sábado, 23 de março de 2013

Caminhos para enfrentar o Frankenstein urbano - WASHINGTON NOVAES

O ESTADÃO - 22/03

Muitos leitores deste jornal devem ter tomado um susto na quinta-feira da semana passada ao lerem a mais do que contundente entrevista do respeitado arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, dono de um currículo admirável, que inclui, entre muitas criações, a participação no projeto de construção de Brasília, a rede de hospitais Sarah e, com Darcy Ribeiro, a criação do conceito dos centros de educação integral, os Cieps, para manter o aluno na escola durante todo o dia, fornecer alimentação, assistência médica e psicológica, esporte e muito mais - além de um sistema de ensino exemplar.

Lelé foi conciso e contundente na entrevista. "Cidades como São Paulo são um grande Frankenstein", disse ele, apontando o "descontrole geral", a arquitetura "correndo atrás da imagem", com os arquitetos "a reboque dessas pressões".

"Todo mundo quer morar onde convém e o mercado se aproveita disso para fazer um adensamento descomprometido com a cidade." Em sua opinião, "não há mais como planejar", até porque "as cidades estão se desintegrando" e "não oferecem soluções". A seu ver, "o arquiteto deveria ser o (médico) clínico da cidade; no entanto, não tem uma visão global e as obras vivem um Frankenstein. A cidade é o maior Frankenstein de todos".

Assustador o diagnóstico. Mas pode piorar se se lembrar que só nos dois primeiros meses do ano mais de 500 mil veículos saíram das fábricas para as ruas (Estado, 7/3) e que o Brasil já é o quarto maior mercado mundial. Que os espaços públicos urbanos, já congestionados ao extremo, só tendem a piorar com o agravamento das inundações - mais frequentes, mais intensas, mais duradouras. Cada enchente causa prejuízo de até R$ 1 milhão e há 749 pontos de alagamento já catalogados, diz estudo do professor Eduardo A. Haddad, da Faculdade de Economia da USP (Agência Fapesp, 15/3). Chuvas com mais de 80 milímetros eram raras; mas só na primeira década deste século foram nove. A Prefeitura promete quatro novos piscinões e enterrar a fiação dos semáforos para que não se apaguem durante os temporais (10/3). Mas como vai fazer, se toda a fiação elétrica em São Paulo chega a 38 mil quilômetros (só há uns 3 mil km enterrados em Higienópolis e imediações) e o custo seria de R$ 100 bilhões? Nova York tem mais de 150 mil km sepultados; a Alemanha, em três anos, passou a parte enterrada de 4,3% para 75%; a Grã-Bretanha, de 1,4% para 81% (Folha de S.Paulo, 24/2).

Não são as únicas soluções urbanas. No pedágio urbano de Londres o motorista tem de pagar mais de R$ 30 por dia para trafegar na área sob controle, e com isso a circulação ali caiu 25% e aumentou a velocidade dos ônibus. A prefeitura vai instalar 1.300 pontos de recarga de veículos elétricos e reduzir em 40% a emissão, por eles, de carbono. Já há muitos pontos de carros compartilhados, onde o usuário paga por hora e divide o custo com quem quiser. Mas quem quer ouvir falar dessas coisas por aqui e se arriscar a perder os votos dos adversários da proposta - como foi o caso da necessária taxa do lixo, depois renegada pelos criadores e revogada pelos sucessores -, embora seja a fórmula que tem dado certo em toda a Europa?

Que diria, então, de soluções mais radicais, como a da cidade de Drachten, na Holanda, que, com seus 50 mil habitantes, instituiu o espaço urbano sem semáforos, placas de sinalização, quebra-molas, meio-fio, lombadas elétricas, etc., segundo Antenor Pinheiro, da ANTT (O Popular, 10/3). Um espaço compartilhado por pessoas, automóveis, ônibus e motos em baixa velocidade, bicicletas. Em absoluta paz e harmonia, sem acidentes desde 2003, quando foi implantado, apenas com discretos sinais que indicam a mão de direção. Uma ideia do engenheiro Hans Moderman, falecido em 2008, mas que pode ser replicada numa parte do espaço urbano, se for o caso, em qualquer cidade.

Na verdade, caminhos há. Basta consultar a legislação vigente para verificar o quanto o poder constituído deixa de cumprir - gerando e agravando dramas nas cidades. Um bom exemplo é o da legislação em vigor para novos empreendimentos, obrigatória para todos os Poderes e empreendedores, que, se executada, evitaria ou teria evitado a maior parte dos problemas. É o caso, por exemplo, das resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

Qualquer administrador público, assim como os Tribunais de Contas da União, dos Estados ou dos municípios, deveria começar seu exame dos processos que lhe chegam à mão pela Resolução n.º 1, de 23/1/1986, que contém uma norma que impediria a execução da maioria das propostas. É o inciso I do artigo 5.º, que obriga o estudo do empreendimento a "contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto". E isso vale para projetos urbanísticos com mais de cem hectares, aterros, rodovias, ferrovias, portos e terminais, oleodutos, gasodutos, emissários de esgotos, projetos agropecuários também com mais de cem hectares. Outras resoluções do Conama incluem o controle de ruídos de indústrias ou veículos e o controle da poluição do ar (que está no centro de uma polêmica paulistana).

