domingo, 31 de março de 2013

Visita inevitável - MÍRIAM LEITÃO


O GLOBO - 31/03
Eu era menina ainda, mas já gostava de notícia. Grudei no rádio e fiquei ouvindo as informações da movimentação das tropas do general Olímpio Mourão Filho. O que eu não podia imaginar, por ser tão criança, é que aquele 31 de março era o começo de um tempo terrível que tiraria vidas da minha geração, produziria dor e obscurantismo, e que 49 anos depois ainda seria difícil revisitar.

Um professor americano me perguntou outro dia porque só agora o Brasil faz a sua Comissão da Verdade, já que a ditadura acabou em 1985. Eu respondi que o Brasil tem problemas de encarar seu passado, é meio atávico esse defeito. E que, de vez em quando, pintamos o cenário com outras cores para aceitar nossos erros, e daí decorrem teses como as da " mild slavery " (escravidão suave). Mas que, felizmente, estamos mexendo no que ficou congelado por um tempo excessivamente longo.

Na mesma semana me ligou Rosa Cardoso, que integra a Comissão da Verdade. E o que ela tinha a contar era muito. Naquele fim de semana (o último) haveria o encontro da Panair para ouvir, pela primeira vez em quase 50 anos, o que houve com a empresa que por perseguição política teve todas as rotas canceladas pelo governo e foi à falência. Ainda assim, os funcionários se reúnem frequentemente, vão com seus crachás para se reconhecerem tanto tempo depois. A empresa pagou todas as dívidas trabalhistas.

A Comissão da Verdade de São Paulo se preparava para ouvir - ouviu na semana passada - o depoimento de Inês Etienne dentro do capítulo de ditadura e gênero. Inês, que sobreviveu à Casa da Morte, tinha sido chamada, junto com outras pessoas, para falar das sevícias sexuais que atingiram tantas prisioneiras.

O corpo de João Goulart será exumado. Os especialistas ouvidos disseram que, talvez, os exames não sejam conclusivos, porque ele pode ter sido morto por um remédio que afeta o coração e que, tanto tempo depois, pode não ter deixado vestígios. A suspeita permanece.

Não há um único torturador que tenha passado um único dia na prisão pelo crime cometido, de tortura, morte e desaparecimento, como o do deputado Rubens Paiva, do estudante Alexandre Vanucchi, do líder Honestino Guimarães, do jovem Stuart Angel, do jornalista Vladimir Herzog, do operário Manoel Fiel Filho. São tantos. É difícil nomeá-los. Esquecê-los, impossível.

Ainda assim, os militares aposentados se reuniram nos seus clubes e acusaram quem hoje busca informações de ser "totalitário". Repetem a tese de ter havido dois lados. Pois é. Um lado era a juventude encurralada. O outro, o Estado com o poder exercido de forma ilegítima pelos militares, usando a sua força contra quem ousou discordar.

A Comissão da Verdade se descentralizou, outras vão se formando para investigar os vários eventos desse tempo que prometeu ser breve e se prolongou por 21 anos. O que fazer com as instalações onde pessoas sofreram e heróis perderam a vida? O antigo Dops do Rio é hoje o Museu da Polícia. Cheio de armas dos vários tempos. Impossível conviver com um memorial de presos políticos que deveria ter. O antigo DOI-Codi funcionava no quartel da Polícia do Exército na Barão de Mesquita, na Tijuca. Lá morreu Rubens Paiva, lá inúmeras pessoas foram torturadas, como Arthur Poerner, que narrou o que viveu num livro com o sugestivo nome de "Nas profundezas do inferno". Angel foi morto na Base Aérea do Galeão. A tortura foi disseminada, foram muitos os locais de sofrimento.

O passado deve passar. Eu, hoje, avó de meus netos, sei quanto tempo me distancia da menina grudada ao rádio em Caratinga naquele 31 de março. Mas minha convicção profunda é que, antes, é preciso cumprir o ritual da dolorosa visita ao passado

Um mistério na selva - EDILSON MARTINS



O GLOBO - 31/03
A Comissão Nacional da Verdade tem, desde outubro último, um abacaxi graúdo para descascar. O Exército está sendo acusado de ter eliminado 2 mil índios da nação waimiri-atroari, no Amazonas.

A Comissão tem um relatório com documentos, organizado pelo Comitê da Verdade, do Amazonas, com relatos de índios, militares, funcionários da Funai, entre outros testemunhos. Eliminar inimigos de ditaduras, militares ou civis, os chamados subversivos e terroristas, nunca foi novidade, mas exterminar índios em estado de cultura pura, caso proceda a denúncia, é um novo paradigma na história do país.

