quarta-feira, 6 de julho de 2011

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Rolf Kuntz
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A armadilha

06 de julho de 2011 | 0h 00
Rolf Kuntz - O Estado de S.Paulo
A presidente Dilma Rousseff está numa armadilha. Seis meses depois da posse ela continua enrolada em trapalhadas e escândalos criados por ministros comprometidos muito menos com ela do que com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Só a força desse esquema explica a sobrevivência do ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, depois da demissão de quatro de seus mais importantes auxiliares. Diante do escândalo e da reação da presidente, o ministro convocou uma reunião partidária. Foi uma óbvia demonstração de força para intimidá-la. O recado é claro: se houver demissão, o governo se arriscará a perder os votos do PR, componente da base parlamentar montada por Lula. Se ficar acomodada, a presidente confirmará uma das piores profecias do ano passado: seu papel principal será ocupar a cadeira até a volta do Grande Líder. Se quiser governar de fato, precisará libertar-se e para isso terá de fazer muito mais que demitir o ministro Alfredo Nascimento.
A presidente Dilma Rousseff gastou boa parte do primeiro semestre - um oitavo de seu mandato - enfrentando problemas criados por ministros e tentando fazer funcionar uma administração emperrada. Uma das heranças mais complicadas e mais custosas do governo anterior é o compromisso de hospedar no Brasil a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Todas as obras estão muito atrasadas, porque nada se fez em quatro anos para cumprir as promessas. As obras dos estádios vão mal, mas o ministro do Esporte, Orlando Silva, continua no cargo, embora sua capacidade administrativa tenha sido testada amplamente, com péssimo resultado, já no governo Lula. Seu desempenho atual é apenas a continuação do observado nos anos anteriores, talvez com alguma piora. O Tribunal de Contas da União recentemente o acusou de tentar ocultar informações sobre as despesas da Copa. Terá a presidente notado essa acusação?
O ministro dos Transportes é um velho conhecido da presidente. Quando ministra da Casa Civil, no governo anterior, ela já o havia cobrado pela demora na realização de projetos. Chegou a expô-lo a uma situação constrangedora numa acareação diante do presidente Lula. Nenhuma surpresa, portanto, exceto, talvez, por um detalhe: uma farra das proporções apontadas pela Veja pode ter ido além de suas expectativas.
Com a criação da Secretaria da Aviação Civil, em março, a presidente pareceu disposta a mexer na herança de incompetência administrativa. A nova secretaria assumiu algumas funções antes subordinadas ao Ministério da Defesa e passou a controlar a Infraero. A mudança deveria servir para o governo apressar a construção e a reforma de aeroportos. Também essas obras estavam atrasadíssimas, embora o governo as tivesse previsto quando se comprometeu com a realização dos jogos.
Os atrasos continuam. As mudanças provavelmente foram insuficientes para tornar a administração do setor mais dinâmica. De janeiro a abril, segundo a organização Contas Abertas, a Infraero investiu apenas 6,5% dos R$ 2,2 bilhões orçados para 2011. Tudo isso ajuda a explicar a decisão do Palácio do Planalto de privatizar alguns dos principais aeroportos, mas, mesmo assim, o cumprimento dos prazos continua duvidoso.
Uma das heranças mais pesadas - e já muito comentada - foi deixada no Ministério da Educação, uma das principais fontes de encrencas para a administração da presidente Dilma Rousseff. Nenhum princípio gerencial explica a tolerância a esse foco de problemas.
A herança inclui também o presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho, e a orientação definida para a instituição no governo anterior. O administrador, nesse caso, pode ser bem preparado e eficiente, mas a estratégia continua sendo a de criar os tais "campeões nacionais". O desastrado envolvimento do BNDES no projeto de fusão do Pão de Açúcar com o grupo francês Carrefour é mais um capítulo de uma longa série de desacertos quase cômicos. O governo ainda pode abandonar essa aventura imprudente e despropositada, evitando o risco de graves complicações legais. Mas o cidadão brasileiro terá motivos para se preocupar enquanto persistir a política do governo anterior. O custo dessa política para o Tesouro é apenas uma parte do problema. Seus aspectos mais graves são outros, a começar pelo caráter autoritário e arbitrário dessa forma de intervenção. Planejamento econômico é outra coisa e passa longe da concessão de benesses a alguns eleitos.
