sexta-feira, 8 de março de 2013

Os ricos estão mais vulneráveis


01/03/2013 - 04h00


Sabemos que a crise econômica está gerando muita pobreza. E que a desigualdade econômica se aprofundou em muitos países.
Estas realidades, contudo, ocultam outra tendência mundial importante: as grandes empresas e seus diretores estão perdendo poder. Isso é difícil de acreditar, em tempos de tanta e tão justificada indignação diante de uma crise provocada principalmente por empresários irresponsáveis ou desonestos.
Obviamente, as elites econômicas mundiais continuam em muito boa situação. Mas é um erro supor que não estejam ocorrendo transformações profundas nos altos níveis do poder empresarial.
De acordo com Emmanuel Sáez, da Universidade da Califórnia, as pessoas que formam o 1% de renda mais alta nos Estados Unidos perderam 36% de sua receita em decorrência da crise, enquanto os outros 99% perderam 11,6%.
Em 2012, 441 das 1.000 pessoas mais ricas do mundo que constam na lista da "Forbes" sofreram uma perda de patrimônio.
É evidente que uma perda de 11% na renda de uma família que a duras penas consegue chegar ao fim do mês é uma catástrofe, enquanto a perda de um terço da renda de quem ganha mais não o é. Mas o fato é que hoje os ricos estão em situação menos segura que antes.
E não apenas no que diz respeito à sua renda --seus empregos agora também estão menos seguros.
A permanência de um alto diretor em seu cargo, nos Estados Unidos, caiu pela metade desde os anos 1990 --de dez para cinco anos. Em 2011, 14% dos responsáveis máximos das 2.500 maiores empresas do mundo deixaram seus cargos involuntariamente.
A mesma coisa se dá com as próprias empresas. Um estudo de Diego Comin e Thomas Philippon mostrou que, em 1980, uma empresa dos EUA que estivesse entre as 20% superiores de seu setor apresentava risco de apenas 10% de ficar fora desse nível nos cinco anos subsequentes. Duas décadas depois, essa probabilidade chegou a 25%.
Outro risco que vem aumentando muito para as grandes empresas e seus diretores é o de sofrer um acidente que arruíne sua reputação.
Uma pesquisa da Oxford Metrica constatou que as empresas que são donas das marcas mais famosas do mundo têm, num período de cinco anos, 82% de probabilidade de sofrerem um acidente que reduza drasticamente o valor de sua marca. Duas décadas atrás, essa probabilidade era de apenas 20%.
O que tudo isso significa? Não quer dizer que o poder econômico esteja desaparecendo nem muito menos que sua capacidade de influir sobre políticos e governantes esteja se reduzindo.
Significa, sim, que a situação dos mais ricos e dos responsáveis pelas grandes empresas já não é tão cômoda, segura e permanente quanto era antes.
Como muitos outros tipos de poder (político, militar, religioso, cultural), o econômico agora é mais fácil de conquistar, mas mais difícil de exercer e mais fácil de perder.
E essa é uma boa notícia.
Tradução de CLARA ALLAIN
O escritor venezuelano Moisés Naím, do Carnegie Endowment for International Peace, foi editor-chefe da revista "Foreign Policy". Escreve às sextas na versão impressa de "Mundo".
Moisés Naím

