domingo, 21 de julho de 2013

Beatriz e os sans-cullotes


Boda por boda, a da Princesa dos Ônibus perdeu feio em simpatia para a da Noivinha da Pavuna

20 de julho de 2013 | 15h 42

Sérgio Augusto
Maio já foi, entre nós, o mês das noivas. Agora é dezembro, para tirar proveito do 13º salário. Fugindo ao lugar-comum, Beatriz Barata e Chiquinho Feitosa marcaram casamento para julho. Desprestigiado no calendário nupcial, julho é um mês mais adequado para revoluções e proclamações de independência, não para proclamas e matrimônios.
D. Baratinha pensou que achou um tostão, mas era uma manifestação - Luiz Roberto Lima/Estadão
Luiz Roberto Lima/Estadão
D. Baratinha pensou que achou um tostão, mas era uma manifestação
Abusando da originalidade ou da distração, Beatriz e Chiquinho programaram o casório para a véspera do 14 de julho. Como toda festa de casamento vai além da meia-noite, a do jovem casal começou na noite de sábado e terminou na madrugada de domingo, em pleno aniversário da Revolução Francesa. Tal coincidência seria irrelevante se Beatriz e Chiquinho não tivessem pais tão ricos, poderosos e visados. Não tão ricos quanto os Bourbons, mas o bastante para bancar uma boda de R$ 2 milhões.
No ranking das núpcias nababescas oficiadas no País, as de Beatriz e Chiquinho talvez não figurem entre as primeiras colocadas em luxo, originalidade, pompa e circunstância, mas nem se tivessem custado a metade ou um terço daquela dinheirama caberia agendá-las para um momento tão conturbado. Os Baratas e os Feitosas não são apenas bilionários, eles enriqueceram empalmando o serviço de transporte urbano, cujos descalabros foram o estopim da revolta popular que há semanas incendeia as ruas do Rio, São Paulo e outras capitais.
Jacob Barata, avô da noiva, não tirou na rifa o epíteto de "Rei dos Ônibus". Ao seu império de coletivos (20 empresas do ramo no Estado do Rio, mais concessões em outros seis Estados) anexou um banco, operadoras de turismo, hotéis, hospitais, imóveis, desde 1958 capitaneados por Jacob Barata Filho, pai de Beatriz. No Ceará os Baratas são sócios numa empresa de vale-transporte do pai do noivo, o ex-deputado federal pelo PSDB Francisco Feitosa.
Também prestigiada pela grã-finagem de Fortaleza, a bênção dos nubentes, na Igreja do Carmo, no centro do Rio, foi uma protofonia de ostentação, provocações e bate-bocas. Pais, noivos e padrinhos chegaram em reluzentes Mercedes com 22 multas vencidas em seu prontuário. Sob a proteção de PMs, convocados para manter a distância a centena de indignados que até lá acorreu para protestar contra o oligopólio dos transportes no Rio e tirar um sarro da "Dona Baratinha", apelido de instantânea adesividade pespegado em Beatriz Barata, a "Princesa dos Ônibus".
Princesa e, desde novembro de 2010, bacharel em direito. Sua monografia de graduação pela Fundação Getúlio Vargas, disponível na internet, é uma exaltação às empresas de transporte fluminenses ("que têm aprimorado cada vez mais seus serviços"), centrada nos ajustes supostamente feitos na viação Útil S.A. "para transformar positivamente a realidade, respeitando o meio ambiente, seus consumidores e as determinações do órgão regulador". Uau!
A "exemplar" viação Útil S.A. pertence ao Grupo Guanabara, da família Barata. Se fosse julgada pelos usuários dos ônibus que circulam no Rio e arredores, a monografia de Dona Baratinha levaria um rotundo zero. E ela seria apenas uma princesa herdeira ao cruzar o adro da igreja do Carmo, uma noivinha constrangida, que ainda mais acabrunhada ficou depois que alguns de seus convivas começaram a revidar, com aristocrático escárnio e debochada violência, aos insultos e gozações dos sans-culottes que à festança no hotel Copacabana Palace deram um certo ar de Versailles no 14 juillet de 1789. A mídia se regalou no dia seguinte, mas nada que fizesse sombra à cobertura das bodas de Leni Orsida Varela, a Noivinha da Pavuna.
Esse sim foi um casamento histórico, uma festa de arromba prestigiada por todas as classes sociais—e em cadeia nacional. Moça pobre, criada no modesto subúrbio carioca da Pavuna, na zona norte do Rio, Leni viveu em público uma história de contos de fadas. Sem dinheiro para comprar um vestido de noiva, apostou sua sorte numa gincana de conhecimentos animada por J. Silvestre no programa Show Sem Limite, da extinta TV Tupi, respondendo sobre a vida e a obra do poeta português Guerra Junqueiro.
Sabatinada ao longo de 14 semanas, Leni virou pop star. Assediada pelos fãs, a certa altura, nem mais de ônibus podia andar em paz, o que levou uma transportadora, muito possivelmente do império Barata, a conduzi-la de graça da Urca (onde ficava a TV Tupi) até a Pavuna. O coroamento dessa saga foi seu casamento diante das câmaras, em 15 de setembro de 1969, com J. Silvestre de padrinho e um coral sinfônico a entoar o samba Na Pavuna. Vestida com o cobiçado vestido de noiva que sua tenacidade conquistara, Leni foi assunto de todas as colunas sociais e até capa da revista O Cruzeiro. De presente ganhou uma casa, lua de mel na Europa e um samba de João Roberto Kelly.
Depois, a sorte virou. Leni perdeu tudo, até o marido. Formada em fisioterapia, casou de novo, mudou de vida, mas nunca deixou de ser fiel ao subúrbio de onde saiu para uma glória que o dinheiro não pode comprar.

