terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O etanol perde terreno

O Estado de S.Paulo
Além de grande consumidor mundial de etanol produzido a partir de cana-de-açúcar, o Brasil aspira a tornar-se um dos grandes exportadores mundiais do produto. Até agora, porém, a produção nacional de etanol tem-se caracterizado pela instabilidade, com variações de produção e preços que afetam o consumo interno e limitam a exportação. E o etanol vem perdendo mercado no País e no exterior. Segundo dados da Agência Nacional de Petróleo (ANP), foram vendidos diretamente nos postos 15 bilhões de litros de álcool hidratado em 2010, 8,5% a menos que no ano anterior, o primeiro recuo da demanda desde 2003. Por sua vez, o consumo de gasolina aumentou 17,5% em relação a 2009. Quanto às exportações do biocombustível, o Brasil ainda detém a liderança mundial, mas está ameaçado de perdê-la para o etanol produzido a partir de milho nos Estados Unidos, altamente subsidiado e protegido da concorrência externa por uma pesada sobretaxa.
É bem verdade que o aumento das importações de veículos movidos a gasolina puxou o consumo desse combustível. As compras de automóveis estrangeiros por brasileiros em 2010 se elevaram mais de 50% em comparação com 2009, custando US$ 8,54 bilhões ao País. Além disso, o etanol ficou bem mais caro para os carros bicombustíveis aqui fabricados. Os preços variam de região para região, mas, segundo a ANP, ficaram 77% aquém do preço da gasolina, quando, para atrair o consumidor, deveriam ficar abaixo de 70%. O governo, porém, não precisou diminuir o porcentual de adição de 25% de álcool anidro à gasolina, o que exigiu 22,2 bilhões de litros, um pouco menos que em 2009 (22,7 bilhões de litros).
Como ciclicamente ocorre, as cotações em alta do açúcar no mercado internacional fizeram as usinas destinar uma maior quantidade de cana para essa produção, o que foi agravado pela quebra de safra no Centro-Sul. Não são esperadas grandes mudanças neste ano, a se confirmarem as previsões de que as cotações do açúcar ainda seguirão elevadas.
Quanto ao etanol, a perspectiva é de que seus preços no mercado interno se mantenham estáveis, com variações sazonais. Segundo analistas, o preço do álcool hidratado com relação à gasolina só se tornará mais vantajoso se for autorizado um aumento dos preços dos derivados de petróleo em geral, com o objetivo de mantê-los em linha com as cotações no mercado internacional. Essa, no entanto, é uma medida que o governo evitará adotar para não agravar a inflação.
Uma forma de manter um diferencial competitivo do etanol é cobrar uma alíquota maior do ICMS sobre a gasolina, como já fazem os Estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. É duvidoso que outros Estados venham a fazer o mesmo, o que importará em novo recuo do etanol no mercado interno, como prevê Antonio de Pádua Rodrigues, diretor técnico da Unica (Globo, 16/12). Segundo ele, serão produzidos no País, neste ano, entre 15 bilhões e 16 bilhões de litros de etanol hidratado, volume semelhante ao de 2010, o que significará perda de mercado, já que o consumo de combustíveis crescerá com o aumento da frota de veículos.
Já as exportações brasileiras de etanol em 2010 ficaram em torno de 1,5 bilhão de litros, superando por pouco as vendas externas americanas do sucedâneo de milho, estimadas em 1,3 bilhão de litros. E este ano não começa bem nessa área: em janeiro, a exportação de etanol foi de 95,3 milhões de litros, 60,3% abaixo do volume no mesmo mês do ano passado.
Vê-se que falta muito ainda para que o Brasil possa recuperar a competitividade interna do etanol e seja capaz de exportar regularmente o produto em volumes significativos, de modo a transformá-lo em uma commodity no mercado internacional. Cabe à iniciativa privada vencer esse desafio, e investimentos de grande vulto estão sendo feitos ou são planejados para aumentar a oferta de etanol. A principal ajuda que o governo pode dar é fazer gestões nos foros internacionais e junto aos países desenvolvidos para superar as resistências protecionistas ao produto brasileiro. 


