segunda-feira, 5 de maio de 2014

O financiamento da educação


05 de maio de 2014 | 2h 05

O Estado de S.Paulo
A Comissão Especial da Câmara finalmente aprovou o texto-base do Plano Nacional da Educação (PNE), que define 10 diretrizes, 20 metas e 253 estratégias para a educação no período de 2011 a 2020. Elaborado no governo Lula, o projeto foi enviado para o Congresso com enorme atraso, em dezembro de 2010.
Além da morosidade com que tramita, o PNE tem problemas graves. Em vez de ter sido elaborado por pedagogos de competência reconhecida a partir de um diagnóstico preciso dos gargalos do sistema educacional, o projeto foi redigido com base em reivindicações de entidades de docentes e estudantes e de propostas de movimentos sociais. Outro problema é o enviesamento político, já que o PNE foi preparado com o objetivo de projetar o então ministro Fernando Haddad para disputar eleições.
O problema mais importante, no entanto, é o dispositivo que obriga o poder público a destinar 10% do PIB para o ensino público. Atualmente, o País gasta 5,4% do PIB com a rede pública de ensino básico, médio, técnico e superior - o que está na média dos países desenvolvidos. Em 2003, o gasto era de 3,9% do PIB, tendo passado para 4,3%, em 2007.
Quando anunciou o PNE, Haddad propôs que o gasto do poder público em educação aumentasse para 7% do PIB, até 2020. Sindicatos de docentes, entidades de estudantes e movimentos sociais pleitearam 7,5% e o governo cedeu. O aumento de 0,5% do PIB no orçamento do ensino público representa R$ 25 bilhões a mais em investimentos em educação.
As pressões, contudo, não amainaram. Invocando a necessidade de financiar o regime de tempo integral nas escolas públicas, vários deputados vinculados a sindicatos de professores propuseram o patamar de 8%. O governo tentou derrubar a proposta, que não tinha qualquer fundamento técnico, mas foi derrotado. Além disso, a pretexto de igualar o rendimento médio dos docentes do ensino básico com o dos professores dos demais níveis de ensino, um deputado da base aliada apresentou emenda fixando em 10% o gasto mínimo do poder público em educação e ela foi aprovada pela Comissão Especial em clima de assembleia estudantil.
Em seguida, os deputados discutiram o que pode ser contabilizado como gasto em educação e autorizaram a inclusão, no cálculo, de gastos com instituições privadas, como ocorre no programa Ciência Sem Fronteiras, no Programa Universidade para Todos (ProUni) e no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). As associações de professores, entidades estudantis e movimentos sociais defendiam que os 10% do PIB fossem aplicados exclusivamente em escolas públicas.
O texto aprovado pela Comissão Especial não prevê punição, caso o poder público não cumpra o piso de 10% - o que certamente levará as corporações do setor a se mobilizarem para pressionar a União, os Estados e os municípios, criando crises políticas e tumultuando o ambiente escolar. Esses problemas poderiam ter sido evitados caso os autores do PNE não tivessem deslocado o foco da discussão para questões orçamentárias. Na realidade, o problema da má qualidade da educação pública não é de escassez de recursos, mas de gestão inepta e perdulária. Em 2013, por exemplo, a Controladoria-Geral da União (CGU) descobriu graves problemas no Fundeb, com desvio de dinheiro para financiamento de campanhas eleitorais e compra de chácaras e gado por prefeitos. A CGU também alertou que os controles da aplicação dos recursos são frágeis.
Além dos problemas de incompetência gerencial e descontrole nos gastos com ensino público, a aprovação do piso de 10% do PIB para o setor reduzirá ainda mais os recursos orçamentários de que a União, os Estados e municípios dispõem para investir em outras áreas, como saúde, transportes, segurança e moradia. Caso aprove esse dispositivo absurdo na votação de plenário, curvando-se a pressões políticas e corporativas, o Congresso desorganizará ainda mais as finanças públicas, sem qualquer garantia de melhora na qualidade do sistema educacional do País.

