sábado, 5 de março de 2011

Muros na beira da Marginal. A arma do governo para o Tietê não transbordar

Tiago Dantas - O Estado de S.Paulo
Até o fim do ano, o Estado pretende construir quatro muros de contenção na Marginal do Tietê, retirar 2,8 milhões de m³ (230 mil caminhões) de sedimentos dos dois maiores rios da capital e entregar um piscinão na bacia do Pirajuçara, na zona sul. As medidas fazem parte de um pacote antienchente anunciado ontem pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) - que inclui ainda outros seis piscinões e obras de proteção à várzea do Tietê.
Os investimentos em obras de drenagem na Região Metropolitana de São Paulo devem subir de R$ 285 milhões para R$ 558,5 milhões, de acordo com Geraldo Alckmin. Nem o crescimento de 96% no orçamento, porém, será suficiente para acabar com as enchentes na cidade ou com o transbordamento do Tietê, que já ocorreu três vezes neste ano.
Muros. Uma das formas de evitar que a água do Tietê volte a invadir as pistas será construir muros de até 1,5 metro de altura (com a largura que for necessária) nas laterais da calha, apenas nos trechos em que a pista foi rebaixada, para permitir a passagem de caminhões sob as pontes - o que fez o asfalto ficar abaixo do nível do rio.
Além de represar o curso d"água, o sistema adotado - chamado de dique pelo governo do Estado - também deve contar com bombas capazes de jogar a água da chuva que fica parada nas faixas de tráfego para dentro do rio. O mesmo sistema já funciona na Ponte das Bandeiras, em um trecho que alagou após a chuva de 11 de janeiro.
A instalação de mais diques, discutida pelo menos desde 1997 pelo governo do Estado, deve contemplar os trechos sob as Pontes do Limão, da Vila Guilherme, da Vila Maria e do Aricanduva - onde uma estrutura chamada pôlder também deverá ajudar a evitar inundações nas ruas do bairro, bombeando o excedente da bacia do Aricanduva para o Tietê.
"Essas medidas são importantes, mas só serão acionadas em momentos de emergência. Elas podem evitar que carros fiquem ilhados nesses pontos. Mas isso não é tudo", avalia o professor de Engenharia Hidráulica e Sanitária da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), José Rodolfo Scarati Martins. "Em São Paulo você tem componentes que nenhuma engenharia resolve, como o excesso de lixo que vai parar no rio e o furto de cabos elétricos, que pode parar o funcionamento de uma bomba de água."
Calha. Para complementar as obras, o governador Alckmin voltou a falar do desassoreamento dos rios. O edital para tirar 2,1 milhões de m³ do Tietê e 700 mil m³ do Pinheiros foi publicado ontem. As obras devem começar em maio.
Todos os anos, cerca de 600 mil m³ de sedimentos vão parar no Rio Tietê, conforme estudos feitos pela Secretaria de Estado de Saneamento e Recursos Hídricos. A limpeza chegou a ser paralisada na gestão José Serra, como destacou Geraldo Alckmin após as enchentes de janeiro.
Valas. No dia 11, deve ser lançado outro edital, para contratar uma empresa que fará a "circunvalação" na região do Parque Ecológico do Tietê, entre a zona leste e Guarulhos. O projeto prevê a criação de valas, que funcionariam como córregos paralelos ao Tietê e teriam o objetivo de receber a água dos córregos próximos. O sistema ficaria completo com a instalação de mais dois reservatórios, que teriam capacidade para receber até 1 milhão de m³ em dias de tempestades.
O governador destacou que essas obras vão melhorar o sistema de contenção das águas na região acima da Barragem da Penha. O fechamento das comportas dessa represa foi apontado como uma das causas do alagamento que durou quase dois meses no Jardim Romano, na zona leste da capital paulista.
Promessa de alívio
GERALDO ALCKMIN GOVERNADOR DE SÃO PAULO
"É um conjunto de medidas que vai minimizar qualquer problema futuro"
"Se as chuvas não forem intensas, certamente o rio (Tietê) vai ficar dentro da calha" 


