uma oportunidade de ganhar dinheiro.
Em seu quinto aniversário, em 2010, os usuários postavam 24 horas de vídeos a cada minuto, e alguns ganhavam o suficiente para largar seus empregos. Naquele ano, Hank e John Green, avós do YouTube àquela altura, tendo postado vídeos desde 2007, organizaram a conferência inaugural para criadores de vídeos chamada VidCon, à qual compareceram 1.400 pessoas. A mais recente versão da VidCon atraiu 20 mil.
Hoje, raramente se vê um vídeo viral que não tenha seus direitos administrados por uma companhia como a Jukin Media. E, das 30 redes mais populares do YouTube, um quinto pertence a conglomerados de mídia como Comcast, Disney e AT&T.
Agora, quando se assiste a um vídeo de um “astro” do YouTube, se veem menos paredes de quarto beiges e mais um estúdio de fundo verde lustroso. Talvez até um dos estúdios do YouTube, que a companhia lançou para o uso do escalão superior em 2012.
Isso tudo é bom para o YouTube, e melhor ainda para seus astros, alguns dos quais transformaram bizarros truques de internet em carreiras reais. Já não se pode negar que celebridades do YouTube se equiparam a seus pares tradicionais, em termos de importância e influência cultural.
Dito isso, há uma razão para vídeos como “the cutest gangsta I know” ainda se tornarem virais. E há uma razão para astros de vídeo jovens autopromovidos se mudarem para o Vine, e do Vine para o Snapchat. Há algo a se dizer em favor do YouTube lixo, inocente, a “reality TV final”.
Incidentalmente, arqueólogos que estudam culturas antigas muitas vezes se inteiram de como povos viviam de fato pelo estudo não de seus templos e monumentos, mas por seu lixo, pelas sobras irrefletidas, banais, não polidas da vida cotidiana. O YouTube foi assim um dia: uma tela para nos mostrar como realmente vivíamos.
Depois avançou para coisas menos autênticas talvez, mas mais lucrativas - e muito mais atraentes. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

Agente Barbie


SUSAN LINN - O ESTADO DE S. PAULO
21 Março 2015 | 16h 00

Boneca que capta (e usa) o que as crianças lhe falam viola muito mais que a privacidade

