segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Dar cabo, por Antonio Prata


14/12/2014  02h00
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Aos oito anos de idade, descobri que o ser humano não prestava. Estava no banco de trás do carro, descendo a 23 de Maio, li "Abaixo a ditadura!" num muro e perguntei pro meu pai o que significava aquilo. Meu pai, cuja particularíssima pedagogia baseava-se no princípio de que as crianças deviam ser tratadas como os adultos, sem filtros, me deu uma resposta bem detalhada.

Meia hora mais tarde, tendo passado pelos porões do Doi-Codi, pelo pau de arara, pela coroa de Cristo, pela cadeira do dragão e por minha prima Julieta, aos 20 anos, sendo violentada com um cabo de vassoura e um fio desencapado na ponta, cheguei, lívido, em casa.

Durante a ditadura, milhares de brasileiros sofreram horrores semelhantes aos da minha prima. Centenas não sobreviveram. O relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado na última quarta (10), traz o assunto novamente à tona. Felizmente, pois apesar de essas histórias serem há muito conhecidas e documentadas, apesar de boa parte de seus responsáveis estarem vivos, há quem ache que o melhor é deixar tudo pra trás.

"Eram outros tempos", "O mundo estava polarizado", dizem os que querem minimizar cabos de vassoura com fios desencapados. Verdade, o mundo estava polarizado, e o Brasil também, mas o embate ocorria dentro do campo democrático. Então veio o golpe de 64 e aqueles que temiam por aqui uma improvável Cuba de Fidel nos impuseram a certeza de uma Nicarágua dos Somoza, um Haiti de Papa e Baby Doc, uma República Dominicana de Trujillo.

"Ninguém ali era santo", "A luta armada não queria restituir a democracia, mas instalar uma ditadura de esquerda", dizem os que acham compreensível deixar um ser humano pendurado a noite inteira de cabeça para baixo, nu.

Não vamos entrar no mérito de que muitos dos mortos e torturados sequer estavam na luta armada. Não vamos entrar no mérito de que um golpe militar tende a radicalizar um pouco a postura da oposição. Apenas aceitemos, hipoteticamente, que todos os torturados e mortos quisessem, de fato, instituir uma ditadura de esquerda. Mais ainda: aceitemos, hipoteticamente, que eles quisessem matar todas as criancinhas brasileiras e comê-las com farinha. Ainda assim, o Estado que os torturasse ou os matasse estaria cometendo um crime.

O Estado detém o monopólio do uso da violência justamente para garantir a lei: não pode agir ao largo dela.

"Revanchismo" é o termo que vem sendo usado contra os que desejam ver punidas as violações dos direitos humanos durante a ditadura. Ora, se você é assaltado e quer ver o bandido na cadeia, está sendo "revanchista"? Se você tem um pai, uma filha ou um irmão morto e quer ver os assassinos na cadeia, está sendo "revanchista"?

Pois por 21 anos o Estado brasileiro assaltou, assassinou e violou os direitos de seus cidadãos: com Atos Institucionais, com mentiras, com cabos de vassoura e fios desencapados. Cabe a ele reconhecer seus crimes e prender os responsáveis. Do contrário, estará não só desrespeitando a todos os que sofreram a sua barbárie, mas, pior, estimulando as torturas e assassinatos que seguem acontecendo Brasil afora, todo dia, pelas mãos da polícia.

Os anos de chumbo não são águas passadas: continuam a mover nossos moinhos de moer gente.

Livraria da Folha

Pelo menos um quarto do lixo retirado das grandes obras é reaproveitado (não lido)

