JOSÉ DE SOUZA MARTINS* - O ESTADO DE S.PAULO
10 Maio 2009 | 00h 59
O equívoco fundamental com o morador de rua é tratá-lo como morador de rua. Ele não é nem quer ser
QUARTA, 6 DE MAIO
Sufoco dos sem-banheiro
Chafarizes e fontes de São Paulo são utilizados como banheiro por moradores de rua, admite Andrea Matarazzo, secretário de Coordenação das Subprefeituras. Matarazzo diz que a Prefeitura recupera, mas as novas peças de bronze e cobre são logo roubadas.
Se os 15 mil moradores de rua da cidade de São Paulo vivessem em dois territórios contínuos, poderiam legalmente pleitear em plebiscito a criação de dois municípios. Com isso, elegeriam suas câmaras municipais e seus prefeitos, criariam uma rede de serviços públicos, escolas e hospitais, e suas administrações municipais receberiam recursos e subsídios do governo federal, como ocorre com cerca de 2 mil municípios brasileiros desse tamanho. Ou, se se proclamassem índios, poderiam ser tutelados pela Funai, seriam filhos putativos do governo brasileiro e poderiam ter suas reservas, como as têm os índios do Pico do Jaraguá e os de Santo Amaro dentro do município de São Paulo. Ou, se se juntassem ao MST teriam condições de acolhimento no programa de reforma agrária do governo federal, obteriam um pedaço de terra e financiamentos. Em vez de comer à custa alheia, alimentariam milhares de pessoas com saudáveis alimentos orgânicos.
Certamente, em qualquer das três hipóteses teriam suas condições de sobrevivência minimamente asseguradas. Em qualquer delas estariam livres da tutela de obsoletas doutrinas de assistência social, livres da ideologia mística e caritativa que os faz meros coitadinhos de Nosso Senhor e livres das organizações que, mesmo animadas por generoso devotamento ao próximo, têm neles, senão seu meio de vida, ao menos sua razão de ser. Carentes de território e até de espaço próprio, estão por isso mortos para a cidadania.
Estão, também, perdidos no meio da disputa de assistencialismos inócuos e de um debate de oposicionismos em que conta tudo, menos o drama de suas pessoas. É alarmante o fechamento dos albergues onde pudessem tomar um banho e dormir, em áreas próximas do centro da cidade, para forçá-los a migrar diariamente entre o centro e a periferia, onde estão os albergues noturnos, e diariamente fazer a migração de retorno ao centro da cidade, onde querem estar. É verdade que milhares de trabalhadores fazem essas migrações pendulares diariamente e ninguém fica com pena deles nem diz que seu distanciamento em relação ao centro é medida de higienização social.
Aliás, a utilização descabida desse rótulo, importado a olho da ideologia nazista relativa à limpeza étnica com que Hitler justificou o extermínio de judeus, é mero oposicionismo. Aqui é um trocadilho. Manter a cidade limpa, particularmente seu centro, é uma questão de civilidade. Não faz muitos anos, quando frequentava o centro da cidade aos sábados de manhã, via um caminhão-pipa da Prefeitura lavando a jatos de água a esplanada do Teatro Municipal, ao redor do monumento a Carlos Gomes, que durante a noite era transformada em privada de moradores de rua, tornando impossível o trânsito de pedestres por ali já nas primeiras horas da manhã, em meio a poças de urina e montes de fezes. É um absurdo que uma cidade do tamanho de São Paulo tenha apenas três sanitários públicos, que fecham à noite, um convite à transformação da rua em privada.
Mas as medidas para banir os moradores de rua do centro de fato não os distancia. Ao contrário, ampliam o tamanho do dormitório a céu aberto. Muitos vieram de longe, do interior e de outros Estados, porque o centro de São Paulo é o lugar da sobrevivência assegurada, de um modo ou de outro. Há alguns anos o pároco do Itaim tentou organizar um movimento para remoção de um lixão que havia na área. Teve forte reação contrária da população local, que queria a permanência do lixão, pois era seu meio de vida. No caso do centro, há uma generosa rede de solidariedade de donos de bares e restaurantes, há os poucos sanitários públicos durante o dia, sempre alguma esmola e mesmo alguma coisa aproveitável encontrada no rico lixo do centro.
Ao mesmo tempo, a transformação das praças e ruas do centro da cidade em sala de estar e dormitório dessa massa de desvalidos acaba conflitando com as funções sociais da rua e com os direitos legítimos dos transeuntes e dos usuários regulares da cidade. Reivindicar a permanência do morador de rua na rua, como se fosse um direito, que não é, e fosse alternativa legítima à política de assistência, com que supostamente é amparado, é tão absurdo quanto o é a coerção para que se desloque para a periferia. Porque tanto a rua quanto o albergue, ainda que por caminhos diferentes, são agências de dessocialização desse morador sem rumo, que, na anômala sociabilidade de um caso e de outro, perde a referência dos valores de sua integração social, cobre-se de estigmas que o discriminam e marginalizam e desanda para situações de desajustamento sem retorno.
O desconhecimento ou o insuficiente conhecimento das causas desse crescente número de pessoas lançadas à marginalização social extrema e dos perfis sabidamente diferençados dos que, com o tempo, acabam tendo a rua como lugar de morar, faz do morador de rua sujeito da vontade dos outros, mas não sujeito da própria vontade e da própria busca. O fundamental equívoco de ambos os lados é o de tratar o morador de rua como morador de rua, como sujeito social substantivo. Ele não o é nem quer ser. Ele é o que foi, o que era, não o que dizem que é. É nesse foi, antes de sua biografia ser colocada entre parênteses pelos fatores que o lançaram à rua, que está sua identidade, naquilo que perdeu, naquilo que tem sentido para ele e pode ter sentido para os outros. A ideologia que faz com que certas pessoas sejam tratadas como moradoras de rua, como seres irrelevantes e sem destino, impõe-lhes uma identidade na qual não se reconhecem nem devem reconhecer-se. Porque esse reconhecimento implicaria em renunciar à condição humana à qual querem retornar porque nunca aceitaram sua perda. Na prática as duas orientações opostas lesam os direitos de todos, confinando não só o morador de rua, o que seria um absurdo, mas confinando o cidadão comum ao proibir-lhe na prática o acesso aos espaços ocupados impropriamente por aqueles que já não tem onde reclinar a cabeça.
*Professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
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