Profissão perigo ( sobre a morte de MC Daleste)


Morte de MC Daleste no palco, na esteira de uma série de assassinatos de músicos da periferia, pode estar ligada ao processo de criminalização do funk

13 de julho de 2013 | 16h 58

Bruno Paes Manso, de O Estado de S. Paulo
Antes de ser morto no palco com um tiro no peito durante um show no sábado retrasado, em Campinas (SP), MC Daleste, de 20 anos, havia gravado seu primeiro videoclipe para passar no YouTube. O filme ainda é inédito. Foram investidos R$ 30 mil e as filmagens ocorreram em uma mansão em Igaratá, no Vale do Paraíba. Um helicóptero foi alugado para que o cantor chegasse dos céus ao lado de modelos. Daleste cantaria a música São Paulo com jovens bonitas e sexy, usando roupas de grife, tomando bebidas importadas e reforçando o estilo “funk ostentação” que o alçou ao sucesso. “Daleste sempre foi muito criativo. Sugeriu que filmássemos a cena final do clipe em Las Vegas. Mas não havia verba”, diz o diretor Renato Barreiros, que finalizou o trabalho antes da morte do cantor. O lançamento póstumo vai depender da vontade da família.
Ele cuidou da mãe, vítima de aneurisma, até os 16 e pagava a faculdade da namorada - Alex Silva/Estadão
Alex Silva/Estadão
Ele cuidou da mãe, vítima de aneurisma, até os 16 e pagava a faculdade da namorada
Nascido na Penha, periferia leste de São Paulo, Daniel Pedreira Sena Pellegrine, nome real de MC Daleste, havia realizado a façanha de estourar no mercado de funk paulista antes de gravar os vídeos para a internet que fizeram o sucesso de seus pares. Começou a cantar aos 16 anos, em bailes de comunidade e festas da escola pública Edgard Cavalheiro. O primeiro hit, Verdadeira Namorada, foi gravado em uma lan house para homenagear Erika Franco Teixeira, que acabou se tornando sua mulher. O dinheiro que Daleste ganhava nos shows ainda paga a faculdade de assistência social e o curso de moda de Erika.
Antes de estourar e até os 16 anos, o cantor ajudou o pai e os três irmãos a tomarem conta da mãe, Deusimar Pedreira Sena Pelegrini, que teve um aneurisma cerebral quando ele tinha 4 anos. Deusimar perdeu metade dos movimentos do lado direito do corpo e falava com dificuldade. Ela morreu quando Daniel tinha 16 anos.
Nos anos que se seguiram, sob a influências de MCs da Baixada Santista, como Chiquinho e Amaral, inspirado em ídolos como Racionais MC, Sabotage e MV Bill, o sambista Tiaguinho e Jorge Benjor, o jovem talento da zona leste passou a escrever letras descompromissadas em cima de ritmos suingados, aproveitando o boom do funk que a cidade começava a viver. “Minha vida mudou da água para o champanhe”, disse Daleste ao Estado em março, de uma madrugada de sábado à manhã de domingo, quando a reportagem o acompanhou ao longo de cinco shows percorrendo 250 quilômetros em seis horas entre cidades da Grande São Paulo.
