domingo, 30 de outubro de 2016

O silêncio das urnas - DORA KRAMER, OESP


ESTADÃO - 30/10

Reza o mito, mas não é verdade, que votos nulos e brancos anulem eleições



No primeiro turno das eleições municipais havia dois polos de atenção: o desempenho do PT e o resultado em São Paulo. Ambos surpreendentes. O primeiro pela escassez e o segundo pela abundância de votos obtidos pelo candidato que da maneira mais completa encarnou o repúdio ao petismo.

Hoje, dia de escolha em cidades com mais de 200 mil habitantes, entre as quais 18 capitais, a estrela da companhia é a eleição no Rio, onde concorrem dois candidatos cuja rejeição é assunto em qualquer roda que reúna mais de dois cariocas.

As pesquisas apontam um aumento substancial de intenções pelos votos em branco e nulos, confirmando o que se ouve em toda parte: estamos numa sinuca de bico. Sim, nós, porque estou entre aqueles cujo título de eleitor obriga o comparecimento à urna para escolher entre Marcelo Crivella e Marcelo Freixo, dois opostos extremos que subtraem de boa parte do eleitorado a motivação positiva ao voto.

De onde a expectativa é a de que o Rio seja a cidade campeã no quesito ausência de escolha, aí incluídos os que votarem em branco, nulo ou simplesmente ignorarem a obrigatoriedade formal. Porto Alegre apresenta situação semelhante no que tange à indisposição eleitoral.

O exercício da democracia não aconselha à abstenção. O ideal seria que cada um fizesse uma opção e se responsabilizasse por ela. Melhor ainda se isso não fosse uma imposição legal e o direito ao voto um gesto de vontade, como de resto ocorre na ampla maioria das democracias ocidentais. Mas, nem sempre é possível e a recusa, notadamente quando em quantidade muito acima do habitual, requer uma leitura acurada. Mas essa é outra história que fica para ser analisada e contada a partir de amanhã.

Razões para indiferença, desgosto ou revolta com a conduta de determinados políticos não faltam e provavelmente elas serão o tema da discussão pós-eleitoral. E fica por aí a consequência. Não há outra, não obstante o mito de que votos em branco e nulos em quantidade superior à votação do vencedor tornem inválida uma eleição ou que sirvam para beneficiar esse ou aquele candidato. Pura lenda urbana.

A contagem da Justiça Eleitoral leva em consideração apenas os votos válidos. Ou seja, descontados os votos em branco e nulos que vão literalmente para o lixo. Portanto, quem se ausenta, vota em branco ou anula protesta de forma inútil do ponto de vista do vencedor, eleito com qualquer quantidade. Uma hipótese absurda, mas real: ainda que haja 90% de votos inválidos numa eleição, o resultado será computado levando em conta o universo de 10% de votos válidos.

O mito da nulidade tem origem numa interpretação equivocada do Código Eleitoral, que no artigo 244 diz o seguinte: “Se a nulidade atingir mais da metade dos votos” será convocado um novo pleito no prazo de 20 a 40 dias. Ocorre que a nulidade aí tem outro sentido. Refere-se aos votos anulados pela Justiça Eleitoral caso somem mais da metade dos válidos.

A lei prevê as situações em que isso possa ocorrer. As de maior amplitude dizem respeito a fraudes generalizadas e à eventual perda do registro da candidatura do vencedor, por exemplo, por abuso de poder econômico (compra de votos).

Há outras: violação do sigilo do voto, fechamento das urnas antes do horário previsto em lei (17 horas), fraude na urna eletrônica, uso de identidade falsa por parte do eleitor, voto em seção diferente daquela indicada no título, restrição ao direito de fiscalização, realização das eleições em dia, hora ou local que não os legalmente estabelecidos.

Portanto, não há resultado prático decorrente da manifestação de protesto ou de indiferença, embora a depender do volume haja um recado claro a ser compreendido pelo mundo político. Inclusive em relação à obrigatoriedade do voto. 

Os juros e as crianças - GUSTAVO FRANCO, OESP (definitivo)


ESTADÃO - 30/10

O melhor comentário que me vem à mente sobre as taxas de juros de hoje no País é o que expressa uma maldição antiga, a de Stefan Zweig, segundo a qual “o Brasil é o país do futuro, e sempre será”.