quinta-feira, 3 de março de 2011

Frota de SP chega neste mês a 7 milhões

Bruno Paes Manso e Rodrigo Brancatelli - O Estado de S.Paulo
A frota paulistana vai atingir neste mês a impressionante marca de 7 milhões de veículos. Segundo dados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran), que recebe informações da Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (Prodesp), janeiro já fechou com 6.973.958 de carros, motos, caminhões e ônibus. Os números de fevereiro ainda serão divulgados, mas, seguindo a evolução mensal dos emplacamentos, o último milhão está prestes a ser alcançado.
O mais surpreendente é que, enquanto a cidade demorou oito anos para pular de 5 milhões para 6 milhões - de janeiro de 2000 a 2008 -, os 7 milhões serão batidos em apenas três anos. Com um detalhe: São Paulo tem 17 mil quilômetros de vias pavimentadas. Para-choque a para-choque, a frota atual formaria uma fila de 26 mil quilômetros de ruas e avenidas, quase duas vezes a distância de São Paulo até Cabul, no Afeganistão. Para efeito de comparação, na década de 1970 a capital registrava 965 mil veículos para número parecido de vias: 14 mil quilômetros.
"O aumento da frota registra a riqueza da cidade, mas também mostra uma situação burra, um grande erro", alerta Aílton Brasiliense, presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) e ex-diretor do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). "Com mais carro e mais trânsito, há um sobrecusto na tarifa do ônibus, há mais poluição, a velocidade média cai. Aí você precisa de mais caminhões para transportar as mercadorias. Vira um círculo vicioso."
A frota paulistana ainda infla em uma velocidade seis vezes superior ao crescimento da população. São Paulo tem agora 630 veículos para cada mil habitantes. O Japão tem 395 veículos/mil moradores, enquanto os Estados Unidos têm 478 e a Itália, 539. Ao longo do último ano, a cidade recebeu mais 27 mil veículos por mês - o aumento foi de 4% em relação a 2009, mas de mais de 45% desde que o rodízio municipal foi criado, em 1997. O maior crescimento ocorreu entre carros, motos e veículos utilitários. O número de ônibus permaneceu quase estável e o de caminhões caiu 3,2%, de acordo com o Detran.
Acidentes. Um aspecto curioso é que o crescimento da frota paulistana não significou aumento de mortes no trânsito. A cidade de São Paulo vem registrando queda contínua nos últimos anos. Em 2009, ano do último levantamento da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), foi registrada na capital a menor taxa de morte dos últimos 22 anos: 1.382 casos, número 54% menor do que os 2.981 de 1987.
Na comparação com outros lugares do País, São Paulo surpreende ainda pela baixa proporção de mortes em relação à frota de carros. Segundo levantamento do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes, em 2008 o Maranhão liderava o ranking brasileiro de mortes por 100 mil veículos. Foram 197 vítimas para cada 100 mil carros. O Estado de São Paulo tinha o trânsito menos violento quando comparado à frota: 42 vítimas para cada 100 mil carros.
Esses dados na capital são ainda menores. Em dezembro de 2009, São Paulo registrava 20,7 mortes para cada 100 mil veículos. O que não significa que o trânsito seja tranquilo. Por causa da queda do total de assassinatos, hoje há menos homicídios por arma de fogo do que mortes no trânsito da capital. 

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Raios! Raios múltiplos!

MÔNICA MANIR
Relampiava como o diabo, era faísca de fio a pavio no céu. Mas Zé Vicente não acocorou para contemplar o cenário. Achou por bem fugir da água antes que ela encharcasse seu uniforme cinza. Bateu o ponto e acelerou o passo na magrela, os flashs tudo em riba, uma fila de eucaliptos atrás da cerca margeando o caminho de terra. Zé Vicente olhou para cima. Então viu: numa fração de segundo, um raio acertou o topo de um eucalipto e veio rasgando a árvore pelo meio. Aí, sentiu: uma pancada vinda da cerca rachou a bicicleta em duas e ele foi jogado a uns dez metros, com a perna esquerda fumegando de dor.


