sábado, 5 de outubro de 2013

Mais de 50 tons de cinza


15 de setembro de 2013 | 2h 15

CARLOS MELO, CARLOS MELO É CIENTISTA POLÍTICO , E PROFESSOR DO INSPER - O Estado de S.Paulo
Não sejamos ingênuos: é claro que entre Justiça e política há vários tons de cinza. Quanto mais o País se aperfeiçoa, essa confusão diminui. Mas ainda não chegamos lá. Política envolve paixões, interesses e projetos de poder. A Justiça deveria frear, conter as paixões, limitar interesses ao legal e ao legítimo. Política é conflito na perspectiva de construir consensos, que viram lei, pactos consignados. Lei é a expressão da política. Juízes aplicam as leis de acordo com o espírito que as embalaram. Natural que haja fricção entre esses poderes, mas, cada um na sua esfera, o normal é que acertem o passo.
Não tem sido assim, porém. Não é muito simpático admitir, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem assumido posição de proa na representação dos anseios políticos de parte da população e isso abre espaço para confusão desses tons de cinza. Assim, do julgamento da Ação Penal 470, o mensalão, passou-se a esperar o resgate de uma pretensa cidadania que deveria vir pelas mãos da política. Não que exatamente se fizesse justiça, mas que se justiçasse - menos que justiça, a vingança. Em alguns momentos, pairou no ar o julgamento político, como o de Danton. Nada menos que a guilhotina foi aceitável.
Não há santos nem vítimas. Há réus e juízes, direitos e deveres, não há guerra santa. Alguém pode ser acusado por se defender? Perigoso é que o debate produza vilões e heróis, de modo que a figura enérgica do ministro Joaquim Barbosa assumisse o vulto não do juiz, mas do paladino da Justiça. Que, na criatividade dos ângulos em que foi fotografado, se revelasse um Batman - e o Brasil, sua Gotham City. O tribunal, lócus da maior expressão da racionalidade e do direito, não é a Liga da Justiça. Barbosa tem méritos, mas não é maior que a instituição que preside.
Não é salutar que assim seja. Mas, aplaudido pelas ruas, sua importância apenas revela o vazio de lideranças políticas críveis, colocadas acima da miséria dos pequenos interesses partidários. Evidencia a falência da política e sua judicialização. O clichê faz sentido: não há mesmo vácuo em política. Mas na democracia outro clichê também diz que o que se teme é a Justiça, não o juiz. Na personalização da instituição, tudo em torno do mensalão virou dramático, apaixonado, decisivo: ajuste de contas. O local da política e do espetáculo da política se deslocou: os embates entre Barbosa e Lewandowski melhor caberiam nas tribunas da Câmara e do Senado.
Há alguns meses, eufóricos apressados qualificavam o julgamento como "o maior marco histórico da Justiça do País" e o mensalão, "o maior escândalo de todos os tempos", "a maior crise". O exagero deforma imagens e, com isso, a compreensão da realidade. Dizia-se que a partir de então tudo seria diferente. Calma, o processo é necessariamente mais lento. Fez-se uma grande arquibancada com torcidas em cólera e, de cada lado, as imagens se invertiam: heróis viravam vilões; vilões, heróis. A história instantânea daqueles dias foi rapidamente produzida e publicada em pó, para ser diluída no gosto de sangue, na saliva da opinião pública.
Nessa semana, porém, nas ruas e nas redes sociais esse clima se inverteu, e tudo que parecia sólido tornou-se vertigem e frustração. Euforia e precipitação levam a isso. Do Supremo, antes redenção nacional, gritou-se: "Absurdo!" Especulou-se até - há especulação para todos os gostos na internet - que Barbosa pudesse (ou devesse) vir a renunciar à presidência do tribunal. E na expectativa do posicionamento do ministro Celso de Mello, de recentes votos tão duros, a maior apreensão: como pode ou poderá o decano dar agora pelo menos essa razão aos réus que acabara de condenar? Para os anais, ficarão os diálogos de quinta-feira entre Marco Aurélio Mello e Luís Roberto Barroso, o novato insurgente. Servir ou não às multidões foi a raiz da desinteligência de suas excelências. Mas é o "xis" do problema.
A mesma instituição decantada há apenas alguns dias agora é posta em dúvida. A euforia dá lugar a uma despropositada descrença. É essa a volatilidade de nossa autoestima. Mas nada é tão decisivo nesses embargos aflitivos. Seus críticos que resolvam se o STF que ontem puniu tem ou não legitimidade - agora e no passado. Novos eufóricos que definam: a suposta grandeza e legitimidade de agora não é a mesma de antes?
Contar a história como convém não nos retira do impasse. No mais, esses tons de cinza sempre existirão. Claro, a delonga do processo não é saudável. Provavelmente, nem mesmo para quem vive a expectativa e a agonia da aplicação das penas. O melhor para o tribunal, para o governo e para a vida que segue é que tudo tivesse finalmente seu término, página virada. Mas as coisas não são assim: há leis, direitos, interpretações e nem tudo se constrói sem contradição, idas e vindas. Juízes são humanos, possuem idiossincrasias e, como declarou Barroso, não estão acima da verdade. Nem da lei, certamente, em que pese as crenças de alguns novos heróis e de seus pares, na euforia das multidões que os seguem.