sábado, 3 de maio de 2014

No mesmo plano da festa, por Cacá Diegues

Cacá Diegues


Selfies são privatização da experiência pública, valorização do privado sobre a pressão dos padrões coletivos

Li no GLOBO que o filosófo americano Dan Dennett, responsável por respeitáveis teorias sobre a evolução, está anunciando que a queda da rede mundial é questão de tempo e que, quando isso acontecer, a humanidade entrará em pânico e voltará à Idade da Pedra. Segundo ele, antes da internet havia mais clubes sociais, congregações, organizações de grupos, igrejas de toda espécie, o que aproximava núcleos de seres humanos para se protegerem uns aos outros.
Para início de conversa, devo confessar que não sou um grande consumidor de tecnologia em geral. Não que eu a subestime, ela é que me superestima — embora costume usar os aparelhos a nosso alcance, não tiro proveito de metade dos serviços e benfeitorias que me são oferecidos por meus computador, smartphone, iPad.
Esse desacerto com a tecnologia não significa desaprovação. Pelo contrário, me fascino e me emociono com o mundo que há de vir por aí através dela. Cada vez que meus netos (entre 8 e 12 anos de idade) me demonstram sua habilidade instintiva com a tecnologia, superando-me em larga escala no uso produtivo de artefatos eletrônicos e digitais, sinto-me a assistir um trailer do que será o futuro. A internet, que é para mim uma curiosidade próxima do milagre, é para eles o que foi a nossa cartilha. Ela é o abecedário de sua geração.
Outro dia, meu neto mais moço perguntou à mãe se era necessário casar para ter filhos. Embaraçada, minha nora respondeu que não sabia. Ele retrucou: “Então guga aí.” Até a minha geração, o mistério cuja resposta ele julga (ou sabe) encontrar-se no Google só podia ser decifrado bem depois, quando chegasse a adolescência ou até a maturidade.
Ao contrário do que afirmam os pessimistas, a geração de meus netos deverá ser mais sábia do que as que os antecederam. Não sei se o Google um dia vai nos ajudar a resolver nossas angústias de vida, nossas relações precárias conosco mesmos e com os outros. Mas não há dúvida de que ele pode vir a nos explicar muita coisa sobre nós, desvendar melhor o que nos disse gente como Freud ou Jung, Marx ou Sartre. E tudo à distância de um dedo.
Já ouvi muita gente condenar os selfies, aquelas autofotos tiradas com celular, como se fossem uma degradação humana, um empobrecimento da experiência pessoal. Ou seja, ninguém tem nada a ver com o gatinho da moça, que ela fotografa e posta no Facebook. Assim como é ridículo fotografar-se com a Torre Eiffel ao fundo, quando o fundamental seria curtir o monumento.
Não concordo com essa ira contra os selfies. Eles são uma privatização da experiência pública, uma valorização do privado sobre a pressão dos padrões coletivos. Um dia, alguém terá a iluminada ideia de fazer selfies de sua própria morte, desvendando o último mistério.
E depois, acho bonito que não se precise mais pedir autográfos, que se possa eternizar a presença do ídolo em nossas vidas com um clicar de celular multifuncional. Henri Bergson, o grande filósofo da primeira metade do século 20, ao ver o primeiro filme em sua vida, não se interessou pela arte cinematográfica. Ele disse simplesmente que agora as pessoas no futuro iam saber como se moviam as pessoas no passado.
Como tudo no mundo, o celular também pode incomodar, numa sala de cinema, no restaurante em que casais mal se falam, nas reuniões corporativas, na conversa entre amigos. Conheço alguém que diz que o celular é um instrumento que aproxima os que estão longe e afasta os que estão próximos.
O que mais me incomoda na rede em geral é o crescente desprestígio do corpo. Desde os anos 1960, a humanidade vem fazendo uma revolução de descolonização do corpo, a vítima de uma repressão moral que nos fez tanto mal no passado. Agora, com a internet, o corpo está sendo exilado, é capaz de daqui a pouco não termos mais necessidade dele. Uma pena.
Mas a internet poderá intervir em breve na própria democracia, expandindo-a e fortalecendo-a. A crise de representatividade em que vivemos hoje (por lógica de interesses, burocracia, esperteza, corrupção) poderá vir a ser superada pelos diversos usos da rede, promovendo uma espécie de democracia digital com a participação de todos. Através dela, nós mesmos nos representaremos nas instâncias de poder.
Isso poderá ser o fim ou pelo menos a decadência do que o filósofo Michael Sandel, professor em Harvard, chama de “camarotização” da sociedade, esse modo de vida representado por camarotes e currais VIPs em eventos, estádios, espetáculos. O poder público também está “camarotizado” e a internet pode ser um bom e eficiente instrumento para devolver-nos todos ao mesmo plano da festa.
Ao contrário do que pensa o professor Dannett, a internet e seu futuro (quem sabe qual será?) poderá nos ajudar a nos compreendermos melhor, a sermos mais justos e solidários em nossas individualidades.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/no-mesmo-plano-da-festa-12370672#ixzz30gRVFz3M 
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Social, não étnico - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 03/05
Cotas raciais perdem força nos Estados Unidos, mas ganham no Brasil, onde o problema no fundo é a má qualidade do ensino básico
Decisão recente da Suprema Corte americana validou o referendo no qual os eleitores de Michigan baniram, em 2006, o critério racial na admissão às universidades públicas daquele Estado.
Ganha ímpeto, assim, um processo de reversão histórica no próprio país onde as políticas de compensação racial surgiram, há meio século. Outros sete Estados também vedaram o critério racial, e a lista deve aumentar com a deliberação da Suprema Corte.