Não vamos tratar aqui do que ele quis dizer na origem, especialmente na segunda parte, pois a mágica de aforismos duradouros reside em sua capacidade de encontrar sempre uma nova atualidade. Divertido é imaginar a mesma frase agora, pronunciada depois de Zweig passar os olhos pela ata do Copom e inferir que os juros ainda permanecerão muito altos por um bom tempo.

O juro, vale explicar, expressa os termos de troca entre o presente e o futuro, e com isso se torna, direta ou indiretamente, o personagem central de todo o tipo de cálculo econômico. O valor das coisas duradouras, sobretudo as que produzem fluxos de caixa no tempo, é determinado pela régua da espera e da impaciência, ou pelo modo como tais fluxos são descontados e trazidos a valor presente. Eis aí, no entanto, uma pista importante para os males do Brasil, que Eduardo Giannetti encontra em um famoso conto de Machado de Assis. O empréstimo, a propósito de um sujeito que tinha “a vocação da riqueza, mas sem a vocação do trabalho”, sendo que a “resultante desses impulsos discrepantes era uma só: dívidas”.

Portanto, diz Giannetti, “há sociedades que parecem abrigar (...) a vocação do crescimento, mas sem a vocação da espera. E a resultante, quando não é a inflação ou crise do balanço de pagamentos, é (...) uma só: juros altos”.

Segundo essa lógica, os juros altos refletem uma espécie de miopia ou ansiedade pelo presente, e seria fácil, porém enganoso, acreditar que essa imprevidência constitui traço visceral da nacionalidade, pois assim estaríamos transferindo ardilosamente a culpa para o devedor, o brasileiro jovem e impaciente, crente em um futuro tão pródigo que nenhum excesso próprio da mocidade deixaria de ser consistente com as riquezas havidas nesse país do futuro que solidamente se estabeleceu no imaginário nacional.

Mas o inimigo não é bem esse. A maior e mais aberrante distorção nacional no trato do futuro reside no próprio Estado, o agente que, através do endividamento social, desmantela os equilíbrios individuais entre a abstinência e a prodigalidade.

Antes de 1994, o Estado socializava prejuízos decorrentes do gasto excessivo através da inflação, mas agora o faz de forma intertemporal, concentrando privilégios no presente e diluindo seus custos no futuro. Antes, tributávamos o pobre, o ausente nas composições políticas, os sem voz, os não alcançados pela correção monetária. Agora, através do endividamento, tributamos outro ausente, as crianças.

A dívida pública funciona como um gigantesco imposto sobre a juventude, ou sobre a herança, porém jamais admitido pelos perpetradores diante de seus herdeiros, os que vão pagar os impostos necessários para fechar a conta.

O conflito distributivo intergeracional emerge, portanto, como um grande desafio para os próximos anos, mas o problema é que as crianças não votam, e os jovens estão mais preocupados com as agendas de costumes e ocupando as escolas pelas razões erradas. É bom que alguém lhes explique as contas que terão de pagar.

A dívida do governo sob a forma de títulos é da ordem de 70% do Produto Interno Bruto (PIB), tendendo para 80% nos próximos anos, e será muito pior se não passar a PEC do Teto. Mas, como proporção do PIB, não parece grande coisa, inclusive comparada com a de outros países (é mais de 100% nos Estados Unidos e na Europa, em média).

Porém, eles são países onde a riqueza privada, segundo o mestre Piketty, é da ordem de cinco vezes o PIB, ou seja, a íntegra da dívida pública equivale a cerca de um quinto da riqueza privada. Para o Brasil, onde a riqueza privada, como múltiplo do PIB, estaria entre um e 1,3 (estimativas minhas), estamos falando em proporções do endividamento público e da riqueza privada entre metade e 80%, dependendo da conta. Somos o país mais endividado do mundo.

E tem mais.

Essa dívida é apenas aquela sob a forma de títulos. Sabemos, por exemplo, que o governo tem uma obrigação previdenciária com funcionários públicos e no regime geral (INSS) que facilmente poderia ser expressa como uma dívida, bastando capitalizar os rombos de caixa projetados para o futuro, conforme cálculo atuarial.

Num estudo de 2007, Fábio Giambiagi e diversos especialistas nesse assunto calcularam essa dívida, e os resultados foram os seguintes: o buraco do chamado Regime Geral (INSS) seria de 98% do PIB (aí incluída a conta do Loas e rendas mensais vitalícias, de natureza assistencial, que são pouco menos da metade) e o dos regimes para os servidores públicos com 95% do PIB.

