segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O freio de mão puxado que trava a economia brasileira: L. Dobwor

Ladilau Dowbor é professor titular do departamento de pós-graduação em economia e adminitração da PUC – São Paulo. Dutorou-se em Lausanne na Suiça e em Varsóvia na Polônia. É um conselheiro apreciado em muitas instituições nacionais e internacionais como a ONU. É autor de uns 40 livros e inumeráveis artigos. Dos livros ressalto “A formação do capialismo brasileiro”, Brasiliense 2010 e “Democracia econômica”Vozes 2008. Publico este artigo, por ser orientador em questões econômicas que tem a ver também com o cotidiano de nossas vidas. Não deixem de consultar seu artigo mais longo mas muito esclarecedor: Lboff
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Não se assuste por favor com alguns números, pois não são complicados. Trata-se mais ou menos das mesmas contas que fazemos em casa, só que alguns zeros a mais. Mas a lógica é a mesma, não há muito mistério.
O PIB do Brasil é, arredondando, de 5 trilhões de reais. O que significa que para aumentarmos o PIB em 1%, precisamos aumentá-lo em 50 bilhões. Como somos 200 milhões de brasileiros, isto significa que produzimos algo como 25 mil reais por ano por pessoa, cerca de 2.100 reais por mês. Ou seja, com o que produzimos hoje podemos viver com cerca de 8.400 reais por mês por família de 4 pessoas. Em outros termos, o que produzimos hoje dá para todos vivermos de maneira digna e confortável.
Por quê então tanta gente pobre? Naturalmente porque há uma imensa concentração de renda (o que ganhamos a cada ano), e de patrimônio (casa, carro, aplicações financeiras e outras formas de acumulação de riqueza). Basicamente, o 1% das famílias mais ricas detém dois terços da riqueza acumulada no país. E os 10% mais ricos recebem anualmente quase a metade da renda, que transformam em mais patrimônio. Este mecanismo gerador de desigualdade constitui o principal desafio que temos pela frente.
A partir de 2003, gerou-se uma política econômica inovadora, no sentido de um mecanismo bem comprovado na economia: ao se redistribuir a renda, aumentando os salários, os empregos formais, a cobertura da previdência, o acesso à eletricidade e generalizando o bolsa família para as faixas mais pobres, aumentou-se o consumo do andar de baixo da sociedade, o que por sua vez estimulou os produtores de bens e serviços, resultando numa dinâmica de desenvolvimento da economia e de geração de empregos. Quase 40 milhões de pessoas saíram da miséria. Melhor para a sociedade, melhor para a economia.
Mas o processo gerou os seus aproveitadores. Milhões de pessoas passaram a comprar, por exemplo, a sua primeira geladeira, a televisão e outros bens e serviços. Como passaram a ter mais renda, mas a partir de um patamar muito baixo, são pessoas que iriam comprar a prazo, buscando a prestação que “cabe no bolso”. Aproveitando a ocasião e o pouco conhecimento do mecanismo de juros por parte da população, grandes intermediários financeiros passaram a enxugar esta nova capacidade de compra, travando o processo.
Vejam o exemplo prático de uma casa que tem total dedicação a você: ao aplicar uma taxa de juros de 100%, apropriam-se de metade do valor da compra, sem ter produzido nada. Um produto que seria vendido a 600 reais a vista exige um desembolso efetivo, somando as prestações, de 1200 reais. Sem ter produzido nada, além de esperar o cliente e entregar o produto. A família compra pouco no total do ano, mas se endivida muito.