A psicanalista Maria Rita Kehl, da Comissão da Verdade e indicada para apurar a questão, revelou ao repórter Guilherme Balza, do portal UOL, que "os indígenas não estavam resistindo no sentido político, já que não sabiam exatamente o que era uma ditadura. A resistência era no sentido de garantir suas terras".

A pergunta é: o que fizeram para sofrer essa violência? Estávamos em pleno governo militar e as terras desses índios ficavam na conexão do Brasil com o Caribe. Uma rodovia ligando o Amazonas a Caracas (Venezuela) precisava ser construída.

E mais: o governo decidiu construir uma hidrelétrica (Balbina), inundando mais da metade das terras indígenas. Essa barragem foi um dos maiores desastres ecológicos em todo o século XX, destruindo fauna e flora.

Balbina inundou uma área equivalente à cidade de São Paulo, produz 35 vezes menos energia do que Tucuruí e seu lago é maior que o dessa hidrelétrica. Os confrontos com castanheiros e tropas da PM já aconteciam, mas os índios sobreviveram. No enfrentamento com as tropas do Exército, durante a construção da BR-174 nos anos 70, eles perderam.

Se a Comissão ratificar a denúncia, o número de vítimas da ditadura, hoje na ordem de 457, vai assustar o país. Os índios Parwé e Wamé recordam o lançamento de bombas, naqueles anos, incendiando suas aldeias, não ficando vivo ninguém próximo. No início do século XX, eles viviam a 50 km de Manaus. Foram empurrados pelas frentes (BR-174, Balbina). Hoje algumas aldeias distam até 400 km da capital.

Há um relatório assinado pelo general Gentil Paes, produzido em parceria com a Funai, à época subordinada ao Exército, determinando "demonstrações de força, mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite". Corria o ano de 1974.

Outro general, Altino Berthier, num livro de memórias compara as ações militares às dos alemães na II Guerra. "Tive o privilégio de perceber, sentir e registrar os efeitos daquela blitzkrieg (tática dos nazistas) sobre território desconhecido, enxotando um povo perplexo, que reagia violentamente ante a desestruturação de sua célula familiar e de seu universo telúrico."

Confirmada a acusação, a memória de Cândido Rondon terá sido arranhada. O Exército de Caxias e de Deodoro, que sempre se orgulhou de não ter reproduzido o que fizeram as tropas americanas na conquista do Oeste, sairia maculado. Rondon, ele próprio descendente dos bororo, militar que integrou o Brasil com a implantação das linhas de telégrafo no século passado, na relação com essas culturas, cultivava a máxima; "Morrer, se preciso for; matar nunca."

Apesar da diáspora, sobreviveram e exibem uma das mais bem-sucedidas experiências com o mundo civilizado, mas lutam contra a aculturação. Desenvolveram a própria escrita, estudam português e matemática, e só; o resto é o aprofundamento da cultura walmiri-atroari. Em seu território inexistem armas de fogo, não se mata um animal selvagem e não se derruba uma árvore sem justas razões. É uma experiência única no país.

Inflação, crescimento e o que pensa a presidente - SUELY CALDAS

O ESTADO DE S. PAULO - 31/03

Não há dúvida de que a presidente Dilma Rousseff tropeçou nas palavras ao falar de inflação versus crescimento na quarta-feira, soltando a corda para o mercado financeiro apostar - e especular - na queda dos juros futuros. Não há dúvida, também, de que os "agentes do mercado" torcem por acontecimentos, declarações, escorregões de autoridades e o que mais surgir que justifique o sobe e desce de preços de ativos e indicadores. Eles não gostam de estabilidade, de mercado parado, porque sua fonte de lucro é a gangorra das cotações, tanto faz subir ou cair, o que importa é a volatilidade.

Por isso quem, no governo, tem poder de influência sobre o mercado precisa ter cuidado, falar as palavras certas, não deixar dúvidas nem nada que possa gerar interpretações dúbias, frouxas.

Por essa razão, desde a segunda metade dos anos 1990, o Banco Central (BC) vem reforçando os mecanismos de previsibilidade de suas ações futuras, levando certezas, sempre que possível, fixando metas para a inflação, deixando claras as suas posições e projeções em atas do Comitê de Política Monetária (Copom) e nos relatórios trimestrais de inflação (no de quinta-feira o BC elevou a projeção de inflação anual para o final de junho de 5,5% para 6,7%, ultrapassando o teto da meta). Enfim, o Banco Central vem evitando dar motivos para o mercado fazer o que sabe e gosta: especular, criar volatilidade, maximizar lucros.

Os "agentes do mercado", no entanto, também não desconhecem: 1) que a presidente Dilma é economista focada em produção, não é do ramo financeiro, não tem a expertise nem o cuidado com as palavras que tem um presidente do Banco Central ao falar de inflação, crescimento econômico, juros; e 2) este item é o mais importante: Dilma Rousseff está, sim, atenta à inflação, porém esticar a corda do bom desempenho do emprego e da renda salarial e perseguir o tão obsessivo quanto inalcançável pibão a preocupam bem mais.

