Das quatro empresas que venceram o leilão de arroz do governo federal, a maior compradora é dona de um estabelecimento em Macapá (Amapá) que tem como atividade principal a venda de leite e laticínios. Outra é de um empresário de Brasília que disse à Justiça ter pago propina para conseguir um contrato com a Secretaria de Transportes do Distrito Federal (DF).
No total, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) comprou 263,3 mil toneladas de arroz importado, por R$ 1,3 bilhão.
O objetivo do governo é amenizar os impactos das chuvas no Rio Grande do Sul sobre o abastecimento e os preços do cereal, mas a medida é questionada pela oposição e pelo agronegócio —que também é majoritariamente antilulista.
Segundo o governo, a importação de arroz é necessária em função da importância do Rio Grande do Sul na produção de arroz e porque a calamidade observada a partir do mês passado no estado pode desencadear repercussões negativas no abastecimento e nos preços internos, "colocando em risco a segurança alimentar e nutricional da população".
O leilão chegou a ser inicialmente suspenso pela Justiça Federal, mas foi liberado a tempo de sua realização —nesta quinta-feira (6).
Procurada pela Folha, a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), responsável pelo leilão, afirmou que as empresas precisam garantir a entrega do produto em um de seus armazéns, como indicado no edital, e atender requisitos de documentação e qualidade.
"As empresas vencedoras têm até cinco dias úteis para pagar a garantia de 5% sobre o valor da operação. Se a empresa não apresentar a garantia no prazo estipulado, é aplicada multa de 10% sobre o valor da operação e cancelada a negociação. Se a empresa pagar a garantia, mas não cumprir o previsto no edital, é aplicada multa de 10% sobre o valor da operação e a empresa perde a garantia paga", afirmou a companhia.
Qualquer desrespeito à legislação pode causar punições e implicações criminais e cíveis.
A maior arrematante do leilão foi uma empresa de nome Wisley A de Souza, que adquiriu 147,3 mil toneladas de arroz, tem como único sócio uma pessoa com esse nome e capital social de R$ 5 milhões.
Seu nome fantasia é Queijo Minas, e o endereço registrado na Receita Federal fica no centro de Macapá, capital do Amapá. Segundo imagens do Google, no local funciona o estabelecimento com este mesmo nome.
Já o email que consta no sistema federal é de uma distribuidora. Sua principal atividade (declarada pela própria empresa em seus registros públicos) é o comércio atacadista de leite e laticínios. A lista de capacidades secundárias inclui frutas e verduras, carnes, material de escritório, produtos de higiene e limpeza, e mercadorias alimentícias de armazém em geral.
Procurada por email, telefone e WhatsApp, a empresa não respondeu.
A segunda menor arrematante do leilão foi a ASR Locação de Veículos e Máquinas, com sede em Brasília.
Sua principal atividade é o aluguel de máquinas e equipamentos, mas nas secundárias consta uma série de outras, por exemplo, construção de edifícios e rodovias, obras, publicidade, desenvolvimento de programas de computador, serviços de escritório e de limpeza, além de comércio atacadista de diversas categorias, inclusive cereais.
Seu único sócio é Crispiniano Espindola Wanderley. Ele também participa de outras empresas de transporte e de um instituto de perícia forense.
Procurado pela Folha, ele disse que a ASR tem mais de dez anos de experiência e trabalha com seriedade. Afirmou que venceu um outro leilão da Conab em dezembro de 2023, para distribuição de 211 mil sacas de milho, que foram entregues com sucesso no estado da Bahia.
Entre 2002 e 2009, Wanderley presidiu a Coopertran (Cooperativa de Transportes Públicos do DF).
Ele é citado em uma investigação que mirou o atual deputado federal e então secretário de Transportes do Distrito Federal Alberto Fraga (PL-DF).
Em seu depoimento, Wanderley afirmou que Fraga lhe cobrou propina por intermediários para a assinatura de um contrato de ônibus com a cooperativa e que pagou R$ 350 mil para fechar o acordo.
Nas declarações, ele diz que sua cooperativa foi desclassificada do leilão no Distrito Federal na época (em 2007), mas recorreu e conseguiu ser vencedora do pregão. O então secretário teria, então, assinado o contrato apenas mediante o pagamento da vantagem indevida.
Diz ainda que, anos depois, ele foi retirado da cooperativa em razão de uma negociação malsucedida com o secretário, que teria prometido um contrato de R$ 1,3 bilhão mas não cumpriu.
Fraga chegou a ser condenado, mas recorreu e acabou inocentado da acusação de cobrança de propina. Wanderley não chegou a ser alvo de investigação. Há depoimentos de outros membros da cooperativa, alguns também citando o pagamento de propina e a destituição do ex-presidente por possível mal uso do dinheiro.
No entanto, a Justiça entendeu que as declarações não foram suficientes para corroborar o caso de cobrança de propina, por falta de provas.
Questionado, Wanderley confirmou o caso e disse que fez o pagamento já com intenção de denunciar o ex-secretário e que não entende como o político acabou inocentado.
"Fraga não quis nos entregar as permissões [para operar micro-ônibus]. Entramos na Justiça e ganhamos uma liminar. Como ele entrou com vários recursos, mas não conseguiu êxito, enviou um mensageiro com o objetivo de extorquir a cooperativa. A proposta era que de R$ 350 mil para receber as permissões", disse.
"Submeti aos cooperados a proposta indecente. Como já estávamos há mais de 60 dias sem operar, acabaram aceitando, e assim foi feito, mas com a convicção de que, assim que ele entregasse as referidas permissões, seria denunciado. Em seguida, quando recebemos as permissões, eu fiz a denúncia na delegacia de polícia", completou.
À reportagem, ele disse que foi retirado da presidência porque a cooperativa estava com dívidas e que seus membros queriam deixar de pagar os fornecedores —mas que ele se opôs, e por isso o destituíram.
Fraga também foi procurado pela Folha, mas não respondeu.
O leilão foi criticado pela oposição ao governo Lula e pelo agronegócio, que questiona seus efeitos no mercado e sua necessidade.
A ex-ministra da Agricultura de Jair Bolsonaro (PL), Tereza Cristina (PP-MS), entrou com uma ação no Tribunal de Contas da União para que o pregão seja investigado.
Hoje senadora, ela solicita uma "auditoria de conformidade para analisar a necessidade e os impactos dessa importação para os agricultores brasileiros e para o mercado, bem como a capacidade financeira das empresas vencedoras do leilão".
Presidente do SindArroz-SC (Sindicato da Indústria do Arroz em Santa Catarina), Walmir Rampinelli diz que as vencedoras não costumam atuar no mercado de arroz.
"Além disso, com a entrada no mercado nacional desses mais de 8,7 milhões de fardos de arroz importados, temos a certeza de que muitas indústrias brasileiras provavelmente precisarão paralisar suas atividades e demitir colaboradores, sem contar que os próprios produtores de arroz estão desestimulados a continuar plantando", afirma.
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