O plano da Mattel de lançar uma boneca Hello Barbie conectada por Wi-Fi neste outono americano é uma grossa violação da privacidade de crianças e famílias. A boneca usa um microfone embutido para captar tudo que a criança diz a ela e tudo que é dito por qualquer um ao alcance do microfone. Essas conversas serão transmitidas para servidores em nuvem para armazenamento e análise pela Toy Talk, a parceira de tecnologia da Mattel. A Mattel diz que “aprenderá tudo que as crianças gostam e não gostam” e “enviará dados” de volta às crianças, transmitidos via alto-falante embutido na boneca.
Além do que dizem as ‘donas’, Hellos ouvem conversas da família
Além do que dizem as ‘donas’, Hellos ouvem conversas da família
O fato de Mattel e Toy Talk estarem se envolvendo no que resulta em vigilância corporativa de como as crianças brincam com suas bonecas deixa crianças e famílias vulneráveis a violações potenciais como quebra de segurança, publicidade insidiosa e outras. Como psicóloga que passou anos engajando crianças em terapias com brinquedos sei que as brincadeiras delas com bonecas, marionetes, bichinhos de pelúcia e outras figuras são poderosamente pessoais. Quando crianças falam com brinquedos, elas podem revelar segredos, trabalhar experiências perturbadoras e explorar seus sonhos e esperanças. Conversas com brinquedos são janelas para seus corações e mentes. Em geral, as únicas pessoas além dos pais que entreouvem crianças em conversas sérias com seus brinquedos são outros membros da família, professores, ou cuidadores - pessoas cujo principal interesse é o bem-estar da criança. Mas as crianças que falarem com uma Hello Barbie serão bisbilhotadas por uma corporação cujo interesse exclusivo nelas é financeiro.
A Mattel tranquiliza os pais dizendo que eles receberão e-mails com destaques das conversas das crianças. É aí, no entanto, que as coisas ficam preocupantemente complicadas.
A política de privacidade da boneca ainda não foi divulgada, mas não consigo imaginar uma que me tranquilize sobre uma corporação ouvindo crianças brincar. Os pais que comprarem uma Hello Barbie estarão dando acesso à Mattel e à Toy Talk às atividades mais íntimas das crianças, além de conversas privadas da família. Será que os relatórios aos pais detalharão brigas entre irmãos, ou revelações de uma criança sobre a família que poderiam ser mal interpretadas? As crianças em privado às vezes encenam cenas violentas ou sexuais com suas bonecas que poderiam aborrecer ou preocupar alguns pais. Como será que a Mattel lidará com o informe desse tipo de conversa?
Brincadeiras de crianças são com frequência reveladoras de como elas experimentam o mundo, mas não são necessariamente uma descrição precisa dos fatos. O pior cenário são crianças confiando a bonecas que estão sendo abusadas, ou suas brincadeiras sugerirem que elas estão sendo maltratadas. O que a Mattel fará com essa informação? Professores e cuidadores que testemunham revelações desse tipo são profissionais treinados e obrigados a reportar suspeitas a serviços de proteção à infância. A Mattel e a Toy Talk farão isso? O pensamento de que crianças podem estar revelando que estão em perigo e a Mattel sabe e não faz nada é assustador. Igualmente assustadora é a possibilidade de que a Mattel ou alguma outra corporação tenham o poder de informar uma família com base na vigilância do que crianças dizem a uma boneca numa brincadeira ou numa representação incorreta de interações familiares.
Hello Barbie não é o primeiro brinquedo a incluir essa tecnologia, mas é a primeira megamarca a fazê-lo. Por enquanto, a IBM e outras companhias planejam lançar brinquedos similares. É por isso que a Campaign for a Commercial-Free Childhood (campanha por uma infância sem comerciais) está pedindo que Mattel e Toy Talk parem a produção de Hello Barbie. Até e a menos que políticas regulatórias incluam essas novas tecnologias de brinquedos vigilantes, o único freio disponível é uma discordância pública audível e visível. A julgar pela reação à cobertura da mídia da capacidade de bisbilhotice de Hello Barbie, pais de todo o mundo estão estarrecidos com o fato de fabricantes de brinquedos poderem escutar enquanto crianças expõem seus sentimentos mais íntimos a seus brinquedos. Só podemos esperar que Mattel, Toy Talk e outras companhias estejam ouvindo - e façam a coisa certa cancelando a produção de suas Hello Barbies bisbilhoteiras. 
/ TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
SUSAN LINN É DIRETORA EXECUTIVA DA CAMPAIGN FOR A COMMERCIAL-FREE CHILDHOOD

Império do meio


KENNETH SERBIN - O ESTADO DE S. PAULO
21 Março 2015 | 16h 00

Participação ativa da classe média pode contra-atacar perversão da combinação poder/dinheiro