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Como Rio Branco inventou o Brasil

MARCOS GUTERMAN - O Estado de S.Paulo
Em tempos de ufanismo revisitado, que a propaganda estatal reduz ao "orgulho de ser brasileiro" em relação ao resto do mundo, o livro recém-lançado O Dia em Que Adiaram o Carnaval (Unesp), do diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, revela-se um ensaio precioso, ao reconstituir a invenção da nacionalidade brasileira.
O título da obra diz respeito à curiosa ordem do governo republicano de adiar o carnaval em respeito à morte de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, em 10 de fevereiro de 1912. Rio Branco tinha status de astro, porque lhe era atribuído o feito de ter desenhado as fronteiras do País - isto é, de ter dado um "corpo" à pátria que estava sendo criada.
Villafañe faz uma reflexão sobre o mito do Barão como construtor da nacionalidade e sua identificação com uma "certa ideia de Brasil" quase um século depois da independência. Trata-se de uma "paralisadora herança", como comentou o embaixador Rubens Ricupero a propósito da persistente imagem de um país que atua no exterior tendo como lastro o genoma da "tolerância natural do brasileiro", descrito por Stefan Zweig em Brasil, País do Futuro (1941).
O modo como o Brasil se enxerga no mundo, traduzido em sua política externa, é portanto o eixo em torno do qual Villafañe trabalha. A construção política dessa entidade, mostra o autor, começa como afirmação antilusitana e, ao mesmo tempo, como contraponto monárquico "ordeiro" ao "caos" republicano dos vizinhos latino-americanos. A "nação brasileira" que surge daí é formada por brancos europeus ricos. A escravidão criará o desconforto de uma imensa massa de pessoas que estão em toda parte, mas não integram a nação.
O sentido nacional só se completará no período republicano, mas a desigualdade social dificultou drasticamente a legitimidade do Estado. A "invenção" do Brasil, naquela oportunidade, dividia-se entre o passado português e a afirmação do mundo americano, sem lugar, contudo, para os brasileiros comuns.
Mesmo a república, porém, não ofereceu à massa, de imediato, um lugar na construção da identidade nacional brasileira. Foi preciso que houvesse a difusão das culturas ditas "subalternas", contaminando a atmosfera da elite com o carnaval e o futebol como elos da nacionalidade. Foi necessário ainda criar "heróis" para representar o evangelho republicano - e Tiradentes foi o primeiro deles, embora tenha sido representante de um movimento que nem de longe era nacionalista; mas o alferes (ou a imagem que foi criada para ele) era alguém construído para simbolizar a união dos cidadãos, a participação popular e a luta autêntica pela independência.
A identidade internacional do Brasil, diz o autor, tem como referência fundamental, desde seu início como país independente, a América - entendida primeiramente como os EUA e depois como as repúblicas latino-americanas. O Brasil foi o único país americano que, em sua independência, não desenvolveu proximidade com a ideia de ruptura com o modo de vida europeu. Com a república, o antiamericanismo monárquico foi substituído pela defesa do "espírito americano". É justamente com Rio Branco que a aliança com os EUA se consolida, sob a perspectiva de domínio geral estadunidense nas Américas e na hegemonia brasileira no nível sul-americano.
A partir de Getúlio Vargas, e desde então com esporádicos intervalos, a política externa brasileira se fundaria na dimensão do desenvolvimento econômico nacional em contraponto ao Hemisfério Norte, num apenas aparente afastamento do evangelho de Rio Branco. No início da Guerra Fria, o Brasil viu-se em condições de invocar o americanismo do Barão para cobrar tratamento preferencial dos EUA. A frustração com a resposta vaga de Washington a esse pleito - e também à promessa de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, feita pelo presidente Franklin Roosevelt a Vargas - empurrou o Brasil para uma aproximação maior com os demais países latino-americanos e para a ideia de que havia um bloco regional de subdesenvolvidos, entre os quais os brasileiros passaram a se incluir, que precisavam ser ouvidos.
Esse bloco se considerava moralmente superior às potências globais, porque seria vítima da corrida armamentista e das guerras imperialistas. Tal movimento rompeu a bipolaridade Leste-Oeste da Guerra Fria e estabeleceu a complexidade do debate Norte-Sul, com a defesa de um modelo de desenvolvimento fortemente estatal, em contraponto à doutrina democrático-liberal que se consideraria vitoriosa na queda do Muro de Berlim e que se fazia representar pelos EUA, justamente o "outro" na relação com a América Latina ao longo do século 20.
A identificação latino-americana, de tão importante para a nova etapa da ideia de nação brasileira, foi inscrita na Constituição de 1988. O discurso do Brasil hoje, sobre seu lugar no mundo, é fincado essencialmente na afirmação da liderança continental, ainda tendo como referência os EUA, numa inequívoca demonstração da resistência, mesmo controversa, da herança do Barão do Rio Branco - o nosso "Founding Father". 


