quarta-feira, 5 de junho de 2024

RENATO STANZIOLA VIEIRA A droga da PEC das droga, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Renato Stanziola Vieira

Mestre em direito constitucional (PUC-SP) e mestre e doutor em direito processual penal (USP), é presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)

A chamada PEC das Drogas, por ora em discussão na Câmara após ser aprovada no Senado Federal, não se preocupa com as pessoas nem em combater o tráfico ou separar o traficante do usuário. Também não liga para as evidências de saúde pública —seus motivos e fins são outros.

A proposta de emenda constitucional 45/2023 instrumentaliza a Constituição por pauta populista. Faz do capítulo dos direitos e garantias individuais refém de discurso irresponsável e anticientífico.

Os congressistas que aprovaram sua tramitação não escondem o movimento de revanche ao julgamento do recurso extraordinário 635.659, em curso no Supremo Tribunal Federal. A captura da política é tão escandalosa que mesmo que a corte esteja às voltas de uma faceta do problema de saúde e segurança pública há mais de uma década, bastaram recentes cinco votos para se enxergar a necessidade do tal "mandado de criminalização". Como se criminalização não existisse. Como se a espasmódica atividade legislativa se justificasse e a alteração constitucional fosse questão de nonada.

Plantação caseira de maconha em bairro da zona norte do Rio - Ricardo Borges - 17.ago.2015/Folhapress - Folhapress

Há quase meio século existe punição efetiva (para o público de sempre) no tema de guerra às drogas. Nilo Batista, ao alertar com os olhos voltados à lei 6.368, de 1976, para a política criminal de derramamento de sangue, por certo não imaginava testemunhar a que ponto chegaríamos. Com a lei 11.343, de 2006, o hiperencarceramento continuou galopante no Brasil. Isso a tal ponto que, como diz o Anuário de Segurança Pública de 2023, do número absoluto de pessoas presas, 68,2% são negras. Não é surpresa que "a seletividade penal tem cor". E a Secretaria Nacional de Políticas Penais relata que os crimes de drogas respondem por quase 30% da população carcerária.

Óbvio que temos lei que pune seletivamente os cidadãos em matéria de uso e tráfico de drogas. Não é da captura da Constituição por pauta punitivista ou moralista (hoje é uma PEC para a guerra às drogas; e amanhã, qual será?) que o país precisa. É chocante a irrealidade e a desonestidade em se esconder os motivos da proposta legislativa.

Fosse para se levar a sério a decisão política, a primeira distinção seria a de separar o usuário de quem não é, como se tentou fazer com a proposta de novo Código Penal (PLS 236/2012, art. 212, § 4º). Fosse honesta a preocupação com a saúde pública, ela seria o motriz dos argumentos, até porque o uso de substância entorpecente pode trazer menos malefícios do que cigarro, remédio e álcool.

Isso não preocupou os congressistas, que previram que nem a substância nem a quantidade do que cada pessoa traz consigo importam. Tudo isso apesar de o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada informar, em 2023, que quase metade dos processos criminais (36% para casos de cannabis e 45% para casos de cocaína) nem sequer aponte qual foi a quantidade apreendida. Para esse estudo, se houvesse critério objetivo a respeito de quantidade, no mínimo 23% dos processos rotulados como de tráfico seriam desclassificados para de uso de drogas.

Com a genial proposta de emenda aprovada pelos luminares do Senado, o país pode retornar aos tempos da política criminal de Ernesto Geisel. Uma formidável caminhada rumo ao obscurantismo.

Deve haver algum deputado que veja a política pública muito cruel já em curso, como há de existir quem perceba que nenhum benefício haverá na segurança pública, o que se dirá dos argumentos à la Pôncio Pilatos sobre a saúde individual e coletiva.

Engessando a Constituição para reviver o ideal da lei da ditadura, a pessoa que quiser adquirir droga continuará a fazer isso, expondo-se a risco. Mas muito menor do que a outra, abordada na rua, vítima do racismo estrutural enfim reconhecido pelo STF no HC 208.240.

Anos de cadeia, além da cor da pele, continuarão a separar Jardins e Ipanema do Jardim Irene ou do Morro do Alemão. Ao brincar de poder constituinte e tentar emparedar o Supremo, inventa-se uma nova droga: a PEC, uma droga inconstitucional.

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