Será difícil escapar da armadilha. A coalizão de governo é essencialmente uma aliança para a divisão das vantagens acessíveis, por bem ou por mal, a quem exerce o poder. A presidente Dilma Rousseff terá de ser corajosa e hábil para quebrar as amarras sem sofrer grandes danos. Será muito arriscado. Mas, se não o fizer, nunca assumirá de fato o governo.
JORNALISTA 

O problema do ''ex''


06 de julho de 2011 | 0h 00
Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo
Depois dos 80 anos bem vividos e sucedidos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem eu envio meus parabéns pela passagem do seu aniversário; e da passagem definitiva do igualmente ex-presidente e senador Itamar Franco, a quem eu rendo modesta homenagem pelo que fez pelo Brasil, vale especular sobre o que é ser um "ex".
Sobre o que significa deixar de ter sido um protagonista de um cargo ou papel social. Todos, diga-se logo, somos "ex" de alguma coisa ou pessoa. Por isso, o prefixo tem um lado ambíguo quando não claramente negativo, sobretudo em sociedades como a nossa, na qual a regra é sempre acumular poder (sobretudo o poder público) e, assim, multiplicar nosso patrimônio (real ou simbólico), porque os rios correm para o mar e quem é rei jamais perde a majestade. Nosso ideal é ficar por cima da carne-seca; isto é, por cima das leis. De todas as leis!
Hoje, temos uma clareza muito maior das diferenciações e das contradições entre atores e papéis, sobretudo os que se realizam por meio de cargos públicos. Mas chegar a essas distinções entre atores e papéis não é fácil num sistema que ainda não conseguiu desmistificar-se e até hoje deseja ter ídolos, e resiste a abandonar velhas hierarquias e utopias políticas ultrapassadas. Ainda somos o país do "maior" disso ou daquilo e do "número 1" nisso ou naquilo. Amamos as hierarquias que nos distinguem uns dos outros e nos situam como privilegiados, mas, simultaneamente, queremos também a igualdade e continuamos a ter o coração do lado dos pobres e dos oprimidos. As duas mãos, como o papel e o ator, ainda não se encontraram.
No fundo, distinguir pessoas de papéis é poder ver com clareza os sacrifícios impostos pelos cargos, pois se eles são do povo, é a coletividade quem os controla. Mas não é fácil fazer isso sem perder de vista o modo pelo qual os atores deles se apropriam. Pois se o papel coage, obrigando a enxergar deveres, os atores que neles entram quase sempre só querem ver os seus privilégios. Esse encontro do papel (que não nos pertence) e do ator que cada um de nós pode ser conduz à tal "ética" e ao tal "bom-senso", tão em pauta neste Brasil que vai ficando cada vez mais igualitário.
Hoje, o mal-estar da política está justamente nessa apropriação de cargos públicos sem uma discussão apropriada dos laços que devem unir os atores aos cargos públicos (ou coletivos) que ocupam. A democracia depende dessa conta de chegar, pois os cargos são instrumentos da coletividade e não marionetes de partidos e de pessoas.
Mas não se precisa ir muito longe para ver que o diálogo entre atores que abusam do papel e o papel que precisa englobar os atores é o grande drama de todo processo democrático igualitário. Pois, o que é um caudilho ou um ditador senão um sujeito que se apossou do papel de presidente da República, violando-o quando o interpreta do ponto de vista dos seus privilégios e jamais dos seus deveres? No Brasil, a eleição ainda é um mecanismo que sanciona mais o abuso do ator no papel do que o seu contrário.