A dor e a performance


As taxas de suicídio se incrementam num contexto marcado pela incerteza e perplexidade, e os mais expostos são os jovens que, tendo de construir seu percurso em espaços de alta competitividade, infelizmente sucumbem

14 de setembro de 2013 | 13h 11

Joel Birman - O Estado de S. Paulo
A intenção deste artigo é a de colocar em pauta um conjunto de questões em decorrência do suicídio do músico Champignon, da banda Charlie Brown Jr., em seguida à morte por overdose do seu colega Chorão. A esse cenário trágico deve-se acrescentar o suicídio há alguns meses, por enforcamento, do músico Peu de Souza. A história de suicídio de Champignon se complica, já que esse músico, que substituiu o colega morto, foi seguidamente hostilizado por fãs da banda como traidor por ocupar sua posição em uma nova banda. Nessa medida, a tragédia em questão se situa numa linha tênue entre a dor pela perda do amigo e as múltiplas agressões verbais sofridas da parte de seus fãs. Isso porque tais agressões, nessas circunstâncias, tiveram possivelmente o efeito de incrementar a culpa que se coloca para qualquer sujeito na experiência do luto.
‘Preto e Branco’-Man Ray (1926) - Reprodução
Reprodução
‘Preto e Branco’-Man Ray (1926)
Um primeiro comentário sobre isso é que, paralelamente, no Rio de Janeiro, nos últimos meses alguns jovens de classe média alta se suicidaram de forma violenta e inesperada, causando uma grande comoção entre amigos e familiares. Da mesma forma como Champignon se suicidou abruptamente após um jantar afável com a mulher grávida e amigos, histórias parecidas ocorreram nos suicídios dos cariocas.
Portanto, a primeira questão que se impõe é por que tantos suicídios acontecem com jovens bem-sucedidos na atualidade. Isso não quer dizer, evidentemente, que não ocorram suicídios como esses em faixas etárias outras. Porém, o fato de ocorrerem com jovens tem a potência de nos consternar particularmente, pois se trata de pessoas que tinham uma vida pela frente e muitas possibilidades de resolução dos impasses existenciais que se colocam para todos nós. Por que então esses jovens são lançados abruptamente para o gesto fatal contra si mesmos, sem reconhecerem os horizontes que ainda existiam para eles?
Para responder a isso, é necessário o reconhecimento de que se trata de um fenômeno complexo, que exige uma reflexão que lance mão de um conjunto de saberes, para que não se caia numa banalização psicologista e psicopatológica desse acontecimento limite. Com efeito, é preciso aludir não apenas à teologia e à política, como também ao arsenal das ciências humanas.
Como se sabe, os suicídios não são geralmente divulgados pela mídia. Existe uma interdição em relação a isso, pois se supõe que as narrativas de suicídios possam gerar outros, numa espécie de reação em cadeia. Além disso, essa interdição visa a proteger os familiares dos suicidas, em decorrência do estigma presente nesse tipo de ato fatal.
Contudo, não se pode esquecer que o suicídio é um ato proibido por uma longa tradição religiosa no Ocidente, pois, se Deus nos concedeu a vida, só ele teria o poder de retirá-la. O que implica dizer que, nessa tradição, o indivíduo não teria a liberdade de decidir sobre a própria vida/morte, de forma que se impõe a ele ter que suportar as angústias da existência, inventando formas de lidar com elas.
Esse imperativo religioso foi refundado com a constituição da sociedade moderna, de acordo com Foucault em Vigiar e Punir. Segundo ele, a modernidade se forjou pelo imperativo de promover a vida e afastar a sedução da morte, na medida em que a vida se transformou no campo fundamental para o exercício do poder. Com efeito, se pelo poder disciplinar e pelo biopoder a vida é promovida e a morte apenas acontece quando se torna inevitável, no poder soberano pré-moderno o soberano fazia morrer e deixava viver. Foi em decorrência disso que a modernidade foi marcada por uma intensa e disseminada medicalização do espaço social, na medida em que a saúde foi transformada num dos indicadores fundamentais da qualidade de vida da população e da riqueza do Estado-nação. Daí porque a eutanásia foi proibida em nossa tradição, interdição essa que se mantém ainda hoje, não obstante as múltiplas reações provocadas face a isso na atualidade, em decorrência dos sofrimentos de doentes terminais.
Como se pode reconhecer, a interdição do suicídio conjuga intimamente uma dimensão religiosa com uma dimensão política, de forma que a vida seria regulada pelo poder de Deus e do Estado. Não é, pois, espantoso que o suicídio seja objeto de estigma, provocando horror na população em geral e nos familiares e amigos dos suicidas. No que concerne a isso, é preciso reconhecer que se a perda de alguém que nos é próximo, seja amigo ou familiar, nos é sempre dolorosa, a morte por suicídio é trágica. Com efeito, para esses casos a pergunta que sempre se impõe é se não poderíamos ter impedido o desfecho trágico, se não ficamos cegos e surdos aos múltiplos sinais enviados pelo sujeito. Portanto, a culpa é inevitável entre aqueles que foram próximos dos sujeitos que se mataram, culpa essa que vai marcar suas vidas. Enfim, se os suicidas tiveram que fazer a transgressão limite para realizarem seu ato fatal, pelos interditos religiosos e políticos que delineiam o campo dessa experiência, os familiares e amigos se sentem igualmente responsabilizados por não terem impedido o desfecho.