Faz dez anos, mas ainda lembra que vislumbrou um clarão antes de ele mesmo apagar. Só acordou no hospital dois dias depois, com a mãe à beira da cama, a família e uma moça que ele mal conhecia em segundo plano e, por fim, uns fios juntando a pele do tornozelo lá embaixo. Sob o corte, sete pinos e duas placas de platina. "O raio foi queimando os nervo por dentro, encurtou tudo a partir do fêmur, ainda bem que minha mãe não deixou amputar", diz Zé Vicente, arrematando com um "graças a Deus" e não um "louvada seja Santa Bárbara", que ele é evangélico de nascença e não acredita nos poderes da santa do Oriente que protege contra os raios, os trovões e o troar dos canhões.
Foram nove meses de fisioterapia e um ano no total para voltar ao trabalho na manutenção de telefonia do Inpe, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, em São José dos Campos. Mais aprumado das ideias, Zé Vicente soube que foi ressuscitado no hospital. E que a moça conhecida mas desconhecida era Lucilene, uma vizinha que desenrolou sua língua na beira da estrada, ajudou a colocá-lo no ônibus da firma e mandou tocar para o pronto-socorro. Ali no ambulatório mesmo começaram a entabular uma paquera e, na velocidade de um corisco, acabaram por casar. Zé Vicente enche o peito para dizer que tem duas filhas, mas prende a respiração quando o tempo começa a armar lá fora. Em dia de tempestade, ele não sai de casa. Se já saiu, tranca-se no carro ou busca um abrigo longe de árvores, objetos metálicos e telefones. Calça logo alguma coisa, um chinelo de dedo que seja, e ainda assim sente que receberá outra descarga elétrica no mesmo lugar da outra vez. "É como se eu estivesse na guerra e soubesse que levaria um tiro."
Quem viu de perto a face da morte sabe que ela pode abrir o olho de novo, ainda mais porque raios caem, sim, no mesmo lugar e podem, sim, escolher a mesma pessoa para cristo. O guarda florestal Roy Sullivan que o dizia. Em 36 anos de carreira, foi atingido por sete raios. No primeiro, em 1942, perdeu uma unha. Em 1977, data do último, ganhou queimaduras no peito e no estômago. Sullivan morreu dali a seis anos, mas de amor. Ou por falta dele. Teria se suicidado por uma paixão não correspondida.
O caso dele está no Guinness. No Brasil, campeão mundial de incidência de raios, com uma média de 60 milhões por ano, o agricultor Armindo Carra tem um currículo elétrico considerável. Armindo foi alvo de quatro dos inúmeros relâmpagos que já aterrissaram em Almeida Prado (RS). Raios são isso: relâmpagos que atingem o solo. O agricultor tomou o primeiro na cozinha de casa, em 1969, quando apanhava o ferro de passar roupa que estava em cima do fogão a lenha. Seu corpo foi projetado contra a estante, de onde caíram os santos de devoção. Desesperados com sua falta de alma - não se mexia, não respirava, as mãos tinham arroxeado -, família e amigos o colocaram num buraco cavado no porão, deixando somente o rosto de fora. Esperavam que se descarregasse do que não lhe pertencia. Um trovão, companheiro invariável dos raios, ensurdeceu a cidade. Armindo abriu os olhos e aos poucos voltou a si. O povo limpou a terra apegada ao seu paletó, tirou o excedente com uma vassoura e o levou até o Hospital São José, onde se constatou que não era daquela vez que bateria as botas. Nem nas três seguintes. Armindo teria ficado apenas um pouco energizado: mãos, braços e pernas repuxavam à medida que se formava uma tempestade. Morreu no ano passado, no distrito de Guabiju, vítima de câncer. Tinha 74 anos.