Estão facilitando? Sem dúvida, pois a família não teria como pagar a vista. Mas precisa cobrar 100%, ganhando muito mais inclusive de quem produziu o produto, o empresário produtor? Nada como comparar as coisas. A rede MediaMarkt que se estende por toda Europa, com produtos semelhantes ao exemplo brasileiro, cobra cerca de 13% ao ano numa compra a prazo. Ou seja, um produto de 600 euros, por exemplo, é vendido a prazo, em 18 meses, por um valor total de 699,38 euros, com 18 prestações de 38,85 euros. Arredondando, 700 euros, e não 1200. E estão ganhando bem. Os ganhos com juros dos crediários no Brasil estão gerando bilionários, mas absorvem a capacidade de compra da população, e travam a economia, pois nem a família pode comprar muito, nem o produtor pode investir mais.
Aqui, vimos os juros dos crediários. Se acrescentarmos o cartão de crédito (238% ao ano contra cerca de 16% ao ano nos EUA), o cheque especial na faixa de 160%, o crédito para pessoa física, o crédito para pessoa jurídica e outros números semelhantes, no conjunto temos uma imensa sangria da economia através dos juros, que a maioria das pessoas não entende. Inclusive, para confundir, apresenta-se o juro mensal porque as pessoas não sabem calcular o juro efetivo anual.
O resultado prático é que todo o esforço de se dinamizar a economia brasileira pela base, pelo consumo de massa, restabelecendo um mínimo de justiça econômica e social, está sendo travado pela captação, por intermediários que não produzem nada, mas enriquecem de maneira impressionante. Basta considerar que o crédito representa quase 60% do PIB no Brasil, para se ter ideia da dimensão do entrave.
E assim temos um PIB travado, mas uma taxa de emprego muito alta. Porque os brasileiros estão trabalhando muito, mas o resultado é drenado por intermediários financeiros que em vez de fomentar investimentos, aplicam na dívida pública, sendo remunerados pela taxa Selic, ou em paraísos fiscais no exterior, e neste caso não só não estão fomentando a economia, como se colocam ao abrigo dos impostos que deveriam pagar, como é o caso por exemplo do Itaú e do Bradesco com as suas contas em Luxemburgo.
Resumindo, trata-se aqui de um dos principais mecanismos econômicos, e que explica grande parte da redução da dinâmica econômica. Na versão da mídia, trata-se de um excesso de gastos do governo. Na versão real, trata-se da praga da financeirização da economia que está travando não só o Brasil como grande parte da economia mundial.
O texto anexo tem 10 páginas, não mata ninguém, não faz contas mais complicadas do que os que toda dona de casa faz para equilibrar o orçamento familiar. Como se trata do nosso dinheiro, das nossas contas públicas, e como temos de assegurar que o país funcione, da mesma forma com que tomamos conta do dinheiro da nossa família, é importante que você entenda o mecanismo. E passe a pressionar para que economia volte a funcionar de maneira equilibrada. Tem de ser bem remunerado quem contribui para a economia do país, e não quem vive cobrando pedágio sobre o trabalho dos outros.
A versão mais detalhada e técnica se encontra no seguinte blog:
Visitem também a rica “biblioteca científica virtual”, cujo link é http://dowbor.org
e-mail do autor: ldowbor@gmail.com