As históricas manifestações do dia 15 contra a corrupção e o governo da presidente Dilma Rousseff sublinham a necessidade urgente de uma reforma do sistema político e de financiamentos de campanha, mas também indicam um forte desejo - não obstante a enorme pressão em cima da administração - de que não sejam adotadas ações apenas por adotar. Os protestos propiciaram uma oportunidade para se pensar numa potencial reforma num contexto histórico e internacional.
A proposta da presidente Dilma de punir a prática de doações de campanha ilegais, o chamado caixa 2, provavelmente será somente a primeira de muitas medidas para melhorar a situação. No moderno mundo capitalista é extremamente difícil regulamentar, sem falar em eliminar, a equação pela qual o dinheiro compra poder.
Cédulas: no Brasil ou nos EUA é extremamente difícil regular o financiamento de campanhas
Cédulas: no Brasil ou nos EUA é extremamente difícil regular o financiamento de campanhas
Nos EUA, acusações formais e críticas a autoridades públicas suspeitas de atividades financeiras ilegais são rigorosas. Em 17 de março Aaron Schock, congressista de 33 anos, republicano de Illinois, considerado estrela política em ascensão, renunciou depois de revelações sobre seu estilo de vida extravagante e alegações de uso abusivo de fundos públicos e dinheiro de campanha.
Mas a estrutura e a ideologia em geral do sistema dos EUA estimulam, não limitam, a influência do dinheiro na política. Além disso, lobistas, advogados e organizações políticas buscam constantemente lacunas nas leis sobre financiamento de campanha e entram com ações para conseguir modificações ou revogações de regulamentos.
Em abril de 2014, a Suprema Corte americana, por cinco votos a quatro, removeu os limites de contribuições para campanhas federais que datam da malfadada era Watergate. Os cidadãos hoje podem doar quanto desejarem. O que dá às pessoas ricas uma imensa influência.
Embora a minoria da Suprema Corte tenha afirmado que o veredicto “prejudica, talvez destrua, o que resta da reforma das normas sobre financiamento de campanha”, a maioria apoiou o direito à liberdade de expressão e “o direito a participar da eleição dos nossos líderes políticos”. A decisão acompanhou a decisão da Suprema Corte em 2010 permitindo que empresas fizessem doações políticas.
Como escrevi ironicamente num e-mail para alguns amigos brasileiros no dia seguinte às manifestações e depois de ler as últimas revelações chocantes sobre o Petrolão, “aqui (nos EUA) somos tão espertos que nem precisamos de caixa 2”.
É difícil imaginar que, após a aprovação de uma nova legislação, alguns operadores políticos brasileiros não vão procurar lacunas na lei. Como nos EUA, no Brasil existem visões conflitantes de democracia, de modo que é provável que a reforma seja revista regularmente. Outras comparações entre EUA e Brasil podem esclarecer alguns pontos das propostas de reforma.
Ao passo que os Estados Unidos deram mostra de uma estabilidade política formidável, o Brasil viu-se incapacitado devido às manipulações de duas eras ditatoriais. As propostas no sentido de uma reforma eleitoral abrangem um espectro que vai desde permitir que os partidos tenham maior controle na seleção dos vencedores até a ideia do “distritão”, em que um Estado inteiro se tornaria único distrito e os vencedores seriam escolhidos simplesmente com base no número de votos. Os EUA possuem diversos distritos em cada Estado e apenas um representante, o que gera, assim, uma maior responsabilidade.
O sistema tradicional de dois partidos nos EUA pode provocar impasses legislativos quando a oposição controla o Congresso. Isso limita o poder do governo, mas também impede a solução de problemas sérios. O sistema multipartidário do Brasil funciona com o “presidencialismo de coalizão”, considerado grande incentivo à corrupção.
Ao contrário de suas contrapartes brasileiras, os políticos americanos raramente mudam de partido. No Brasil o voto é obrigatório, mas não nos EUA.
Os EUA têm partidos fortes com grandes tradições, como a eliminação da escravidão por Lincoln e pelos republicanos e mais tarde o apoio dos democratas à luta pelos direitos civis. A ditadura amputou as tradições partidárias do Brasil.
Os EUA usam efetivamente as primárias, que desencorajam o desenvolvimento de terceiros partidos. As primárias no Brasil poderiam reduzir os efeitos negativos do presidencialismo de coalizão.
O Brasil tem o horário gratuito, que em teoria permitiria uma diversidade política, mas nem sempre é assim na prática. Nos EUA, todos os candidatos pagam pelo tempo que ocupam na TV, mais uma vez fortalecendo o poder do dinheiro, o que resulta, em vez de um claro debate de ideias, numa propaganda de ataques.
À primeira vista, as manifestações do dia 15 no Brasil pareciam ter uma participação maior da classe média do que os protestos de 2013 contra a Copa. Esse é um avanço positivo, refletindo a nova realidade do País, com uma sociedade de classe média majoritária. Sociedades grandes e estáveis necessitam de uma classe média forte. À medida que o Brasil se adapta a essa nova identidade - e a classe média declina nos EUA -, ambos os países precisam solucionar o problema da desigualdade que perdura em níveis inaceitavelmente altos. Fortalecer a classe média é fundamental. Aristóteles promoveu essa ideia há 2.400 anos, ao afirmar: a classe média não é arrogante como os ricos ou invejosa como os pobres. 
Como os brasileiros nas ruas demonstraram, a participação ativa da classe média pode contra-atacar as consequências perversas da combinação de poder e dinheiro. 
/ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
KENNETH SERBIN É PROFESSOR DE HISTÓRIA NA UNIVERSIDADE DE SAN DIEGO. ENTREVISTOU VÁRIAS VÍTIMAS DE TORTURA NO BRASIL