É inegável que na nossa tradição o ato suicida implica uma situação limite para o sujeito, que se reconhece encontrar num beco sem saída para realizar tal ato. O que implica dizer que, para perpetrar tal transgressão, o sujeito atravessa uma profunda experiência de angústia indizível. Porém, pode-se dizer também que essa experiência se conjuga com o estatuto do individualismo moderno, na medida em que o sujeito aqui em causa não se inscreve numa totalidade social que o subsuma, como ocorria nas sociedades pré-modernas. Nessas, a morte e mesmo o suicídio se inscrevem numa gramática coletiva, ganhando assim foros de heroísmo e grandiosidade, sendo o ato de tais personagens marcados pela coragem e pelos valores éticos superiores. Não é isso que ainda vemos e podemos constatar em diversas culturas asiáticas e árabes, onde os homens-bomba e os camicases se transformam em heróis de suas comunidades, louvados pela coragem e pelos valores fundamentais que os impulsionaram para a morte.
Foi na tradição individualista moderna que o suicídio se transformou num ato maldito. Em decorrência disso, a figura do suicida se transformou na figura do anti-herói e mesmo do covarde, isto é, daquele que não teve coragem para suportar os obstáculos que a vida lhe impôs. Por isso mesmo, nessa configuração antropológica o ato suicida foi transformado num sintoma grave de perturbação psíquica, associado principalmente à experiência da melancolia, mas podendo também ser inserido em outras psicoses.
Em sua leitura do sujeito moderno, Freud procurou pensar a melancolia e o suicídio a partir da experiência do luto. Vale dizer, em face da perda de um objeto amado ou de um ideal, o sujeito vive uma experiência de luto, numa espécie de confrontação ética com a figura do morto, num acerto de contas com suas memórias face ao objeto perdido. Dessa maneira, a melancolia seria uma impossibilidade para o sujeito de aceitar a perda do objeto de amor e dele se separar, de forma a ficar identificado com a figura do morto. Enfim, o ato suicida poderia ser então um ato fatal do sujeito para arrancar de si o objeto que se perdeu, ou então continuar a ele ligado para sempre pela morte.
Contudo, toda essa discussão na atualidade assume novos aspectos cruciais, considerando-se as condições psíquicas do sujeito na contemporaneidade. Assim, face à feroz competição generalizada que existe hoje no contexto social do neoliberalismo, em que a performance se colocou como um imperativo fundamental, a promoção de si mesmo se impôs como uma marca indiscutível da subjetividade contemporânea. Superar os adversários se transformou numa moral disseminada, implicando uma aceleração das formas de viver que são correlatas da aceleração do tempo que se impõe no fluxo das mercadorias e das informações em escala global. Nesse contexto, cada indivíduo se transformou numa microempresa para promoção de si mesmo e da venda de seus produtos, sejam esses materiais ou imateriais, numa multiplicação assintótica de suas performances.
Não é por acaso que o consumo de drogas, sejam essas lícitas ou ilícitas, se transformou numa forma de vida. Com efeito, por esse consumo os indivíduos procuram promover sua performance para estar à altura da competição frenética existente no espaço social. Face a esse excesso intensivo, o sujeito fica turbinado, mas, em contrapartida, nem sempre dispõe de instrumentos simbólicos para lidar com isso. Os efeitos disso são múltiplos, nas tentativas dos sujeitos de lidarem com tais excessos. Se esses forem descarregados sobre o corpo podemos reconhecer a origem das múltiplas doenças psicossomáticas na atualidade, assim como da síndrome do pânico. Contudo, se forem descarregadas para o exterior teremos uma chave para a compreensão da multiplicação da violência e da crueldade na atualidade, assim como para a disseminação das adicções no contemporâneo, que se realizam com diversos objetos, num eixo que se polariza entre a comida e as drogas. Além disso, esse excesso intensivo pode se fazer presente como um corpo estranho para o sujeito, que perde assim suas referências identificatórias, sendo lançado em situações melancólicas.
Assim, pode-se depreender facilmente dessa cartografia como a morte nos assalta como possibilidade, de múltiplas maneiras. Isso porque o excesso como dor não pode ser transformado e metabolizado como sofrimento, pela fragilidade dos operadores simbólicos de que o sujeito dispõe. Com isso, o desamparo que é constitutivo do sujeito, segundo Freud, se transforma em desalento, pois num espaço social permeado pela competição generalizada o sujeito não pode mais contar com o outro como amigo e aliado.
Não é espantoso que as taxas de suicídio se incrementem nesse contexto, marcado pela incerteza e perplexidade. Além disso, não é inesperado que os jovens estejam mais expostos a esses processos, pois tendo que construir seus percursos no espaço de alta competitividade, muitos deles infelizmente sucumbem.
JOEL BIRMAN É PSICANALISTA, PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UFRJ E PROFESSOR ADJUNTO DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UERJ
 