Aliás, em certos países, quem ocupa um cargo público tem a sua vida pessoal controlada. A entrada num cargo do Estado obriga a redefinir os laços com a sociedade, pois, como dizia Tom Paine em pleno século 18, a sociedade é positiva e diz sim; ao passo que o Estado é sempre controlador, disciplinado e negativo, dizendo não. Um vai na nossa direção com suas amizades e seus compadrios; o outro, porém, com seus impostos e obrigações, vai contra nós. A democracia é um cabo de guerra entre essas duas tendências. Tensão para a qual não há leis ou códigos, mas apenas bom-senso e senso de limites.
Daí o elo importante entre saber ser um "ex" quando se ocupa certos cargos. A demanda de transparência (e de consciência) entre o mundo público e o universo privado - entre a casa e a rua - é um tema complexo e delicado, mas fundamental numa sociedade que adotou o ideal da igualdade e da democracia como guia ou causa perdida. Essas causas, acrescento com Frank Capra, pelas quais vale a pena viver e lutar.
Não é preciso fazer um curso de sociologia para compreender que nos comunicamos com o mundo por meio de personagens que nos são impostos por nosso grupo social. Tomamos consciência da vida através de papéis. Primeiro, como crianças, como pessoas que pertencem a uma casa onde passamos a jovens. Em seguida, viramos pais e pessoas maduras, prontas a serem julgadas por aqueles que nos criaram ou viram crescer. Finalmente, viramos velhos com a obrigação de tudo compreender, tudo dar e segurar tudo que nos atinge. Após esse tango interminável, parecido com uma masturbação sem orgasmo, somos aposentados e - doentes ou fisicamente exaustos - morremos e viramos aquele complexo "ex" eterno que cabe aos mortos.
Não é fácil ocupar papéis exclusivos e importantes como o de presidente da República numa sociedade cujo credo oscila entre leis e pessoas como solução para seus problemas. Pois todo presidente, sendo uma pessoa e tendo o poder de legislar, tem as duas capacidades. Por isso, figuras como Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso são raras. O primeiro, porque colocou o papel acima de sua pessoa e buscou consolidar instituições em vez de seguir o caminho do populismo. Hoje ele repousa na glória de sua vida produtiva. O segundo porque revela ao País que o "ex-presidente" representa o Brasil na sua integridade de sociedade e de Estado. Como um "ex" fora do sistema de politicagem, ele faz Política com "p" maiúsculo. Pois sabe que a Presidência não é de ninguém e, assim, demonstra pelo exemplo que ela deve ser preservada de causas menores, devendo ser tão grande quanto o povo a quem deve honrar e servir. 


terça-feira, 5 de julho de 2011

''O arcabouço da democracia está montado. a alma, não''


Para ex-presidente, País precisa de 'convergência' para avançar e visão dualista de que PT é povo e PSDB é elite precisa acabar

03 de julho de 2011 | 0h 00
Malu Delgado e Marcelo de Moraes - O Estado de S.Paulo
Horas depois da homenagem que recebeu do PSDB em Brasília na quinta-feira pela celebração de seus 80 anos, o ex-presidente recebeu o Estado em seu apartamento na capital paulista, em Higienópolis. O cansaço não encobria a felicidade evidente. Desabrido, pregou o fim da tensão com o PT - "é importante para a democracia" - e fez uma análise sobre a atual conjuntura, com a sensatez de sociólogo e a maturidade de ex-presidente. Sobre seu governo, enumera com orgulho os avanços que conquistou - e também os reconhece na Era Lula. A preocupação, hoje, é com a solidez da democracia. "O esqueleto está aí", diz. Mas ainda temos um longo caminho a percorrer.
Jonne Roriz
Jonne Roriz
Planície. FHC em sua casa, ao lado de retrato de Ruth
O sr. lavou a alma nesta homenagem do PSDB aos seus 80 anos com o reconhecimento que faltou em momentos do passado?