IO - Com mais de R$ 35 bilhões em obras sendo executadas ou prestes a começar na cidade, um desafio surgiu nos canteiros. O que fazer com as toneladas de entulho produzidas? Afinal, segundo levantamento feito pelo GLOBO, entre 2010 e 2016 serão pelo menos 9,5 milhões de toneladas de resíduos. Mas, em muitos empreendimentos, o que poderia ser um problema acabou representando economia de dinheiro, menos caminhões circulando pelas ruas em direção aos aterros, além de redução do consumo de matéria-prima. Pelo menos 25% desse material (2,2 milhões de toneladas) estão sendo ou já foram reaproveitados.
Apenas nas obras do Porto Maravilha estão sendo geradas quase um milhão de toneladas de detritos e pedras com as escavações do Túnel Rio 450 Anos, previsto para ser aberto em 2015. Desse total, 66% estão sendo reaproveitados. Um depósito provisório para guardar o entulho foi instalado num terreno da Radial Oeste, no Maracanã, onde o material é reciclado.
— O entulho é transformado em pedra e brita numa usina de reciclagem que implantamos próximo ao Terminal Rodoviário Henrique Lott (perto da Rodoviária). Todas as ruas que já foram pavimentadas ou estão em obras receberam material reciclado. Isso inclui a Via Binário — explicou o presidente do Consórcio Porto Novo, José Renato Ponte.
No caso das vigas da Perimetral, boa parte foi vendida pela prefeitura. Mas algumas foram reaproveitadas nas fundações do Centro de Controle Operacional (em construção), que vai monitorar as operações do Túnel 450 anos.
No futuro Parque Olímpico, na Barra, o Consórcio Rio Mais, que executa as obras numa parceria público-privada, está reaproveitando o entulho gerado pela retirada de toneladas de concreto do antigo Autódromo Nelson Piquet. Conforme a qualidade do material, ele pode ser aplicado como aterro, na construção de meios-fios ou na base da futura pavimentação.
BRTs SUSTENTÁVEIS
Na implantação dos BRTs, estão sendo reaproveitadas 1,2 milhão de toneladas de detritos. No caso do Transolímpico (Barra-Deodoro), até os escombros de casas de luxo demolidas para a passagem do corredor estão sendo reaproveitados em pavimentação.
— Temos procurado usar bastante material reciclado em obras públicas. Isso alivia a exploração mineral, principalmente saibreiras e pedreiras, e os aterros sanitários que recebem esse tipo de material. Isso gera uma economia que é utilizada em outras obras — explicou o secretário municipal de Obras, Alexandre Pinto.
O presidente da Associação Brasileira para Reciclagem de Resíduos da Construção Civil e Demolição, Hewerton Bartoli, explica que o reaproveitamento de entulho é uma estratégia que começou a ser aplicada com mais intensidade há apenas dez anos no Brasil. Mas muitas empresas já se sentem estimuladas em implantar políticas de reaproveitamento em busca de obter certificações internacionais que qualificam as obras como sustentáveis, valorizando o produto.
‘Numa feira em Xangai, vimos que esses materiais têm sido aproveitados na construção de casas populares. O entulho também poderia ser reaproveitado em unidades do Minha Casa Minha Vida’
- ROBERTO KAUFFMANNpresidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscom)
Ele cita como exemplo o projeto do condomínio Ilha Pura, na Barra, que, durante os Jogos, servirá de hospedagem para os atletas. O especialista, que atuou como consultor do projeto, contou que 10 mil metros cúbicos de resíduos de concreto decorrentes da construção dos 33 prédios foram reciclados no próprio canteiro. Segundo ele, descontadas as despesas com o projeto, o reaproveitamento permitiu uma economia de cerca de R$ 1 milhão em deslocamentos de caminhão a aterros sanitários e aquisição de matérias-primas:
— Rio e São Paulo estão na vanguarda desse processo. Embora São Paulo conte com mais usinas, o Rio é um polo importante pela quantidade de obras.
Pela legislação atual, o entulho só pode ser usado por uma empresa no mesmo canteiro de obras. Quando isso não é possível, o material é encaminhado para depósitos e fica à disposição da União para reaproveitamento em outros empreendimentos. É o que está acontecendo, por exemplo, nas obras da Linha 4 do metrô (Barra-Ipanema), responsável pela geração de 42% do entulho das grandes obras (4 milhões de toneladas), e dos piscinões contra enchentes na Grande Tijuca.
Para o presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscom), Roberto Kauffmann, iniciativas sustentáveis podem ajudar a reduzir ainda mais o entulho gerado por obras. Ele diz que um projeto de autoria do deputado Carlos Minc (PT), aprovado pela Alerj na semana passada, prevê a isenção de ICMS para produtos fabricados a partir de restos de entulho e poderá ajudar a viabilizar financeiramente um projeto dos empresários:
— Numa feira em Xangai, vimos que esses materiais têm sido aproveitados na construção de casas populares. O entulho também poderia ser reaproveitado em unidades do Minha Casa Minha Vida. Isso e a isenção fiscal ajudariam a reduzir os custos dos projeto.
Investidores privados cada vez mais se interessam pelo negócio. A empresa especializada em demolições Fábio Bruno, que fez a demolição e a reciclagem dos detritos da antiga Fábrica da Brahma no próprio canteiro de obras, na Praça Onze, em 2010, aposta no reaproveitamento dos resíduos de obras. A empresa inaugurou, no fim do ano passado, uma central de reciclagem de entulho, em Inhaúma, na Zona Norte, em parceria com a Lafarge. Empresários pagam cerca de R$ 10 por metro cúbico para deixar o material na central, que é reciclado e revendido. Algumas demolições da própria empresa também são recicladas ali.
— Estamos reciclando 10 mil metros cúbicos por mês e queremos dobrar até 2015. O negócio não é fácil, mas a demanda vem aumentando mês a mês. Por enquanto não dá retorno, mas a gente acha que no futuro vai ser um bom negócio — contou o dono da empresa, Fábio Bruno.
A secretaria municipal do Meio Ambiente diz incentivar o uso de matérias-primas recicladas. Desde 2011, intervenções da prefeitura são obrigadas a usar material reciclado no próprio canteiro. Além disso, obras particulares que precisam de licenciamento ambiental também são obrigadas a reaproveitar os detritos.
‘A RECICLAGEM É UM NEGÓCIO’
O presidente da Comissão de Materiais do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado do Rio (Sinduscon-Rio), Lydio Bandeira de Mello, elogia os incentivos:
‘Reciclagem é um negócio e precisa ter mercado. Ainda não está na cultura das empresas, a maior parte não recicla’
- LYDIO BANDEIRA DE MELLOpresidente da Comissão de Materiais do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado do Rio (Sinduscon-Rio)
— Quando obras do município privilegiam materiais reciclados, você está incentivando empresas a entrarem nesse ramo, criando demanda. Esse é o ponto: reciclagem é um negócio e precisa ter mercado. Ainda não está na cultura das empresas, a maior parte não recicla. De cinco anos para cá, em obras que geram muito entulho, como implosões, algumas empresas começaram a reciclar no próprio canteiro de obras.
Já o presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-RJ), Agostinho Guerreiro, afirma que a reciclagem de resíduos da construção civil é uma tendência mundial e que, no Rio, a prefeitura poderia incentivar ainda mais a prática:
— O incentivo está sendo feito e caminha em boa direção, mas é preciso caminhar mais rápido. É preciso ter uma política pública que seja transparente, para que todas as empresas conheçam. Isso é o ponto que está faltando.