O senhor do pensamento


Em seus 15 anos de vida, o Google instilou em nós a sensação de que nada que não possa ser acessado importa, abrindo caminho para computadorizar nossa inteligência emocional

28 de setembro de 2013 | 16h 05

Lee Siegel
 - Stephen Lam/Reuters
Stephen Lam/Reuters
Fiquei surpreso ao saber que na sexta-feira foi o 15º aniversário do Google. A impressão é que o gigante do mecanismo de busca existe há décadas. Esse foi o tempo que levou para rádio e televisão transformarem nosso modo de vida. E um par de séculos se passou até a imprensa escrita ter seu efeito pleno. Mas, no lapso de meros 15 anos, o Google causou uma metamorfose na maneira como sabemos das coisas, como pensamos e nos comunicamos, como trabalhamos e amamos.

Entre o último parágrafo e esta sentença eu “googlei” um artigo que havia acabado de publicar, para ver o que outras pessoas poderiam estar dizendo sobre ele. Provavelmente voltarei ao Google antes de terminar este parágrafo, seja para checar aquele artigo de novo, seja para fazer alguma pesquisa rápida sobre um fato para este ensaio. Mal consigo me lembrar de como era a vida antes da revolução do Google. Se fizer um esforço intenso, proustiano, talvez possa reconstruir um dia de trabalho pré-Google.

Quinze anos atrás, eu estaria sentado diante do computador escrevendo, distraído somente pelo telefone, cuja campainha teria desligado, ou pela campainha da porta. Se precisasse verificar alguma coisa, me levantaria da cadeira e buscaria uma fonte apropriada entre minhas fileiras de livros. Na eventualidade de não encontrar o que procurava, daria uma caminhada de 20 minutos até a biblioteca, durante a qual ou descansaria um pouco do texto estressante ou continuaria a desenvolver meus pensamentos.