O total é esse mesmo que você está com dificuldade de absorver: 193% do PIB adicionais à dívida mobiliária, que se aproxima de 80% do PIB, algo como 2,7 vezes o PIB.

Pare o que você está fazendo, chame as crianças, peça muitas desculpas e ligue para o seu congressista.

Revelações da PEC 241 - MAÍLSON DA NÓBREGA


REVISTA VEJA

A medida é necessária, ainda que suscetível de aperfeiçoamentos

A PEC 241, que pretende fixar um teto para os gastos primários do governo federal (não poderão crescer acima da inflação por vinte anos), revelou um aspecto triste e outro promissor. O triste é a reafirmação da visão equivocada de corporações que se opõem à medida e são coadjuvadas por segmentos da sociedade estrábicos por ideologia ou ignorantes em questões econômicas e financeiras elementares. O lado promissor é a chance de virmos a construir as condições para discutir o conflito orçamentário, interditado desde priscas eras.

A mais vistosa manifestação (houve outras) do corporativismo foi a nota da Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Congresso, em que qualifica a PEC de "inconstitucional" por provocar o "enfraquecimento das instituições do Estado", as quais não disporiam dos "recursos necessários" para "reajustes/reestruturação de carreira", "reposição de quadros de pessoal" - e por aí seguiu... Isso, segundo tal entendimento, impediria "o crescimento e a expansão da instituição e, em última análise, implica seu aniquilamento".

Os procuradores (mais juizes e outros que adotaram a mesma linha) desprezam um conceito básico de economia e finanças, qual seja, a "restrição orçamentária": os gastos de indivíduos e famílias estão limitados à soma da sua renda e da capacidade de se endividarem. O mesmo vale para o setor público, que pode superá-la emitindo moeda, mas ao preço de gerar inflação, destruir o potencial de crescimento e prejudicar mais os pobres.

O conceito foi ignorado pelos constituintes de 1988, que criaram pesadas obrigações para o governo, particularmente em programas sociais e vantagens destinados a servidores públicos e aposentados. Desde então, contornou-se a "restrição" elevando tributos e o endividamento do Tesouro. A carga tributária e a dívida pública dobraram, o que permitiu o crescimento anual dos gastos a 6% acima da inflação. Agora passamos do limite. A carga tributária, excessiva, inibe o crescimento econômico. A dívida pública, explosiva, pode levar à insolvência do Tesouro e à hiperinflação.

Para a PGR, todavia, sua autonomia financeira deve ficar livre da "restrição". Recursos para aumentar salários, vantagens e outros precisam ser-lhe garantidos, ainda que o país esteja quebrado - o que ela busca justificar pela importância de suas atribuições.

Ora, uma família pode ter desejos legítimos como comprar carro, viajar, reformar a casa e semelhantes, mas deve observar a "restrição". Não pode ser diferente em órgãos do governo, independentemente de sua relevância.

A PEC 241 não resolve, isoladamente, os graves problemas fiscais do Brasil, que ameaçam a estabilidade, o crescimento e o objetivo de reduzir as desigualdades. Precisa, por isso, ser complementada por reformas como a da Previdência, cuja insustentabilidade financeira pode inviabilizar a gestão orçamentária, levar o país à breca e frustrar, em futuro próximo, o pagamento de aposentados e pensionistas.

A medida é necessária, ainda que suscetível de aperfeiçoamentos. Seu maior efeito institucional será criar as condições para que, enfim, a "restrição" e o conflito orçamentário se imponham. O conflito surgiu quando a moderna democracia ocidental, iniciada com a Revolução Gloriosa inglesa (1688), atribuiu ao Parlamento a função de aprovar anualmente o Orçamento e, assim, de enfrentá-lo. Como são os parlamentares que decidem a aplicação da receita pública, passou-se a escolher entre demandas ao mesmo tempo legítimas e conflitantes.

No Brasil, isso nunca aconteceu. O Congresso inexistia na colônia. Depois, nos períodos de autoritarismo, era o Executivo que ditava as prioridades. Na democracia, o conflito foi ignorado. As corporações conseguiram reservar, via vinculação de recursos, parcelas crescentes do Orçamento para si próprias. Outros "donos" do Orçamento fizeram o mesmo. Esse será o tema da próxima coluna. Buscarei explicar como os grupos de interesse impuseram seus objetivos, em detrimento da maioria da sociedade. Mostrarei que a PEC 241, se passar, promoverá saudável modernização do Orçamento e da democracia.