(Risos). Não só hoje. Olha, hoje o meu partido se desdobrou em gentilezas, reconhecimentos. Foram muitos, do PT, de todos os partidos. Eu disse assim: Parece que eu morri, porque no Brasil só se elogia morto (Risos). Acho que o PSDB sempre me tratou bem, com carinho. O que tem é que às vezes, nas campanhas eleitorais, por razões de marquetismo (marketing), um opina uma coisa, outro outra, então... Nunca acotovelei ninguém para aparecer nem para buscar reconhecimento. É difícil julgar processos de mudanças que não são atos, sobretudo quando o outro que ganha quer se empenhar em fazer de conta que ele começou tudo. O que interessa mesmo para o homem público ou para o intelectual é o julgamento da história, que é feito quando você está morto. Não adianta nada. É melhor você ter isso que eu tive agora, vivo, do que saber o que vai acontecer no futuro. Pelo menos você diz: está bem, fui reconhecido. Claro que foi bom para mim. Não é só para mim. O que é bom no Brasil é não mantermos uma tensão permanente e desnecessária, que era o que estava acontecendo.
Uma tensão política, PT e PSDB?
Fla-flu, é. Isso não é positivo. Repito: a Dilma teve um papel, porque ela teve um gesto. Você pode dizer que é banal. Não é banal não. Ela mudou muito a ênfase do que se dizia, e também não foi além do necessário. Não foi para dizer que não temos divergências. Temos, mas podemos conviver de uma maneira civilizada. Isso é importante para a democracia. Essa tensão permanente é do pessoal que acredita que a mudança, hoje, ainda se dá por ruptura. Mas quando a sociedade é aberta, a mudança não se dá por ruptura, se dá por acumulação.
E o sr. acha que o responsável por isso foi o ex-presidente Lula?
Não só. Acho que foi o espírito de competição do PT num dado momento, que é normal. Preparei uma legislação para facilitar a transmissão de poder. Quando eu passei a faixa para o Lula eu tive emoção. As pessoas se esquecem, mas nas grandes greves eu estava lá ao lado do Lula. Mais para frente, nas Diretas Já, aqui, na Praça Charles Miller, o PT fez uma manifestação, e eu fui representando o PMDB. Eu não fui vaiado porque tive que dizer que o Teotônio Vilela tinha morrido. Daquele momento em diante começa esse tipo de atitude política, que tem a ver com a visão passada, de que só um partido vai mudar o Brasil, só uma classe é capaz de ter papel na história, e de que ficam predestinados a governar. Então quando eu ganhei duas vezes do Lula eu estava atrapalhando o destino histórico do Brasil. Essa é a percepção deles. Eu queria quebrar isso. Tínhamos convivido bem na transição. Esperava que dali em diante houvesse uma certa distensão. Mas, logo em seguida, o PT resolveu que o PSDB era o inimigo. O (José)Dirceu queria fazer uma aliança com o PMDB, não conseguiu, e fizeram aquela aliança que deu no mensalão. O mensalão é fruto dessa irracionalidade, da impossibilidade de ver que forças que eram mais próximas poderiam se entender em certas questões e que não seria preciso os meios que foram usados. A política no Brasil virou escândalo. Para ter vantagem eleitoral o PT tinha que pintar o PSDB como o da elite. Ora, isso é uma visão simplista. A diferença entre o PT e o PSDB é muito mais política. É como se tivesse prevalecido em setores importantes do PT a ideia leninista. Ou seja, tem um partido da classe historicamente capaz de mudar a sociedade, esse partido ocupa o Estado, e o Estado muda a sociedade. O PSDB é mais contemporâneo. A sociedade tem que ter peso equivalente ao do Estado.
Por que o PSDB não se liberta da pecha de elitista?
