terça-feira, 4 de julho de 2023

Usuários de Ozempic dizem que pararam de pensar em comida 'o tempo todo', FSP

 THE NEW YORK TIMES

Até começar a usar o remédio para perda de peso Wegovy, os dias de Staci Klemmer giravam em torno da comida. Ao acordar, ela planejava o que ia comer. Assim que terminava de almoçar, já estava pensando no jantar. Depois de sair de seu trabalho –como professora do Ensino Médio em Bucks County, Pensilvânia–, ela frequentemente passava pelo Taco Bell ou McDonald’s para calar o que descreveu como uma voz que tagarelava em sua cabeça 24 hr por dia. Mesmo quando estava saciada, ela sentia vontade de comer.

Quase imediatamente depois da primeira dose do medicamento, em fevereiro, Klemmer sentiu os efeitos colaterais: refluxo gástrico, prisão de ventre, enjoo, fadiga. Mas os pensamentos incessantes sobre comida, batizados de "food noise" (barulho de comida, em português) se calou. Ela diz que foi como se um interruptor tivesse sido acionado em sua cabeça.

"Não fico mais pensando em tacos o tempo todo. Não sinto mais desejo de comer. Nem um pouquinho. É a coisa mais estranha."

Ilustração barulho de comida
A semaglutida pode influenciar em questões do cérebro como o pensamento excessivo em comida - Kaitlin Brito/NYT

Andrew Kraftson, professor clínico na Michigan Medicine, afirma que em seus 13 anos de experiência profissional como especialista em medicina da obesidade, seus pacientes frequentes diziam que não conseguiam parar de pensar em comida. Quando ele começou a prescrever Wegovy e Ozempic, medicamento antidiabético que contém o mesmo composto, e os pacientes começaram a usar o termo "food noise", dizendo que havia desaparecido, ele entendeu exatamente o que queriam dizer.

O termo vem ganhando popularidade com a intensificação do interesse em torno do Ozempic e outros antidiabéticos injetáveis como Mounjaro, que opera de maneira semelhante. Vídeos ligados ao explicando o que significa já foram vistos 1,8 bilhão de vezes no TikTok. E algumas das pessoas que conseguiram esses medicamentos –a despeito da falta persistente de estoque e dos altos preços— compartilharam seus relatos nas redes sociais.

QUANDO O BARULHO VAI PERDENDO VOLUME

Wendy Gantt, 56, conta que ouviu o termo "food noise" pela primeira vez no TikTok, que foi também onde ouviu sobre o Mounjaro pela primeira vez. Ela encontrou uma plataforma de saúde online e em poucas horas recebeu sua prescrição.

Gantt se recorda do primeiro dia em que começou a usar o remédio, no verão passado. "Foi uma sensação de estar livre daquele ciclo constante de pensamentos: ‘O que vou comer? Nunca estou satisfeita; nunca há o bastante.’ Foi como se alguém tivesse apagado tudo isso."

Para algumas pessoas, a escassez desses medicamentos está servindo de teste para entender como pode ser a vida com e sem os pensamentos frequentes em comida. Nas últimas semanas, Kelsey Ryan, 35, corretora de seguros de Canandaigua, Nova York, não tem conseguido comprar o Ozempic que lhe foi receitado, e o "food noise" está voltando a incomodá-la.

Não é apenas a tentação diária do sorvete cremoso. Para Ryan, o barulho também significa uma série de outros pensamentos relacionados à comida: maquinações internas sobre se ela deve ou não comer na presença de outras pessoas, especulações se as pessoas vão julgá-la por comer frango frito ou se, no caso de ela pedir uma salada, isso passará a impressão de que ela está se esforçando demais. Para ela, o Ozempic, mais que tudo, é uma maneira de silenciar o barulho da comida.

"É uma ferramenta", ela diz. "Não é um remédio mágico que oferece uma saída fácil às pessoas."

O QUE CAUSA O 'FOOD NOISE'?

Não existe definição clínica, mas os especialistas e pacientes entrevistados para este artigo concordaram que o termo resume a ruminação constante sobre comida. Alguns pesquisadores associam o conceito à chamada "fome hedonística", uma preocupação intensa em comer para a finalidade de obter prazer, e destacaram que ele pode também ser um componente do transtorno da compulsão alimentar periódica, que é comum mas muitas vezes é interpretado erroneamente.

Especialistas na medicina da obesidade têm tentado entender melhor a razão pela qual uma pessoa pode passar tempo ruminando sobre comida, afirma Robert Gabbay, diretor científico e médico da American Diabetes Association.

"Parece que isso é algo inato a algumas pessoas", diz ele. A ruminação obsessiva sobre comida é provavelmente resultante de fatores genéticos, além de exposição ambiental e hábitos aprendidos, pontua Janice Jin Hwang, diretora da divisão de endocrinologia e metabolismo da Escola de Medicina da Universidade da Carolina do Norte.

Por que algumas pessoas conseguem afastar o impulso de comer, enquanto outras ficam atoladas em pensamentos relacionados à comida? Essa é "a pergunta de um milhão de dólares", afirma Hwang.

COMO OS MEDICAMENTOS SUPRIMEM OS PENSAMENTOS?

O ingrediente ativo do Ozempic e Wegovy é a semaglutida, um composto que afeta as áreas do cérebro que regulam o apetite, diz Gabbay. A substância também leva o estômago a se esvaziar mais lentamente, de modo que quem toma o remédio se sente saciado mais rapidamente e por mais tempo. A própria saciedade pode suavizar o barulho da comida, indica ela..

Outra explicação teórica sobre o que leva o Ozempic a calar o "food noise": a semaglutida ativa receptores do hormônio GLP-1. Estudos feitos com animais mostram que esses receptores são encontrados em células de regiões do cérebro que são especialmente importantes para a motivação e recompensa, apontando para uma maneira potencial em que a semaglutida pode influenciar os desejos. É possível, embora não tenha sido comprovado, que o mesmo ocorra com os humanos, pontua Hwang.

Isso explicaria por que as pessoas que tomam o medicamento dizem que a comida deixa de lhes dar prazer –e às vezes o álcool também.

Pesquisadores continuam a investigar o funcionamento da semaglutida, como ela pode influenciar aspectos do funcionamento cerebral como este tipo de pensamento excessivo, e seu potencial de utilização para outras finalidades, como o tratamento da adição.

Staci Klemmer afirma que se preocupa com os potenciais efeitos colaterais de longo prazo de um medicamento que ela talvez use pelo resto da vida. Mas considera que o que ela recebe em troca –o fim do barulho da comida— vale a pena.

"Vale a pena encarar todos os efeitos colaterais ruins que eu possa vir a ter, para desfrutar o que sinto agora: não me importar com a comida."

Tradução de Clara Allain

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