Nos Estados Unidos, a maioria branca expressa seu inconformismo com a contra-discriminação imposta pelas cotas raciais. No Brasil, a profunda miscigenação --um fato demográfico-- impõe objeções de outra ordem a essa política compensatória.

Pois seria difícil contestar a conveniência de alguma política compensatória, que acelere a correção da enorme distância competitiva numa sociedade tão desigual como a brasileira.

Mas tal exceção à prevalência do mérito deve ser provisória, enquanto não melhora a qualidade do ensino público oferecido a crianças e adolescentes. E deveria obedecer a critérios sociais, beneficiando egressos das escolas públicas ou alunos com menor renda familiar.

O critério racial introduz um fator politicamente explosivo, além de duvidoso em si, propício a estigmas e mistificações emocionais.

Ao contrário dos Estados Unidos, onde sua aplicação prática parece viável, num país como o Brasil, onde metade da população não é "branca" nem "negra", tal critério cria problemas, em vez de resolvê-los. Como coibir fraudes, por exemplo, se não estabelecendo odiosos tribunais raciais?

Desde 2012, vigora a Lei das Cotas, que estipula critérios mistos, sociais e raciais, para preencher metade das vagas oferecidas pelas universidades federais. Tramita no Senado projeto do governo que reserva 20% das vagas nos concursos federais a afrodescendentes. Leis semelhantes já vigem em diversos Estados e municípios.

A aspiração de mitigar a desigualdade de acesso a melhores condições de vida é legítima, como reconheceu o Supremo tribunal Federal quando decidiu que as cotas não violam o princípio constitucional da igualdade perante a lei.

Mas exceções ao princípio do mérito tendem a prejudicar o desempenho das instituições que as praticam. Implicam alguma injustiça; no caso das cotas raciais, "brancos" pobres são especialmente lesados.

Cotas sociais compensam os estratos étnicos discriminados, na medida em que eles se concentram nas faixas de renda menor. Mas são ações paliativas, enquanto não se enfrenta o problema maior, que é a má qualidade do ensino público fundamental.