Nessa época, não teria ideia do que outras pessoas poderiam estar falando de mim, do que haveria na mente da maioria, qual era a tendência cultural dominante, o que rolava de novo – a não ser pelo que leria no jornal ou eventualmente veria no noticiário noturno da televisão. Quando procurava um romance, uma peça de teatro ou um concerto, recorria a um punhado de jornais e revistas, ou consultava meus amigos cultos. Recorria a algumas vozes fidedignas – com as quais concordava ou não – para saber o que valia a pena na cultura do momento.

Que diferença 15 anos fazem! Como o Google existe, eu uso o Google, e quando busco uma coisa sou inundado por incontáveis tendências, pedaços de informação, centros difusos de autoridade.

Uma consequência ainda maior é minha relação pessoal com esse universo impessoal que, no entanto, está sendo adaptado a minhas “preferências”. No minuto em que algo que escrevi aparece impresso, sou objeto – ou vítima - de algumas opiniões instantâneas, a maioria de pessoas de quem nunca ouvi falar e nunca ouvirei de novo. Sei disso porque, por uma mistura tóxica de vaidade, ambição, ansiedade e curiosidade, associei um Google Alert a meu nome. Tão logo sou mencionado em algum lugar do mundo, assim parece, surge uma pequena mensagem em meu e-mail dizendo isso.

Às vezes, sou mencionado por pessoas cujos nomes conheço, ou conheço pessoalmente. Essas pessoas em geral também são escritores, por vezes editores, que 15 anos atrás teriam mantido suas opiniões para si mesmas por prudência profissional e natural recato. Não mais. Seja porque seus chefes lhes pediram para tuitar, ou porque sentem que precisam fazê-lo para se manter antenadas, elas se sentem obrigadas a dar sua opinião sobre meu trabalho, sem se importar que os comentários pareçam competitivos ou obsequiosos.

Muita coisa foi escrita neste país, onde o Google é mais bem-sucedido que em qualquer outro lugar, sobre o efeito da empresa na cultura. Pessoas têm dito corretamente que o Google privilegia mais a informação que o conhecimento ao facilitar um domínio instantâneo, superficial, de algo sem captar sua natureza mais profunda, suas relações mais intensas com outras coisas. E tem havido muitas críticas sobre a maneira como o Google degradou o sistema de valores da pessoa. Antes, a popularidade era só uma das medidas de qualidade. Agora, graças à sacralização das consultas ao Google, parece ser a única.

São críticas até certo ponto justificadas. Mas também é verdade que, à medida que a vida moderna nos tornava mais ocupados e acelerados, os modos de cognição mudaram. Em seu tempo, o breve verbete de enciclopédia também era considerado uma mutilação vulgar de temas que requeriam tratamento mais aprofundado. E, antes de haver a consagração das páginas mais visitadas, havia a proliferação das listas de “dez mais”, ou do “melhor de”. O que o Google fez foi acelerar as tendências mecanizadoras inevitáveis da vida moderna.

Ainda se pode, no entanto, pegar um livro e aprofundar o conhecimento de um tema sobre o qual o Google forneceu só as informações mais superficiais. E não é preciso acreditar na história contada pelas páginas mais visitadas – embora, se a pessoa for proprietária de uma pequena empresa, ou editora de uma revista ou jornal, as visitas possam ser questão de vida ou morte. Também muitas das mudanças que o Google promoveu na cultura teriam ocorrido sem ele, de uma forma ou outra..

A mudança mais profunda causada pelo Google é uma que talvez seja igualmente inevitável, mas da qual nunca se falou. Em vez de cumprir a promessa da vida moderna de domínio e controle do mundo que nos cerca, o Google nos dá a ilusão desse domínio e controle, apesar de o mundo ter se tornado mais incontrolável e caótico.

Nós um dia esperamos que a ciência, como expressou Francis Bacon sadicamente, “extraísse por tortura os segredos da natureza”. A ciência representava disciplina, a cultura, liberdade. Assim como escreveu Schopenhauer que a música consistia de desejo, realização do desejo, e renovação do desejo, a cultura consistia de curiosidade, satisfação da curiosidade e ressurgimento da curiosidade. A ciência tinha o mundo sob controle; a cultura, quanto mais nos ensinava sobre o mundo, mais mostrava seu mistério.