Somados, os sucessos por ele gravados nos últimos anos, como Angra dos Reis, Deusa da Ostentação, Água na Boca e Profissão Perigo têm mais de 10 milhões de visualizações no Youtube, mesmo sem videoclipes para divulgá-los. Depois da fama, Daleste comprou dois carros de luxo: um Dodge Journey e um Porsche Cayenne. Mas continuou morando na Penha. “Ele era simples. Não gostava de sair à noite, apesar de lotar as baladas. Era casado com a primeira namorada, mesmo cantando sobre mulheres. Tinha uma música sobre maconha, mas não fumava. Fez a música Angra dos Reis sem nunca ter visitado a cidade. Daleste não tinha inimigos e por isso sua morte levou a todos que o conheciam um ponto de interrogação gigante”, diz o empresário e músico Bio G3, que canta funk e agencia outros MCs de São Paulo, além de ser amigo próximo de Daleste. “Não havia ninguém querendo pegá-lo ou atacá-lo. Tanto que ele toma o primeiro tiro de raspão em cima do palco e continua cantando. Se houvesse qualquer temor, sairia correndo depois do primeiro disparo”, diz Bio.
Se Daniel Pelegrinni era um jovem simples e até ingênuo no dia a dia, em cima dos palcos Daleste incorporava tudo que o funk passou a representar nos dias de hoje na cidade. Atualmente, não existe fenômeno cultural mais provocador que o ritmo.
Desde os poetas românticos dos séculos 18 e 19, os movimentos culturais populares contestadores, que defendiam a liberdade sem limites e provocaram mudanças em valores tradicionais da sociedade, foram liderados por jovens com menos de 30 anos. Era como se a transformação cultural fosse movida pelo excesso de hormônios, falta de juízo e pensamento de curto prazo da garotada imberbe. Juventude se tornou sinônimo de contracultura com o passar do tempo, provocando a famosa máxima rodriguiana: “Jovens, envelheçam”.
Nas últimas décadas, os roqueiros passaram a representar essa paixão hedonista e quase suicida pelos excessos, chegando a formar o grupo que ficou conhecido como o Clube dos 27, integrado por ídolos mortos nessa idade, como Jimi Hendrix (que em 1970 se engasgou com o próprio vômito), Janis Joplin (morta em 1970 por overdose de heroína), Jim Morrison (em 1971 por insuficiência cardíaca), Kurt Cobain (que era dependente de heroína e se matou com um tiro em 1994) e Amy Winehouse (por intoxicação alcoólica em 2011). No Brasil, Cazuza e Renato Russo, que morreram em decorrência da aids, também ganharam o status de ídolos imortais e românticos inveterados.
Neste século, o mal-estar dos jovens, sensação que o escritor americano Jack Kerouac definiu como a de “pinos redondos em buracos quadrados”, deixou de ser representado pelos jovens do rock’n’roll, ritmo que se tornou careta e mainstream. A classe média parecia incapaz de chocar como antigamente os pais que já haviam vivido Woodstock, fumado maconha e feito amor livre. No Brasil, coube aos pobres e negros do funk a responsabilidade de “causar” ao extremo. 
Em resposta, leis municipais foram criadas para proibir os pancadões, as festas feitas no meio da rua, onde policiais militares se tornaram presença garantida. São os funqueiros as estrelas que mais incomodam e chocam, celebrando os excessos, a vida desregrada, o gozo e a felicidade instantânea, mesmo que garantida à base de substâncias químicas, assumindo o papel que cabia aos roqueiros. Mulheres popozudas, que dançam imitando poses sexuais, letras de apologia ao crime, culto a marcas caras e a carros de luxo. As provocações parecem ao mesmo tempo estéticas e conceituais.
