sexta-feira, 7 de junho de 2024

No Dia D, foram os homens banais que derrotaram os super-homens, João Pereira Coutinho - FSP

 Sou um sentimental. Mas é difícil não ficar comovido quando vemos estes homens, beirando os cem anos, retornando às praias da França. Falo dos veteranos da Segunda Guerra Mundial que, 80 anos atrás, em junho de 1944, desembarcaram na Normandia para libertarem a Europa da tirania nazista.

Escuto os discursos. Escuto os testemunhos. E depois pergunto se as sociedades de hoje estariam disponíveis para um sacrifício dessa magnitude.

Soldados americanos se aproximam da praia designada como Utah no início da invasão do Dia D
Soldados americanos se aproximam da praia designada como Utah no início da invasão do Dia D - AFP - 6.jun.1944

A pergunta é absurda. A pergunta não é absurda. É absurda porque, em tempos de guerra, não se limpam armas. Dois anos atrás, os ucranianos, ou a maioria deles, talvez respondessem que não estariam dispostos a lutar pelo país em caso de invasão inimiga.

Mas depois a realidade chegou e a teoria foi reduzida a pó. Como afirmava um soldado ucraniano em documentário televisivo recente, ele não estava lutando pela Ucrânia (uma abstração). Ele lutava para proteger a família, os amigos e os vizinhos das predações russas.

A pergunta não é absurda porque, na Europa ocidental, a disponibilidade das populações para qualquer guerra defensiva é mais baixa que a média. Se a guerra na Ucrânia se alastrar para o Ocidente, quem defende a família, os amigos e os vizinhos?

Ponto prévio: a guerra é repulsiva. O serviço militar obrigatório, que vários países europeus ponderam trazer de volta (o caso alemão é o mais relevante), é uma forma de violência do Estado sobre o indivíduo. Também li o meu Henry David Thoreau.

Mas, pacifismos à parte, como não pensar nas últimas páginas de Francis Fukuyama no tão citado, e tão pouco lido, "O Fim da História e o Último Homem"?

Sim, certo: talvez Fukuyama tenha sido imprudente nos festejos da primeira parte do título. O fim da história durou uma década. Ela regressou em força com os ataques terroristas do 11 de Setembro e nunca mais nos deixou. A democracia liberal não era a última e definitiva moda.

Mas eu falo da segunda parte do título, usualmente esquecida. O último homem. Quem é esse ser que, já avisava Nietzsche, fará parte do habitat das democracias liberais?

É o homem anti-heróico por excelência, preocupado com a satisfação dos seus desejos e do seu bem-estar —e incapaz de pensar para além deles. Pedir sacrifícios a existências tão bovinas é uma impossibilidade.

Além disso, o último homem tem as vantagens, ou as desvantagens, de habitar o fim da história. Ele consegue olhar para o passado, para o longo cortejo de batalhas e atrocidades, retirando a única lição possível: tudo foi em vão. Tudo foi "som e fúria" sem sentido, sem grandeza, sem necessidade.

Não se mobilizam homens destes para uma guerra defensiva. Eles sabem demais. Eles já não vivem no horizonte curto das gerações passadas, onde não havia uma consciência plena das múltiplas possibilidades da vida.

Entendo o argumento. Não concordo com ele. Olho para os últimos veteranos da Segunda Guerra Mundial naquelas praias da Normandia. Rostos banais, vidas banais, expectativas banais.

E, no entanto, foram eles que derrotaram os super-homens no final. Foram eles, os "lojistas", os "filistinos", os "escravos", os "animais de rebanho" que Nietzsche desprezava, que derrotaram Zaratustra.

Querem ver que as virtudes heróicas, no fim das contas, são as virtudes que só a liberdade e a democracia permitem?

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