Ao implodir o conhecimento em informação e fazer da informação uma ferramenta para controlar o mundo, o Google nos roubou a capacidade da cultura de nos encantar. O poderoso “mecanismo de busca” nos permite clicar em “Ilíada de Homero” e receber instantaneamente milhares de referências a ela – e, de algum modo, essa transfiguração do livro em ferramenta rouba sua mística. Ainda podemos lê-lo, é claro, e o fazemos. Mas a próxima geração poderá se contentar com as referências, e com o espetáculo de uma referência se ligando a outra, e com a conversa subsequente que isso cria. A “aura sagrada do livro”, como Walter Benjamin descreveu a autoridade de uma obra de arte, terá sido esmagada numa poeira de interminável interconectividade superficial.

É curioso como a tecnologia, mesmo enquanto desencanta nosso mundo, substitui seu próprio mistério. Voamos em aviões, mas a maioria de nós não tem ideia de como um avião funciona. Dirigimos, mas a maioria não tem ideia do que faz um carro rodar. Acionamos um interruptor e as luzes se acendem – como explicar? O mistério do Google reside em seus algoritmos – a maneira como ele pega nossas palavras-chave e imagina quais dos quase 200 milhões de sites do mundo são apropriados naquele momento para nossa busca. Compreender algoritmos do Google é ouro para várias empresas, mas os algoritmos são quase impossíveis de manipular. Isso, porém, foge do assunto. O fato é que os mistérios reinantes no mundo atual não são nascimento, amor, morte, Deus, mas o buscar e encontrar do Google. E sabemos tanto como o Google realiza suas funções como sabemos o que somos na Terra. A ignorância não importa quando estamos voando num avião ou acendendo uma luz. Mas quando nossas relações sociais mais íntimas são moldadas por forças misteriosas que nos são incompreensíveis nos tornamos impotentes diante delas.

Tendo se arrogado uma autoridade religiosa sobre as primeiras e últimas coisas, tendo conferido às pessoas a ilusão de que o mundo da cultura – de como nós, como conjunto, pensamos e sentimos – está muito mais sobre nosso controle agora do que o mundo físico, o Google entrou agora no negócio da imortalidade. Eric Schmidt, o CEO do Google, previu publicamente que nos próximos cinco a dez anos o Google terá a capacidade de criar inteligência artificial que será indistinguível da inteligência humana. Schmidt está despejando uma fortuna nesse projeto.

Para mim, essa é a transformação mais fundamental do Google, para a qual seu mecanismo de busca veio assentando as bases nos últimos 15 anos. O Google nos instilou o sentimento dominante de que nada que não possa ser acessado importa. Com isso, começou a quantificar nossa vida interior; começou a preparar o caminho para nossa inteligência emocional ser computadorizada.

Talvez seja por essa razão que as conversas sobre arte neste país têm sido substituídas por conversas sobre doença, envelhecimento e morte. O americano está mais obcecado que nunca por comentários explícitos sobre esses temas. Existe até a tendência de algo chamado “jantares de morte”, nos quais os convidados ficam conversando sobre como morrer. Isso é menos Epíteto que Google, pois a conversa seguramente deve ser sobre desejos, tratamentos, diagnósticos e prognósticos – todos temas que, diferentemente de uma exploração de pensamento e sentimento diante da morte, podem ser buscados online.

Em 10 ou 15 anos, os escritores neste espaço poderão perfeitamente argumentar não sobre ideias sociais, culturais e políticas, mas sobre quanto uma pessoa deve ser artificial. Alguns anos depois disso, o debate poderá perfeitamente tratar de quanto do cérebro de uma pessoa – isto é, sua mente – deve ser computadorizado. A pergunta quente do dia será não quem nós realmente somos, mas se devemos ser alguém em particular. Talvez seja assim que a história termine. A resposta ao enigma de Édipo era o próprio Édipo. O estágio final da cultura humana será a conquista da mortalidade em si, o que tornará a cultura irrelevante ou desnecessária. Isso tudo está começando agora, com a redução da experiência a qualquer coisa que possa ser quantificada pelo mecanismo de busca titânico baseado em Mountain View, Califórnia.

Não tenho dúvida, porém, de que aqueles de vocês que são céticos quanto a minhas conclusões sobre a onipotência do Google estão, neste exato momento, me “googlando” para descobrir exatamente quem sou eu. Por enquanto, ao menos, acredito que sei a reposta disso.

*Tradução de Celso Paciornik