Não por acaso, nos últimos três anos, nesse ambiente desfavorável, quatro MCs de sucesso morreram assassinados, sem provocar nenhuma comoção dos públicos formadores de opinião ou das autoridades. Em abril de 2010, dois suspeitos de moto mataram Felipe Wellington da Cruz, o MC Felipe Boladão, quando ele se preparava para pegar um carro na Baixada e fazer um baile funk na cidade de Guarulhos. Um ano depois, Eduardo Antônio Lara, conhecido como MC Duda do Marapé, foi morto com nove tiros ao lado da rodoviária de Santos, local barra-pesada da cidade. Mais uma vez, homens armados passaram de moto e atiraram.
Jadielson da Silva Almeida, MC Primo, morreu em abril do ano passado em São Vicente. Dez dias depois, Cristiano Carlos Martins, o MC Careca, foi morto a tiros no conjunto habitacional Dale Coutinho, em Santos, em frente ao salão de cabeleireiro do qual era sócio. Assim como Daleste, todos tinham menos de 30 anos. Em nenhum dos casos os autores do crime foram descobertos. Nos anos dos crimes, a Baixada Santista havia se tornado cenário de disputas entre criminosos e policiais militares integrantes de grupos de extermínio. A suspeita, nunca confirmada, era de que policiais poderiam estar por trás dos crimes contra os músicos.
Sem que nenhum tipo de resposta tivesse sido dada pelas autoridades para os crimes anteriores, Daleste foi atingido no sábado retrasado no palco do conjunto habitacional de Campinas. Sinais dos tempos, o crime foi filmado por celulares de fãs que assistiam ao show. As imagens, em ângulos diferentes, postadas no YouTube, foram vistas por mais de 10 milhões de pessoas. Diversos vídeos foram feitos nos dias que se seguiram. Um deles mostra a suposta visita do MC ao próprio velório enquanto jovens cantam seus funks. Foi acessado por mais de 1 milhão de pessoas. Dossiês tentando desvendar o autor do crime, com base em imagens de celular, já prevendo a incompetência das autoridades para elucidar o caso, também se multiplicaram.
Também bombaram os vídeos que celebram ou ironizam a morte de Daleste. Como uma paródia do videogame Doom, chamada Mate o MC Daleste, revelada em reportagem da revista eletrônica Vice, onde o jogador assassina o MC e dispara contra outros símbolos da cultura funk, atirando contra a apresentadora Regina Casé, do programa Esquenta!, em cartazes do Bolsa Família e até na estrela do PT. A trilha sonora é a música Apologia, em que Daleste canta sobre assassinato de policiais. No final do jogo, aparece o grito de guerra do Batalhão de Operação Especial do Rio de Janeiro (Bope): “Homens de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar corpo no chão”. Também perto de 1 milhão de pessoas assistiram ao vídeo. Dispensável mencionar os comentários em defesa do assassinato do jovem.
“A morte de Mc Daleste é emblemática e joga luz sobre a ponta do iceberg de um profundo problema social. Daleste morreu em cima do palco da mesma forma que morrem os jovens pobres e negros da periferia cotidianamente, em crimes muitas vezes praticados pela polícia. A morte dele é a consequência política do processo de criminalização do funk”, afirma o criminólogo Danilo Cymrot, doutorando na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde defendeu a dissertação Criminalização do Funk sob a Perspectiva da Teoria Crítica. Cymrot também integra o grupo Funclassic, que na última virada cultural homenageou os MCs assassinados. Assim como Morrison e Cobain, os MCs do funk são mártires por morrerem em nome da paixão romântica dos jovens, que se justifica mesmo quando eles se sacrificam por motivos que não parecem fazer nenhum sentido.