Afinal, o que vem sustentando o alto índice de popularidade da presidente são emprego e dinheiro no bolso do eleitor, e seguem nessa direção os conselhos de seu guru político, o ex- presidente Lula.

Na verdade, no que se refere ao tripé inflação-juros-PIB, a diferença mais evidente entre a presidente Dilma e a maioria dos economistas - ligados ou não ao mercado financeiro - está na quantificação dos índices. Enquanto eles defendem trazer a inflação para o centro da meta (4,5%) e, passo seguinte, reduzi- la para 3,5%, a presidente tem demonstrado maior tolerância com o índice.

Dilma é sincera quando repete que não permitirá o descontrole da inflação (qual governante quer isso?). Mas ninguém sabe até onde vai a sua tolerância e se essa tolerância põe em risco o descontrole. Seria o teto da meta? Acima de 6,5%, a luz vermelha acende e o Banco Central desencadearia ações duras em juros, crédito e com efeito na atividade econômica? Ou elevar a meta da inflação é uma possibilidade real? Mas e o custo político disso?

Sem respostas para essas perguntas, restam pistas. Uma delas: o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, um dos conselheiros prediletos de Dilma-Lula e quase presidente do Banco Central no governo anterior, fez palestra no Instituto Lula na segunda- feira. Ouviram seus argumentos o ex-presidente Lula e o ex-ministro Antônio Palocci. Dois dias depois, possivelmente treinando um balão de ensaio, defendeu o aumento da meta de inflação: "Talvez seja mais apropriado rediscutir a meta de inflação para cima. Isso aconteceu na administração Arminio Fraga", afirmou Belluzzo em entrevista ao Estado, publicada na quinta-feira.

Cisma antiga. Embora seu governo tenha produzido pibinhos (crescimento de 2,7%, em 2011, e de 0,9%, em 2012) e inflação alta (6,5%, em 2011, e 5,84%, em 2012), Dilma Rousseff sempre viu no crescimento o motor da economia, a prioridade maior a ser perseguida. No final de 2005, já como ministra da Casa Civil, ela mostrou suas garras e ganhou a briga ao enfrentar o plano de ajuste fiscal de longo prazo arquitetado pelos ministros Palocci e Paulo Bernardo, plano que mirava reduzir a inflação e a dívida pública e elevar o superávit primário. Em entrevista ao Estado, em novembro de 2005, ela detonou o plano com palavras duras, chamou-o de "rudimentar", e já elegia a derrubada da taxa Selic o objetivo maior da política monetária. Aliás, o que ela acabou concretizando em seu governo.

"Para crescer, é necessário reduzir a dívida pública. Para a dívida pública não crescer, é preciso ter uma política de juros consistente, porque senão você enxuga gelo. Faço superávit primário de um lado e aumento o fluxo da dívida. E me fechei em mim mesma", argumentou Dilma na entrevista, centrando o alvo na queda da Selic.

Ela ganhou a disputa, convenceu Lula e o plano Palocci/Bernardo morreu. Mas não teve o mesmo sucesso com a política de juros, que continuou decidida pelo Banco Central e garantida por Henrique Meirelles, seu presidente na época.

Em 2005 a conjuntura colocava no centro dos debates o corte de gastos públicos, a geração de crescentes superávits primários e a disposição do governo Lula de fazer a sua parte para recuperar a confiança do mercado financeiro e de investidores privados - aqui e no exterior. Dilma era contra e derrubou a estratégia Palocci. Agora, ela é a autoridade maior, não tem opositores no governo e o debate é centrado na inflação, no baixo crescimento e no investimento em queda. O ajuste fiscal, tão fundamental em 2005, hoje está em segundo plano.

Porém, com o efeito do baixo crescimento na arrecadação de impostos e tantas desonerações tributárias para estimular setores da economia, o quadro fiscal dá sinais de fraqueza. A expectativa de melhoraria na arrecadação com a esperada retomada da economia não foi confirmada no resultado de fevereiro, quando as contas do governo federal fecharam com um déficit primário de RS 6,41 bilhões, o pior desde setembro de 2009. É mais um megaproblema para a presidente e sua equipe administrarem.

O fôlego do dinamismo no consumo, do baixo desemprego, do crédito em alta e do aumento da renda do trabalho já vai mais longe do que esperavam os analistas. E tudo indica que, até quando der, Dilma vai insistir nesse caminho. Mas não é a trajetória ideal para chegar ao desejado pibão. Faltam investimentos. E é aí que acontecem os desacertos e as trapalhadas do governo.