1% da população mundial detém 50% do PIB do planeta


JAMIL CHADE, CORRESPONDENTE NA SUÍÇA - O ESTADO DE S. PAULO
19 Janeiro 2015 | 07h 15

Elite já acumula riqueza equivalente a tudo o que os demais 99% das pessoas detêm

GENEBRA - A riqueza acumulada por 1% da população mundial será superior a tudo o que os demais possuem. Os dados foram apresentados nesta segunda-feira, 19, pela entidade Oxfam, às vésperas do Fórum Econômico Mundial de Davos e que justamente reúne a cúpula do planeta. 
Segundo a entidade, a fortuna de 99% da população mundial será equivalente a tudo o que acumula apenas a nata da sociedade, cerca de 1% do mundo. 
Para a entidade, a crise econômica mundial que começou em 2008 resultou em uma "explosão da desigualdade". Hoje, uma a cada nove pessoas ainda passa fome no planeta que produz alimentos para três planetas e mais de 1 bilhão de pessoas ganham menos de US$ 1,25 por dia.  
O que chama a atenção da entidade, porém, é que a concentração de riqueza é cada vez maior. Em 2009, a parcela de 1% mais rica da população mundial acumulava 44% do PIB do planeta. Em 2014, essa taxa chegou a 48% e, em 2016, ela atingirá 50%. 
Em média, cada pessoa dessa elite do planeta mantém uma renda de US$ 2,7 milhões. Dos demais 52% do PIB global, quase tudo está nas mãos da camada dos 20% mais ricos. 
O restante da população do mundo - cerca de 80% - precisa dividir 5,5% da riqueza do planeta e acumula uma renda de apenas US$ 3,8 mil. O valor é 700 vezes menor que a renda da elite.  
Winnie Byanyima, diretora-executiva da Oxfam, espera usar o encontro de Davos para insistir que a desigualdade social precisa ser alvo dos governos e de líderes do setor privado, alertando para os riscos que essa situação cria na política internacional.
Entre as medidas defendidas por ela está um maior rigor fiscal contra multinacionais e mesmo um acordo para o clima. "Queremos mesmo viver em um mundo onde 1% detém mais que todos nós juntos?"questionou. "A escala da desigualdade global é assustadora e, apesar do tema estar na agenda política, a diferença entre pobres e ricos apenas aumenta", atacou.
Segundo ela, líderes como Barack Obama e a gerente do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, de fato estão falando cada vez mais sobre o assunto. Mas a Oxfam alerta que pouco tem sido feito além de discursos.

Perdidos na noite


JOSÉ DE SOUZA MARTINS* - O ESTADO DE S.PAULO
10 Maio 2009 | 00h 59

O equívoco fundamental com o morador de rua é tratá-lo como morador de rua. Ele não é nem quer ser