É curioso, porque é uma pecha fácil de se libertar. O PSDB ganha, na verdade, nos Estados em que há mais mercado, e o PT onde o Estado tem que ajudar muito porque o mercado é mais débil. Agora, nos Estados em que há mais mercado, o PSDB ganha também nas classes populares. Isso é uma imagem que tem que ser destruída. Deriva desta visão dualista que precisa acabar, que um elite, o outro povo. O Lula pertente à elite política, obviamente. Então essa é uma ideia falsa que o PSDB precisa encontrar mecanismos de destruição disso, enfrentando. Porque você não desfaz as coisas se ficar com medo. Quando você olha o salário mínimo real, aumentou desde o governo Itamar, com o Real, e seguiu no meu, e seguiu no do Lula. É cumulativo.
O sr. vê mais traços de continuísmo que inovação no governo Lula?
O tripé econômico está aí, mal ou bem. As agências regulatórias estão aí, umas funcionam outras não. Acho que o Lula deu amplitude muito maior aos programas sociais porque ele se beneficiou de uma conjuntura boa, mas não só por isso. Ele representava diretamente esse setor. O Brasil, no que diz respeito ao hardware, avançou muito. As empresas brasileiras são muito boas. A empresa estatal brasileira virou empresa. Deixou de ser repartição pública. Compete. Agora, falta muito no software. O esqueleto está aí. Isso vale para tudo. O arcabouço da democracia está montado; a alma, não. Porque você não tem ainda aquele sentimento que é básico na democracia de que pelo menos perante a lei nós somos todos iguais, apesar das desigualdades sociais. Aqui a lei não é igual para todos. Você não pode passar a mão na cabeça de quem transgrediu. Se há um lado que o Lula podia ter nos poupado é esse permanente de, se tem um deslize, ele dizer que não foi grave. No fundo, é uma coisa de cultura política. Está um pouco fora de moda de falar, mas faltam valores democráticos. Alguns foram introduzidos, como a ideia de que a igualdade econômica é importante. Houve dois momentos grandes da queda da pobreza. O primeiro foi o Real, consistente. Agora foi esse boom econômico atual, mais as bolsas (transferência de renda). Não gosto desta ideia de que falta um projeto nacional. É autoritário. Por isso que eu fiquei contente com essa pelo menos aparente mudança de atitude (com o gesto da presidente Dilma). Nas sociedades modernas, você tem que buscar algumas estratégias de adesão. Convergência não é adesão ao partido. Convergências sobre alvos comuns. E aqui temos que olhar para a frente. E não ficar simplesmente nos gabando do que já fizemos. Tem que crescer, tem que dar emprego, mas tem que entender o que vem pela frente. Nós não introjetamos efetivamente os desafios produzidos pelo meio ambiente. Se o Brasil quiser ser realmente um País de primeiro mundo, é educação, tecnologia, disciplina, cultura mais pragmática de produção. Temo que estejamos nos acomodando a voltarmos a ser uma grande economia produtora de matéria prima e minério. Está faltando uma certa praticidade e uma determinação de continuidade. Quando a política obriga a repartir muito, e a ter o zigue-zague, impede a continuidade da administração. Tem que evitar o butim do Estado.
O Congresso hoje não tem agenda própria. Isso preocupa?
As grandes decisões nacionais não passam mais pelo debate público. Há uma despolitização que é fruto, por um lado, da prosperidade - então as pessoas não têm que se mover tanto -, e por outro lado o fato de que houve uma acomodação sobre os problemas no sentido em que só um opina. Tem que repolitizar. Não transformar só em nomeio ou não nomeio. Tenho a impressão de que a presidente Dilma resiste um pouco a esse estilo de política.
Há riscos inflacionários - sobretudo no processo global - que possam afetar o desenvolvimento do País?