Um grande ator não deve ser empalhado


8/03/2013 - 12h30


Hugo Chávez foi um personagem vital demais para que o encerrem em uma urna de vidro e o exponham à visitação pública, como animal empalhado.
É a opinião de quem tem verdadeira urticária ante à necrofilia, especialmente a necrofilia como instrumento político.
Admito que cadáveres embalsamados causam impacto. Nunca esqueci uma visita à quinta de Olivos, nas imediações de Buenos Aires, faz uns 30 e tantos anos, para ver a cripta em que estavam expostos Juan Domingo Perón e sua mulher Evita.
O esquife de Perón estava fechado e, portanto, não impressionava. Mas Evita, linda e loura em seu vestido branco, parecia que acabara de sair do cabeleireiro. Mas a placidez da morte não combina com personagens que foram tudo o que se quiser --de bom ou de ruim--, mas nunca foram plácidos.
Chávez era um furacão, vital, divertido, um extraordinário ator, que "deu horas de glória ao espetáculo da política", como escreveu para "El País" o colunista Lluís Bassets.
Fui testemunha ocular de alguns desses momentos em que ele foi exatamente como o descreveu a revista "The Economist" que está nas bancas: "Ele demonstrou ser um comunicador e um 'performer' natural, com inigualável habilidade para despertar empatia com os venezuelanos comuns, combinado com muita astúcia".
E olhe que a reportagem da revista é implacável com Chávez, a ponto de dar como título de capa "Um legado podre".
O espetáculo que vi foi em 2001, cúpula do Mercosul em Assunção do Paraguai. Os presidentes iam chegando ao elegante Yacht y Golf Club Paraguayo, recebidos por um trio que tocava e cantava guarânias, a música típica do país anfitrião.
Passou Fernando Henrique Cardoso que, pouco à vontade com o folclore do conjunto, entrou rapidamente. Passou Fernando de la Rúa, o presidente argentino, ainda mais refratário ao espetáculo e ainda mais apressado para entrar.
Aí veio Chávez. Parou junto aos músicos e puxou o canto de "Alma Llanera", uma espécie de hino nacional extra-oficial da Venezuela. Todo um espetáculo.
Depois ficou batendo papo descontraído com os três ou quatro jornalistas que havíamos furado a barreira de segurança e estávamos onde não poderíamos estar.
Soltou aquelas frases de efeito sobre o "câncer" que seria o neoliberalismo, pediu café, ofereceu café aos repórteres, a conversa seguiu como se estivéssemos no botequim da esquina, até um segundo café e a retirada para o interior do hotel.
Volto a Lluís Bassets para falar do ator Chávez, que o político e líder já foi dissecado em mil textos no mundo todo: "[Chávez] é mais virtuosismo que roteiro, mais qualidade de atuar que direção, mais instinto que inteligência, embora esta tampouco tenha lhe faltado na hora de alcançar o poder e, sobretudo, mantê-lo e concentrá-lo em sus mãos".
Dá até para dizer que sua carreira é produto de uma atuação teatral (no caso, televisiva), a julgar pelo que escreveram seus biógrafos Cristina Marcado y Alberto Barrera Tyszka: converteu "um mau golpe de Estado no melhor anúncio publicitário da década".
Alusão a seu comparecimento na TV depois do fracasso de sua tentativa golpista em 1992, que acabou sendo a catapulta para o posterior sucesso.
Um segundo momento cinematográfico vivido com o chavismo se deu em dezembro de 2002, oito meses depois do golpe que o derrubou por menos de 48 horas e no meio de uma greve da PDVSA (a Petrobras venezuelana) que ameaçava desestabilizá-lo.
Chávez marcou uma entrevista comigo e com Vladimir Goitia, então na Agência Estado, para as 22h, no Palácio de Miraflores.
Atendeu-nos por volta de uma da madrugada. Saímos às duas.
O ajudante de ordens que nos acompanhou até a rua foi abrindo eletronicamente uma porta atrás da outra. Na quinta ou sexta (e última) comentou: "Não parece aquele filme, o 'Agente 86'"?. Parecia realmente coisa de cinema, não de um palácio de governo meio sitiado pela crise.
Clóvis Rossi
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial daFolha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às terças, quintas e domingos no caderno "Mundo". É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo" e "O Que é Jornalismo". Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa do caderno "Mundo" e às sextas no site.

Salva-vidas de chumbo - de 2006, mas vale!

16/08/2006 - 01h08

Por Eduardo Galeano (*)
Montevidéu, agosto/2006 – Nossos países se modernizam. Agora, o discurso oficial manda honrar a dívida (embora seja desonrosa), atrair investimentos (embora sejam indignos) e entrar no mundo (ainda que pela porta de serviço). Na realidade, continuamos acreditando nas histórias de sempre. A América Latina nasceu para obedecer ao mercado mundial, ainda quando este mercado não se chamava assim, e mal ou bem seguimos atados ao dever de obediência.

Esta triste rotina dos séculos começou com o ouro e a prata e seguiu com o açúcar, tabaco, guano, salitre, cobre, estanho, borracha, cacau, banana, café, petróleo. O que nos deixaram esses esplendores? Nos deixaram sem herança nem querência. Jardins transformados em desertos, campos abandonados, montanhas esburacadas, águas podres, longas caravanas de infelizes condenados á morte precoce, vazios palácios onde perambulam os fantasmas? Agora é a vez da soja transgênica e da celulose. E novamente se repete a história das glórias fugazes, que ao som de suas trombetas nos anunciam longas infelicidades.

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O passado será mudo? Nos negamos a ouvir as vozes que nos advertem: os sonhos do mercado mundial são os pesadelos dos países que se submetem aos seus caprichos. Continuamos aplaudindo o seqüestro dos bens naturais que Deus, ou o diabo, nos deu, e assim trabalhamos por nossa própria perdição e contribuímos para o extermínio da pouca natureza que resta neste mundo.

Argentina, Brasil e outros países latino-americanos vivem a febre da soja transgênica. Preços tentadores, rendimentos multiplicados. A Argentina é, há algum tempo, o segundo produtor mundial de transgênicos, depois dos Estados Unidos. No Brasil, o governo de Lula executou uma dessas piruetas que fazem pela democracia e disse sim à soja transgênica, embora seu partido tenha dito não durante toda a campanha eleitoral.

Isto é pão para hoje e fome para amanhã, como denunciam alguns sindicatos rurais e organizações ecologistas. Mas já se sabe que os camponeses ignorantes se negam a entender as vantagens do pasto de plástico e da vaca a motor, e que os ecologistas são uns estraga-festas que sempre cospem no assado.