Tão importante quanto é o artigo 6.ª dessa Resolução 1/86, que torna obrigatórias "as análises dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas (...), discriminando: os impactos positivos e negativos, diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais". Esta última disposição, por exemplo, quantos benefícios poderia trazer a uma cidade, ajudando a evitar impactos cada vez mais danosos para seus habitantes?

O professor Filgueiras Lima tem razão em suas visões. Mas há como começar a enfrentar o Frankenstein se de fato quisermos.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Descrente Radical


Ubiratan Brasil - O Estado de S.Paulo
"Se tivesse que salvar do fogo apenas um de meus romances, salvaria Conversa no Catedral." Anos depois de dizer essa frase, o escritor Mario Vargas Llosa garante que a mantém viva. Considerado um de seus principais livros, traz o retrato do Peru durante a ditadura dos anos 1950 a partir de Zavalita, jornalista que prefere a omissão a compactuar com os políticos. Colaborador do Estado, Llosa virá a São Paulo em abril para o Fronteiras do Pensamento e falou por telefone com o repórter na sexta-feira, desde Lima, sobre a obra agora relançada pela Alfaguara.
Llosa: Em defesa do Estado laico com liberdade religiosa - Joaquim Sarmiento/Reuters
Joaquim Sarmiento/Reuters
Llosa: Em defesa do Estado laico com liberdade religiosa
Quais lembranças o senhor guarda do romance?
O romance me faz lembrar uma história interessante. Quando foi publicado, em 1969, passou despercebido pela crítica e público - só era lembrado de forma negativa, por conta de sua estrutura narrativa. Só com o tempo, foi ganhando leitores e, curiosamente, hoje é um dos meus livros mais conhecidos. Venceu a prova do tempo.
No texto escrito especialmente para o 'Estado', o crítico Carlos Granés faz uma pergunta que repasso ao senhor: que papel têm as crenças e a moral na vida humana?
É um tema atual. Um dos grandes problemas do nosso tempo é a corrupção, que afeta por igual países ricos e em desenvolvimento, democracias e ditaduras. Há um desrespeito generalizado da ética, o que provoca delinquência, especialmente na política. Isso não acontecia antes. É o que explica como governos, embora imundos e apoiados pelo narcotráfico, algumas vezes contam com apoio da população, que acredita ser assim a política. É uma atitude cínica frente ao poder, o que explica o desaparecimento da censura social ao delito. Esse é o tema central de Conversa no Catedral.
Outro detalhe importante do livro é seu personagem principal, Zavalita, que parece ser único em sua obra, não?
Sem dúvida. Zavalita é mais passivo, menos lutador, mas um personagem épico. Há uma frase vulgar no livro que o define bem: "Quem não se f..., f... os demais". Ele não quer triunfar, pois, no país em que vive, só progride quem prejudica os outros. Prefere ser vítima. Assim, embora ético, é um homem medíocre por opção e ele se destaca, sim, no contexto de meus personagens, mas é uma forma que encontrei para protestar contra a delinquência mundial.
A dificuldade de entendimento que o romance enfrentou na época de seu lançamento me fez lembrar outro livro seu, A Civilização do Espetáculo, que sairá no Brasil em outubro, no qual o senhor elogia obras que exigem do leitor um esforço tão grande como o desprendido pelo autor.
É um livro para leitores ativos, participativos, pois existe na trama uma obscuridade que reflete uma sociedade onde tudo é turvo, opaco. Procurei descrever aqui o impacto provocado pela ditadura em minha geração. Quando o general Odría deu o golpe de Estado, em 1948, éramos crianças e, quando ele deixou o poder, oito anos depois, já éramos adultos. Ou seja, passamos a adolescência em uma sociedade vertical, sem partidos políticos ou imprensa livre, além do medo instalado na população, com policiais cercando universidades. Era esse momento que tentei descrever no romance: mostrar como uma ditadura não estava confinada na política, mas que degradava a vida das famílias.
O efeito pernicioso avançou no tempo e chegou aos nossos dias, quando é cada vez mais escassa a figura do intelectual, concorda?
Totalmente. Esse é outro fenômeno inquietante de nossa época. O desaparecimento do intelectual significa também o desaparecimento das ideias e da razão como um fator central da vida social e política. Hoje em dia, as ideias foram trocadas pelas imagens, que são mais facilmente manipuláveis. Isso é uma grande ameaça para a democracia, pois uma sociedade com escassez de ideias tem suas instituições sob forte risco.
O que o senhor pensa sobre o poder das redes sociais?
Por um lado, há um aspecto positivo, pois as redes sociais aumentaram o poder da comunicação e da informação. Também dificultam a instauração da censura, como acontecia na América Latina há 40 anos - as redes sociais rompem qualquer controle. Por outro lado, o excesso de informação leva à confusão. Parece que vivemos em um bosque confuso onde não sabemos como nos orientar com segurança. Isso porque hoje em dia praticamente desapareceu uma instituição que, no passado, cumpria uma importante função na vida cultural e política: a crítica. Nas redes sociais, não há uma valoração da informação seguindo hierarquia tradicional, que distingue o essencial do secundário. Daí a confusão a que me referi antes.
E qual seria, nesse caso, a função da religião? O senhor sempre defendeu uma vida espiritual plena, mas sem nenhuma identificação com o Estado, certo?
As religiões, sem exceção, são intolerantes, pois trazem verdades absolutas, o que não combina com o espírito democrático. Ao mesmo tempo, uma democracia sem uma vida espiritual se converte em uma selva, como já disse Isaiah Berlin, em que os lobos comem todos os cordeiros. E, para que a cobiça e ambição material não regulem a vida, é preciso alimentar a vida espiritual. Mas o Estado não pode se identificar com qualquer religião - a história é pródiga em exemplos nefastos como perseguições, intolerância, inquisição. É importante ter um Estado laico com liberdade religiosa.
O que o senhor espera do novo papa, Francisco?
Espero que inicie o processo de modernização da Igreja, libertando-a de anacronismos como não tratar de temas como sexo e mulher. Caso contrário, vai continuar perdendo audiência. Os problemas com pedofilia que quase destruíram a Igreja nasceram dessa intolerância ao sexo. E Francisco parece ser moderno, com atitudes mais congregacionais.
Por falar em sexo, no livro A Civilização do Espetáculo, o senhor defende o erotismo como obra de arte.
Sim, o erotismo é resultado da cultura que, vinculado ao sexo, é transformado em uma atividade criativa. O erotismo é uma manifestação das civilizações e acontece em sociedades que alcançaram um certo nível de progresso humano. Por isso que cito muito Georges Bataille, defensor desse pensamento: ele sempre foi muito reticente à permissividade total, responsável por matar as formas, o que levaria o homem a retornar à uma espécie de sexo primitivo, selvagem. Infelizmente, isso ainda acontece em nosso tempo. 