Brics não aceitam proposta de países ricos no G-20

Andrei Netto - O Estado de S.Paulo
Os maiores países emergentes participarão da reunião ministerial do G-20, hoje, em Paris, com propostas conjuntas para três temas controversos: a definição dos indicadores de desequilíbrio e os vetos ao controle de fluxos de capitais e à limitação do acúmulo de reservas internacionais.
A posição coletiva foi definida na tarde de ontem, na capital francesa, em encontro de ministros da Economia e presidentes de bancos centrais do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - o grupo dos Brics, acrescido do parceiro africano. Já sobre "guerra cambial", não há acordo.
Na prática, a postura conjunta deve representar um freio nas ambições do G-20 ministerial de Paris. As divergências começam pela prioridade n.º 1 do evento: a definição dos indicadores de desequilíbrio macroeconômico. Pela proposta franco-alemã, aceita por países desenvolvidos, seriam cinco: saldo de contas correntes, taxa de câmbio real, reservas de câmbio, déficit e dívida públicos e poupança privada.
Já os Brics não aceitam o saldo de contas correntes. "No que diz respeito ao comércio e à conta corrente, há divergências", afirmou o ministro da Fazenda, Guido Mantega. "Nós concordamos em não tomar a conta corrente como indicador, mas a conta de bens de serviços, senão acrescentaria às aplicações financeiras no exterior, que não são bem um indicador de desequilíbrio."
Outro ponto de acordo entre os emergentes é a rejeição de parâmetros (guidelines) para restringir as políticas de controle de fluxo de capitais externos.
No entender dos Brics, cada país que aplicou a iniciativa tem perfil de investimentos estrangeiros e de ativos diferente, o que justificaria a total liberdade na criação ou adoção das medidas. "Cada país tem suas peculiaridades e fará o controle de capitais da forma que achar mais adequado", argumentou Mantega.
O ministro brasileiro ainda ironizou, em linguagem cifrada, a proposta de controle, ressuscitada pela França, depois de ter sido recusada pelo G-20 de Seul, em novembro. "Parece que agora alguém se arrependeu", disse. "Não dá para concordar."
O terceiro ponto que une Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - contra as propostas postas à mesa de negociações pela França - diz respeito ao acúmulo de reservas internacionais. "Discordamos de estabelecer limites para o acúmulo de reservas enquanto não houver um sistema financeiro mais seguro", disse Mantega. "Se houver uma crise, quem vai nos socorrer? São as nossas reservas."
Os grandes pontos de convergência entre os emergentes, entretanto, não se estendem a uma proposta conjunta para reduzir os efeitos da "guerra cambial". Isso porque Brasil e China têm visões diferentes sobre o yuan, cujo câmbio é administrado pelo Banco Central chinês. Ainda assim, Mantega também criticou os EUA. "Não é só um ou outro país asiático que está administrando o câmbio. Ele está sendo administrado por vários países", reclamou o brasileiro.
As posições dos Brics confrontarão hoje as propostas da França. Christine Lagarde, ministra da Economia do país anfitrião, defende a imposição de limites à acumulação de reservas e o enquadramento das políticas de controle de fluxos de capital. O governo de Nicolas Sarkozy tenta obter neste G-20 ministerial pelo menos um "acordo de princípios" sobre os indicadores de desequilíbrio, o que impediria o fracasso do evento.
As chances de avançar nas negociações, entretanto, não se limitam a hoje. Em Washington, em abril, e novamente em Paris, em outubro, haverá encontros ministeriais antes da reunião de chefes de Estado e de governo do G-20 em novembro, em Cannes.