QUARTA, 6 DE MAIO
Sufoco dos sem-banheiro
Chafarizes e fontes de São Paulo são utilizados como banheiro por moradores de rua, admite Andrea Matarazzo, secretário de Coordenação das Subprefeituras. Matarazzo diz que a Prefeitura recupera, mas as novas peças de bronze e cobre são logo roubadas.
Se os 15 mil moradores de rua da cidade de São Paulo vivessem em dois territórios contínuos, poderiam legalmente pleitear em plebiscito a criação de dois municípios. Com isso, elegeriam suas câmaras municipais e seus prefeitos, criariam uma rede de serviços públicos, escolas e hospitais, e suas administrações municipais receberiam recursos e subsídios do governo federal, como ocorre com cerca de 2 mil municípios brasileiros desse tamanho. Ou, se se proclamassem índios, poderiam ser tutelados pela Funai, seriam filhos putativos do governo brasileiro e poderiam ter suas reservas, como as têm os índios do Pico do Jaraguá e os de Santo Amaro dentro do município de São Paulo. Ou, se se juntassem ao MST teriam condições de acolhimento no programa de reforma agrária do governo federal, obteriam um pedaço de terra e financiamentos. Em vez de comer à custa alheia, alimentariam milhares de pessoas com saudáveis alimentos orgânicos.
Certamente, em qualquer das três hipóteses teriam suas condições de sobrevivência minimamente asseguradas. Em qualquer delas estariam livres da tutela de obsoletas doutrinas de assistência social, livres da ideologia mística e caritativa que os faz meros coitadinhos de Nosso Senhor e livres das organizações que, mesmo animadas por generoso devotamento ao próximo, têm neles, senão seu meio de vida, ao menos sua razão de ser. Carentes de território e até de espaço próprio, estão por isso mortos para a cidadania.
Estão, também, perdidos no meio da disputa de assistencialismos inócuos e de um debate de oposicionismos em que conta tudo, menos o drama de suas pessoas. É alarmante o fechamento dos albergues onde pudessem tomar um banho e dormir, em áreas próximas do centro da cidade, para forçá-los a migrar diariamente entre o centro e a periferia, onde estão os albergues noturnos, e diariamente fazer a migração de retorno ao centro da cidade, onde querem estar. É verdade que milhares de trabalhadores fazem essas migrações pendulares diariamente e ninguém fica com pena deles nem diz que seu distanciamento em relação ao centro é medida de higienização social.
Aliás, a utilização descabida desse rótulo, importado a olho da ideologia nazista relativa à limpeza étnica com que Hitler justificou o extermínio de judeus, é mero oposicionismo. Aqui é um trocadilho. Manter a cidade limpa, particularmente seu centro, é uma questão de civilidade. Não faz muitos anos, quando frequentava o centro da cidade aos sábados de manhã, via um caminhão-pipa da Prefeitura lavando a jatos de água a esplanada do Teatro Municipal, ao redor do monumento a Carlos Gomes, que durante a noite era transformada em privada de moradores de rua, tornando impossível o trânsito de pedestres por ali já nas primeiras horas da manhã, em meio a poças de urina e montes de fezes. É um absurdo que uma cidade do tamanho de São Paulo tenha apenas três sanitários públicos, que fecham à noite, um convite à transformação da rua em privada.
Mas as medidas para banir os moradores de rua do centro de fato não os distancia. Ao contrário, ampliam o tamanho do dormitório a céu aberto. Muitos vieram de longe, do interior e de outros Estados, porque o centro de São Paulo é o lugar da sobrevivência assegurada, de um modo ou de outro. Há alguns anos o pároco do Itaim tentou organizar um movimento para remoção de um lixão que havia na área. Teve forte reação contrária da população local, que queria a permanência do lixão, pois era seu meio de vida. No caso do centro, há uma generosa rede de solidariedade de donos de bares e restaurantes, há os poucos sanitários públicos durante o dia, sempre alguma esmola e mesmo alguma coisa aproveitável encontrada no rico lixo do centro.
Ao mesmo tempo, a transformação das praças e ruas do centro da cidade em sala de estar e dormitório dessa massa de desvalidos acaba conflitando com as funções sociais da rua e com os direitos legítimos dos transeuntes e dos usuários regulares da cidade. Reivindicar a permanência do morador de rua na rua, como se fosse um direito, que não é, e fosse alternativa legítima à política de assistência, com que supostamente é amparado, é tão absurdo quanto o é a coerção para que se desloque para a periferia. Porque tanto a rua quanto o albergue, ainda que por caminhos diferentes, são agências de dessocialização desse morador sem rumo, que, na anômala sociabilidade de um caso e de outro, perde a referência dos valores de sua integração social, cobre-se de estigmas que o discriminam e marginalizam e desanda para situações de desajustamento sem retorno.
O desconhecimento ou o insuficiente conhecimento das causas desse crescente número de pessoas lançadas à marginalização social extrema e dos perfis sabidamente diferençados dos que, com o tempo, acabam tendo a rua como lugar de morar, faz do morador de rua sujeito da vontade dos outros, mas não sujeito da própria vontade e da própria busca. O fundamental equívoco de ambos os lados é o de tratar o morador de rua como morador de rua, como sujeito social substantivo. Ele não o é nem quer ser. Ele é o que foi, o que era, não o que dizem que é. É nesse foi, antes de sua biografia ser colocada entre parênteses pelos fatores que o lançaram à rua, que está sua identidade, naquilo que perdeu, naquilo que tem sentido para ele e pode ter sentido para os outros. A ideologia que faz com que certas pessoas sejam tratadas como moradoras de rua, como seres irrelevantes e sem destino, impõe-lhes uma identidade na qual não se reconhecem nem devem reconhecer-se. Porque esse reconhecimento implicaria em renunciar à condição humana à qual querem retornar porque nunca aceitaram sua perda. Na prática as duas orientações opostas lesam os direitos de todos, confinando não só o morador de rua, o que seria um absurdo, mas confinando o cidadão comum ao proibir-lhe na prática o acesso aos espaços ocupados impropriamente por aqueles que já não tem onde reclinar a cabeça.
*Professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
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