A guerra do Miojo, por Paulo Moreira Leite



É claro que, como qualquer cidadão de bom senso, tenho muitas preocupações sobre a qualidade do ensino de nossas escolas e o desempenho dos jovens em todas as fases de aprendizado.

Mas confesso que não entendo o escândalo em torno das redações do ENEM. Ou melhor: entendo perfeitamente.

Não  passa de uma combinação de nossa velha hipocrisia em relação à garotada, combinada com um esforço permanente para desmoralizar toda iniciativa destinada a fortalecer a educação pública.

Vamos combinar que o português é uma língua complexa, de regras muito particulares e assimilação difícil. As exceções são frequentes, os casos especiais também.

O mais grave é que as regras são submetidas a reformas ortográficas periódicas, o que torna o aprendizado um esforço permanente. O sujeito mal conseguiu memorizar as mudanças quando é informado que em algum ponto do universo foram aprovadas novas regras por motivos que só estão claros para quem reside em outra galáxia.

Profissional que lida com a língua portuguesa há quatro décadas, confesso que frequentemente me vejo às voltas com dúvidas e até cometo erros que poderiam ser motivo de humilhação pública num país onde a falta de educação formal chega a ser motivo de ofensa e preconceito.

No caso do ENEM, esse comportamento se agrava por um esforço para condenar uma postura descontraída e irreverente dos estudantes. Tudo bem que é meio esquisito um sujeito interromper uma redação e dar uma receita de Miojo. Ou fazer um elogio a seu time de coração.

Mas eu pergunto se isso é o mais importante. Provas de redação devem medir a capacidade de uma pessoa se expressar. Muito mais importante, portanto, é saber se a receita está bem redigida, com pontos, vírgulas e frases no local correto, do que implicar com o assunto escolhido. Basta ler a imprensa pátria para confirmar que a distinção entre assuntos sérios e assuntos leves, questões relevantes, puro entretenimento e bobagens comerciais tornou-se muito difícil de definir, certo?

Essa postura de afirmar autoridade sobre a juventude é um traço de comportamento daninho. Reflete insegurança em relação ao futuro.

No caso do ENEM, há um agravante. O combate a todo esforço de melhorar a qualidade do ensino público é uma das bandeiras sagradas que unem os meios de comunicação, a rede privada e a indústria de vestibulares.

Com muito mais virtudes do que defeitos, o ENEM é uma ameaça à ordem criada pela privatização da educação que se transformou em política de Estado durante o regime militar – e nunca foi questionada como era preciso.

Cabe às autoridades aprimorar o ENEM, sem impressionar-se com reações histéricas nem cair na armadilha de fazer inúteis demonstrações de autoridade diante de uma garotada que, desde o início dos tempos, apenas irá dar risada daqueles que não se esforçam para compreendê-la.