Sempre há (risco) no processo global com o que os EUA estão fazendo, que é inundar o mundo de dólares. Têm efeitos que podem ser inflacionários. Mas aqui a nossa inflação não vem só de fora para dentro, vem de dentro também. A expansão do gasto desordenada nos dois anos do governo Lula obrigou o governo atual a ter uma posição fiscal mais rígida. Com o Real criamos mecanismos de controle. Acho que dá para controlar se fizer uma política fiscal austera. Agora, se quisermos aumentar a produtividade, as reformas têm que voltar. Temos uma relativa desindustrialização no Brasil.
O sr. se engajou num debate importante sobre a regulamentação da maconha. A política brasileira é refém dos costumes?
Em geral a política é refém dos costumes. Esse debate, a meu ver, tem que ser na sociedade antes de ser na política. Não é hora de fazer esse debate no Congresso. É hora de fazer agitação na sociedade. Eu entrei nessa questão pelas minhas preocupações globais. Eu li um livro, de um amigo meu, o Moisés Naím, chama-se Ilícito, onde ele mostra a globalização do crime na década de 90. Tudo virou uma teia mundial e está tendo efeitos devastadores no planeta. Agora, criamos uma Comissão Global de Drogas. Fizemos um relatório muito importante, porque dá recomendações. Não é de liberar. É dizer: olha, cuidado, vamos tentar separar a maconha e combater o uso. Combater sem jogar na cadeia, combater o criminoso. Tirar do aspecto puramente repressivo e ir para a redução do dano.
Como presidente foi mais conservador do que gostaria? Fez revisionismos de seu governo?
Nenhum presidente tem liberdade para implementar o que deseja. Já disse inúmeras vezes que poderia ter desvalorizado o Real sem que explodisse o mercado. Quando? Não sei. Talvez em janeiro de 1997, antes da crise da Ásia. As pessoas falam: populismo cambial para ter reeleição. Que reeleição? Era medo da volta da inflação. Há outras coisas que poderia ter feito. Talvez eu tenha sido demasiado ambicioso em mandar muitas reformas. Talvez eu pudesse ter sido mais comedido. Muitas coisas talvez teria feito de outra maneira. Mas são águas passadas...
O sr. se arrepende de não ter se engajado na campanha do José Serra (em 2002) ? O sr. foi neutro. Se arrepende de não ter feito o que o Lula fez para Dilma?
Não me arrependo porque acho que o que o Lula fez foi errado. Você não pode jogar a máquina. O Estado é de todos. O presidente representa o Estado. Quando esse presidente entra na jogada e usa recursos do Estado, ele está favorecendo uma parte. E ele não pode fazer isso. O presidente, certas horas, tem que virar magistrado, ainda que seu partido perca. Seu partido tem que crescer por si. É claro que eu queria que o Serra ganhasse, mas não acho que deveria ter sido diferente. Vou dizer uma coisa que pouca gente refletiu sobre: o meu sucessor natural, do meu partido, morreu. Era o Mário Covas. Isso tínhamos já conversado. Na última conversa que eu tive com ele sobre esse assunto ele já não podia mais, porque estava doente. Então não tinha um sucessor natural no partido.
Se decidiu pelo Covas quando?
Olha, me decidi por ele quando houve a reeleição. O Mário era muito resistente à história da reeleição. Ele podia ser candidato, ele próprio, como poderia o Serra também, o Maluf e o Lula. Mas se opuseram. Eu compreendo isso. O Mário disse: então não vou me reeleger aqui. Ele era leal. Não atrapalhou a reeleição. Era contra, mas não atrapalhou. Disse que em São Paulo não concorreria. Eu vim a São Paulo. Disse: "Mário, você me desculpe, vai ter que ser candidato, ou então vamos perder a reeleição. Agora, tenha certeza de que, na próxima eleição, você é o meu candidato". Isso ninguém sabia.
Ele aceitou?