Bolsonaros não existem por acaso


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À luz do bom senso mais prosaico, nenhum argumento contra a revisão da Lei da Anistia fica em pé. O mais utilizado: a lei prega o esquecimento e se aplica "aos dois lados".
A Lei da Anistia foi aprovada em plena vigência do regime militar. Só havia dois partidos autorizados a funcionar: Arena e MDB. Um terço dos senadores era biônico, indicado pelo regime na engenharia do pacote de abril de 1977. Em votação apertada, 206 a 201 votos no Congresso, os generais e o alto empresariado que os sustentava obrigaram um parlamento castrado a engolir a absolvição dos algozes. Chamar isso de acordo é abusar da estupidez alheia. O maior interesse do texto sempre foi inocentar facínoras e seus mandantes, que se deleitavam com a barbárie cometida nas câmaras de tortura.
Ah, mas os mortos vítimas dos "terroristas"? A tentativa de simetria peca por todos os lados. Nunca se pode, pelo menos do ponto de vista da democracia, colocar no mesmo plano o poder de Estado e o de seus opositores —até por serem absolutamente desiguais. Claro que isso não alivia a perda de familiares, seja de que lado for. Mas omite-se o importante: os oposicionistas daquela época foram "julgados" e presos -na melhor das hipóteses. Outros tantos simplesmente desapareceram do mapa, nos porões militares, nos combates forjados ou executados a sangue frio. Foram mais do que "punidos".
Já o batalhão de choque do regime, do Planalto à rua Tutoia, pretendeu escapar ileso com a lei 6683/79. Tenta até hoje, com a ajuda de um Supremo Tribunal Federal cujos veredictos são para lá de controversos. Nada disso esconde a hipocrisia do enredo, e a vergonha de o Brasil ser o único país do continente a avalizar práticas de torturas.
"Ah, mas isso é remexer no passado; com todo respeito aos mortos, vamos cuidar dos vivos." Ocorre que é justamente pelos vivos que se defende a punição de quem institucionalizou a tortura. Por trás das humilhações cometidas cotidianamente contra acusados nas delegacias, inocentes ou culpados, está a jurisprudência de que maus tratos fazem parte do dia a dia policial. A certeza da impunidade de quem maltrata em nome do Estado sobrevive "em nome da lei".
Pode-se até entender que muitas iniciativas políticas dependam da chamada "relação de forças". É o jogo democrático. Preocupa perceber, no entanto, que a democracia esteja sendo usada para defender a barbárie. É inaceitável, por exemplo, que chefes militares simplesmente se recusem a liberar documentos e informações sobre a violência nos quartéis. E nada acontece. Pense num ministro refratário a fornecer dados sobre tal ou qual projeto. Num país civilizado, o cidadão seria imediatamente demitido.
Aqui, não. Os militares, constitucionalmente submetidos ao poder civil no papel, pintam e bordam. Pior: a presidente da República, chefe deles, não dá um pio. O mínimo a esperar era que, diante de um relatório como o da Comissão da Verdade, a presidente repudiasse publicamente os responsáveis pelos anos de chumbo. Em nome das Forças Armadas. Isto mesmo. Militar que não gostasse teria de se submeter, ou então vestir o pijama —para dizer o mínimo.
As concessões diante de um passado abominável têm alto preço no presente e no futuro. O deputado Bolsonaro está aí para provar. Por muito menos, por se deixar fotografar de cueca, um deputado certa vez teve o seu mandato cassado. Bolsonaro idolatra o estupro, ofende colegas e faz pouco dos direitos humanos sempre que pode. Um bandido. Seus herdeiros seguem pelo mesmo caminho, clamando pela intervenção militar. Num belo dia, a história pede licença para se repetir. 
ricardo melo
Ricardo Melo, 59, é jornalista. Na Folha, foi editor de 'Opinião', editor da 'Primeira Página', editor-adjunto de 'Mundo', secretário-assistente de Redação e produtor-executivo do 'TV Folha', entre outras funções. Também foi chefe de Redação do SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), editor-chefe do 'Diário de S. Paulo', do 'Jornal da Band' e do 'Jornal da Globo'. Na juventude, foi um dos principais dirigentes do movimento estudantil 'Liberdade e Luta' ('Libelu'), de orientação trotskista.