Zé Vicente, Sullivan e Armindo são casos de extrema fortuna diante da má sorte de ser atingido por uma descarga elétrica desse calibre. O raio é uma corrente que varia no tempo: aumenta até uma média de 30 mil amperes, mil vezes a corrente de um chuveiro elétrico, e então decai a zero. Dura menos de 1 segundo, tem pouquíssimos centímetros de espessura, mas chega fervendo, batendo os 30 mil graus centígrados. No Brasil, por ano, cerca de 130 pessoas não resistem ao tranco. A maioria morre por parada cardiorrespiratória. "O coração pode parar de bater ou então parar de respirar, se a corrente afetar o músculo do diafragma ou comprometer os centros respiratórios do sistema nervoso central", explica o cirurgião plástico David Gomez, chefe do serviço de queimaduras do Hospital das Clínicas da USP.
Quem resiste não raro apresenta sequelas, por vezes graves. O departamento de segurança contra relâmpagos do serviço nacional de meteorologia dos EUA, exímio em estatísticas como de resto todos os departamentos de segurança americanos, informa que dos 400 casos de atingidos por raios no último censo do país, de 2008, 60 pessoas morreram e as outras 340 reportaram diferentes efeitos colaterais da overdose elétrica: amnésia, curta ou prolongada, dificuldade para processar mais de uma informação ao mesmo tempo, dor de cabeça, insônia, fadiga, irritabilidade, depressão, mudança de comportamento, dor muscular crônica ou nas extremidades do corpo. Mary Ann Cooper, professora da Universidade de Illinois, em Chicago, maior especialista do mundo em relâmpagos, faz uma pequena lista para aqueles que se veem no prejuízo. Pra começo de conversa, fortalecer a rede familiar e de amigos. Depois procurar ajuda psicológica profissional, aprender tudo que puder sobre as consequências do acidente e, na medida do possível, cultivar o bom humor.
O engenheiro gaúcho Osmar Pinto Junior, coordenador do Grupo de Eletricidade Atmosférica do Inpe, explica muito séria e pragmaticamente por que o Brasil lidera o ranking de incidência de raios: somos o maior do planeta na região tropical. "Na República Democrática do Congo até incide mais raio por quilômetro quadrado, mas esse país africano tem bem menos metros quadrados que o Brasil." Critério semelhante pode ser usado para medir a área nacional mais atingida por esse petardo atmosférico. Acertou se pensou no Amazonas, porém o Mato Grosso do Sul e sua vizinhança paraguaia são para-raios naturais.
Os homens morrem mais de raio do que as mulheres. Não que a descarga elétrica tenha preferência de gênero, mas eles se expõem mais ao perigo. Exemplo clássico é que invariavelmente negligenciam o tempo fechado e permanecem em campo porque um dos times ainda pode virar o jogo. Ou porque o treino ainda não acabou. Em 1983, o jogador do Palmeiras Carlos Alberto Borges aguardava um lance em pé, no gramado do time, quando ouviu um estrondo ensurdecedor. Enquanto os colegas corriam para o vestiário, ele ficou estirado no chão. Deu sorte porque o boliviano Aragonéz se deu conta do acontecido e chamou um cardiologista que estava de plantão no clube. Carlos Alberto Borges, o Carlos Alberto Raio, teve um princípio de parada cardíaca, ficou um dia sob observação e depois afirma não ter sofrido mazela do acontecido. "Senti um formigamento nas pernas, que passou, mas fui o primeiro jogador a levar um raio no Parque Antártica", gaba-se.
Se não há para onde correr, melhor se ajoelhar e botar a cabeça entre as pernas. Porque não vale o ditado de que raio não cai em pau deitado. Tampouco funciona achar que os pneus protegem totalmente o ser humano. Uma pessoa dentro de um carro está isolada pela carcaça metálica, e não pela borracha dos rodilhos. Verdade que Zé Vicente talvez tenha sobrevivido porque os pneus da bicicleta diminuíram o impacto do raio vindo da cerca, mas estivesse ele num descampado e sua bike serviria - com roda e tudo - como alvo preferencial. Ainda não se sabe se foi isso o que aconteceu com Maria Bueno, a funcionária do Parque Villa-Lobos atingida por um raio no domingo passado. Maria orientava justamente as pessoas a procurar abrigo durante um começo de tempestade quando foi alcançada por um relâmpago sobre sua bicicleta. O último boletim do Hospital das Clínicas até o fechamento deste caderno indicava que Maria Bueno continuava em estado grave, porém estável. Como marca visível do acontecido, uma ligeira queimadura no pé. O fato é que ficar perto de objeto metálico, ao ar livre e numa condição climática assim é pedir para entrar na história pelo lado trágico.
Pelo lado curioso, o raio esteve presente na história do Brasil do Descobrimento à República, das expedições naturalistas à Guerra do Paraguai. Esse seria o mote de Fragmentos da Paixão - Que Raio de História, o filme que Osmar Pinto Junior e equipe se preparam para gravar a partir de agosto, com lançamento previsto para fevereiro de 2012. Na mísera palinha que Osmar deu sobre a película está a fundação de São Paulo ao redor da Itaecerá - na crença tupi, uma pedra rachada por um raio. Darwin também faz uma ponta no filme. A bordo do Beagle, deixando o Rio Grande do Sul, ele teria feito o seguinte comentário no seu diário: "À noite, no convés, presenciei um espetáculo extraordinário; a escuridão da noite era interrompida por raios muito luminosos. Os topos dos mastros ficavam iluminados por fluido elétrico".