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Os defensores dos transgênicos afirmam que não está provado que prejudicam a saúde humana. Em todo caso, tampouco está provado que não a prejudicam. E, se são tão inofensivos, por que os fabricantes de soja transgênica se negam a declarar, nas embalagens, que vendem o que vendem? Ou, por acaso, o rótulo de soja transgênica não seria a melhor publicidade?

Mas há evidências de que essas invenções do doutor Frankenstein afetam a saúde dos solos e reduzem a soberania nacional. Exportamos soja ou exportamos solo? E, por acaso, não ficamos presos nas jaulas da Monsanto e outras grandes empresas de cujas sementes, herbicidas e pesticidas passamos a depender?

Terras que produziam de tudo para o mercado local, agora se consagram a um só produto para a demanda estrangeira. Me desenvolvo para fora, e me esqueço do que tem dentro. O monocultivo é uma prisão, sempre foi, e agora, com os transgênicos, muito mais. A diversidade, por outro lado, libera. A independência se reduz ao hino e à bandeira se não existe soberania alimentar. A autodeterminação começa pela boca. Somente a diversidade produtiva pode nos defender das súbitas quedas de preços que são costume, costume mortal, do mercado mundial.

As imensas áreas destinadas à soja transgência estão arrasando as florestas nativas e expulsando os camponeses pobres. Poucos braços ocupam estas explorações altamente mecanizadas, que, por outro lado, exterminam as pequenas plantações e hortas familiares com os venenos que utilizam. Multiplica-se o êxodo rural para as grandes cidades, onde se supõe que os expulsos vão consumir, se tiverem a sorte, o que antes produziam. É a agrária reforma. A reforma agrária ao contrário.

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A celulose também entrou na moda, em vários países. O Uruguai, para não ir mais longe, está querendo se converter em um centro mundial de produção de celulose para fornecer matéria-prima barata a distantes fábricas de papel. Trata-se de monoculturas de exportação, na mais pura tradição colonial: imensas plantações artificiais que dizem ser florestas e se convertem em celulose em um processo industrial que despeja dejetos químicos nos rios e torna o ar irrespirável. Aqui começaram a ser construídas duas fábricas enormes, uma delas já no meio da construção. Depois foi incorporado outro projeto, e se fala de outro e de outro mais, e mais hectares estão sendo destinados à produção de eucaliptos em série.

As grandes multinacionais nos descobriram no mapa e brotaram subitamente cheias de amor por este Uruguai onde não há tecnologia capaz de controlá-las, o Estado lhes concede subsídios e isenção de impostos, os salários são raquíticos e as árvores brotam em um piscar de olhos. Tudo indica que nosso pequeno país não poderá suportar o asfixiante abraço destes grandões. Como costuma ocorrer, as bênçãos da natureza se transformam em maldições da história. Nossos eucaliptos crescem 10 vezes mais rápidos do que os da Finlândia, e isto se traduz da seguinte maneira: as plantações industriais serão 10 vezes mais devastadoras. Ao ritmo de exploração previsto, boa parte do território nacional será espremida até a última gota de água. Os gigantes sedentos vão secar nosso solo e subsolo.

Trágico paradoxo: este foi o único lugar do mundo onde se submeteu a plebiscito a propriedade da água. Por esmagadora maioria, os uruguaios decidiram, em 2004, que a água seria de propriedade pública. Não haverá maneira de evitar este seqüestro da vontade popular?

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É preciso reconhecer que a celulose se converteu em algo com uma causa patriótica, e a defesa da natureza não desperta entusiasmo. E pior: em nosso país, doente de celulite, algumas palavras que não eram más palavras, como ecologista e ambientalista, estão se transformando em insultos que crucificam os inimigos do progresso e os sabotadores do trabalho. Comemora-se a desgraça como se fosse uma boa notícia. Mais vale morrer de contaminação do que morrer de fome: muitos desempregados acreditam que não há mais remédio a não ser escolher entre duas calamidades, e os vendedores de ilusões desembarcam oferecendo milhares e milhares de empregos.

Mas uma coisa é a publicidade, e outra a realidade. O MST, o movimento de camponeses sem-terra divulgou dados eloqüentes, que não valem apenas para o Brasil: a celulose gera um emprego para cada 185 hectares, enquanto a agricultura familiar cria cinco postos de trabalho para cada 10 hectares. As empresas prometem o melhor. Trabalho em abundância, investimentos milionários, controles rígidos, ar puro, água limpa, terra intacta. E é o caso de se perguntar por que não instalam estas maravilhas em Punta del Este, para melhorar a qualidade de vida e estimular o turismo em nosso principal balneário? (IPS/Envolverde)

(*) Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio, autor de As veias abertas da América Latina e Memórias do Fogo.

(Envolverde/ IPS)



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