Ele não aceitou, propriamente. Talvez tivesse ficado meio desconfiado. Mas eu lembro que... o Pimenta da Veiga está vivo... Estou com um medo dessas coisas porque as pessoas vão morrendo e eu estou vivendo demais... Isso atrapalha... Não tenho a base de apoio. (Risos) O Mário foi ao (Palácio)Alvorada e o Pimenta foi com ele. Neste dia que eu disse: "Mário, agora temos que efetivar" (a candidatura). Foi nesse dia que ele me disse que não podia.
O sr. se lembra quando foi isso?
Em que ano que ele morreu? Foi 2001, por aí. Aí ficamos sem um sucessor natural. Como tomei a decisão, quando deixei o governo, de me afastar da política partidária para ser ex-presidente e não candidato a outras coisas, de alguma maneira eu deixei um espaço que abriu oportunidade para muita discussão interna. Não se estabeleceu uma hierarquia clara. Ficou sempre tensionada a sucessão. Seria pretencioso da minha parte dizer que se tivesse mais ativo eu imporia. Não sei. Não é meu temperamento e o PSDB não tem dono. Ou você tem uma liderança natural ou não vai. Eu virei presidente não porque eu quisesse. Foi por causa do Real. Ou era eu ou perdia. O Mário seria aceito porque tinha a liderança natural.
O caminho está mais pavimentado e natural para o Aécio Neves em 2014?
Está difícil prever isso hoje. Nós temos dois, três, até quatro pessoas que têm alguma aspiração e mérito para isso, que estão em posições diferentes. No fundo, quem é o candidato de um partido quando esse partido não tem dono? É aquele, que num dado momento, dá impressão à opinião pública de que ele é uma pessoa que pode ganhar. Agora temos que cuidar de eleição municipal. Depois, vamos ver quem, neste período, se firmou como líder nacional. O Serra já tem ressonância nacional, mas está fora do jogo de posições institucionais. O Aécio ainda não tem ressonância nacional, mas tem uma posição institucional forte no Congresso. O Geraldo (Alckmin) também, ou até o Marconi (Perillo). Qual deles vai, daqui a três anos, estar batendo com o sentimento do País? Quem é que sabe? Sofremos do mal da abundância. No PT só tem um, o Lula.
O sr. é a favor das prévias no PSDB?
Depende de como. Quem vota? Quem está qualificado para? Tem que definir melhor, com antecedência. É tarefa para a direção atual do partido.
Vivemos a falência do DEM, criação do PSD, e a dificuldade de sobrevivência da Marina Silva, que com 20 milhões de votos não conseguiu ficar no PV. O sr. diz que o voto não dá mais legitimidade sozinho. Como analisa o avanço das redes sociais - um exemplo é a repercussão do metrô de Higienópolis - e as respostas da classe política a isso?
Diga-se de passagem que eu sou ultra favorável ao metrô de Higienópolis, viu! Hoje, nesse tipo de sociedade, aberta e moderna, a mensagem é muito importante. O Obama não tinha probabilidade de ganhar da Hillary na primária. Ganhou na mensagem. Coisa simples: Yes, we can. A Marina é um pouco isso. Ela tem uma trajetória e tem uma mensagem. Será suficiente para isso galvanizar? Não sei. Mas isso mostra que realmente hoje se você for fiado apenas nos mecanismos tradicionais pode não chegar lá. A Dilma chegou fiada no carisma do Lula. Essa questão da deslegitimação da representação é complicada, porque você não tem uma democracia sem instituições. E as instituições parece que estão indo para um lado e a opinião vai para outro. A agenda da internet é uma, a do Congresso, quando tem, é outra, e a do governo é outra. A internet explode, mas não constrói. Os partidos vão ter que continuar existindo. As instituições vão ter que continuar existindo. Como é que você faz com que elas se acasalem é que é o problema. Naquele meu artigo que deu tanta polêmica, o que eu estava querendo dizer era isso. Olha, têm novas camadas aí. São radicais livres, estão soltos, não têm representação. Votam, mas não se sentem representados. Nossa cultura é de comando, e a cultura moderna é de persuasão. Então esse caminho nós temos que percorrer ainda.