O automatismo do privilégio, Aliás


Uma reforma política realista deve começar com a democratização dos partidos que reduza o tempo de permanência de um dirigente em seu topo

13 de julho de 2013 | 17h 08

Roberto Romano*
As manifestações de massa no Brasil tiveram o condão de atenuar a letargia das autoridades constituídas, em todos os poderes. Mas vale sempre recordar o que é a ética. Tratamos aqui de práticas e atitudes mentais aprendidas em determinado tempo e espaço e que de tanto serem repetidas operam automaticamente. Quem aprendeu certo modo de agir e pensar o retoma como se ele fosse natural. Nossos dirigentes e legisladores aprenderam a ética que afirma a superioridade dos políticos sobre os “simples cidadãos”. Assim, eles se assustaram diante das massas em revolta e correram para atender às reivindicações em tempo rápido, sem deixar de lado a ética que aprenderam.
Ética torpe. Políticos julgam-se superiores ao cidadão - José Cruz/Abr
José Cruz/Abr
Ética torpe. Políticos julgam-se superiores ao cidadão
Várias das normas aprovadas são de caráter duvidoso, como a que transforma as práticas corruptas em crime hediondo. Outras apenas seguem o bom senso, na recusa da PEC-37. Outras podem atenuar a impunidade dos mesmos políticos, com o fim da prerrogativa de foro. Ademais, as propostas do Executivo para a reforma política, por ignorarem o direito, são engavetadas, como a Constituinte exclusiva para a reforma política e o plebiscito.
Num clima de incerteza quanto aos rumos a serem tomados, deputados, senadores e ministros reiteram a ética indicada acima, o automatismo do privilégio. O caso dos aviões, helicópteros e outras máquinas que deveriam servir o público mostra quanto eles esperam o momento para voltar à trilha seguida de 1500 até hoje. Assim, as medidas tomadas não integram um plano de poder público, não pensam exatamente nas condições corretas a serem propostas ao País. Elas são apenas sinalizações de que algo se move no colosso estatal brasileiro. Não há lógica rigorosa nos projetos, nas leis, nas ações congressuais. Digamos que o desarrazoado impera na Praça dos Três Poderes. Grande parte de semelhante pânico encontra-se na péssima organização dos partidos políticos. Vejamos.
Um partido nada mais é que certo mapa do Estado e da sociedade propostos aos eleitores. Podemos dizer que ele é a maquete de uma futura construção política. Sua estrutura, programas, práticas, indicam ao povo soberano o que será feito quando seus integrantes chegarem aos poderes. Nossos partidos, então, tal como operam no Brasil, deixam de ser partidos. Seus programas servem apenas para o registro na corte eleitoral. Uma vez aprovados, as alianças oportunistas e simplesmente eleitorais assumem o primeiro plano e os programas são abandonados com rapidez extrema. Tal falta de obediência programática lança as agremiações no empirismo eleitoral e governamental, pois os planos, para serem eficazes, precisariam possuir forças anteriores (justamente a dos partidos) que por eles lutassem, especialmente quando se trata de fiscalizar sua implementação técnica, financeira, administrativa, jurídica.
Além desse defeito básico, nossos partidos não possuem democracia interna. Eles são dirigidos por grupos oligárquicos ou mesmo por indivíduos que se consideram seus donos. Eles permanecem na liderança partidária por décadas, assim adquirindo todos os controles: das finanças, das alianças, dos candidatos, da propaganda. E além disso, tais direções nunca escutam de fato os militantes que, na base do partido, por ele combatem. Unindo-se semelhante autoritarismo ao empirismo programático, o resultado só poderia ser a balbúrdia percebida no dia a dia dos poderes. Nada é programado, tudo se improvisa segundo os interesses dos dirigentes, os quais, como é de praxe, têm seguidores de menor relevância, mas que dão votos aos projetos de lei e permitem sua implementação atabalhoada pelo Executivo.
Uma reforma política realista, portanto, deve começar com a democratização dos partidos que reduza o tempo em que um dirigente pode permanecer no topo partidário. Além disso, eleições primárias devem servir para que os militantes definam as escolhas das alianças, dos candidatos, etc. As questões técnicas de eleição, se proporcional, distrital, ou qualquer outro encaminhamento, dependem, para seu sucesso, da ordem oligárquica a continuar, ou da democracia a imperar nos partidos. Caso contrário, seguiremos com o improviso, a truculência dos poderosos cartolas partidários, a falta de rumos programados para o Estado e a sociedade. Com a democracia interna, os dirigentes aprenderiam as primeiras letras do que, em outras sociedades, é chamado de accountability. Prestando contas aos militantes, os políticos podem adquirir a ética da responsabilidade madura e não populista. Algo muito distante, hoje, tanto das ruas quanto dos palácios em que se encastelaram, nos últimos 500 anos, os mandatários no poder. Insisto: a ética aprendida pelos nossos políticos, que a repetem automaticamente, é a que favorece a legislação em causa própria. Desaprender tal comportamento sob pressão das ruas é bom, mas insuficiente para mudar a face de um país submetido à truculência dos que deveriam apenas representar o povo soberano.
*ROBERTO ROMANO É FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE O CALDEIRÃO DE MEDEIA (PERSPECTIVA)